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“Sou uma onça, devoro humanidades”: ritualizações antropofágicas em educações matemáticas
“I am a jaguar, I devour humanities”: anthropophagic ritualizations in mathematical education
“Soy un jaguar, devoro humanidades”: ritualizaciones antropofágicas en la educación matemática
Revista de Educação Matemática, vol. 20, e023079, 2023
Sociedade Brasileira de Educação Matemática

ARTIGOS CIENTÍFICOS

Revista de Educação Matemática
Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Brasil
ISSN: 2526-9062
ISSN-e: 1676-8868
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 20, e023079, 2023

Recepção: 30 Junho 2022

Aprovação: 14 Dezembro 2022

Publicado: 01 Janeiro 2023


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Resumo: À espreita, alguns matemáticos se movimentam, de forma coordenada, e saem em expedição pela mata. Com seu olhar externo e desejo de captura, contemplam a natureza de uma Matemática pura, universal, onipresente, produtora de riqueza. Estáticos, mal conseguem perceber as demais formas de vida que coexistem, na paisagem, e tomam um susto quando se deparam com alguém sendo devorado. Reivindicando a humanidade de seu grupo, determinam sub-humanidades e nomeiam os selvagens, ao bradarem: “educadores matemáticos são predadores”. Onças, tupinambás e caboclos se misturam nesse ritual antropofágico à beira do rio. Junto a eles, uma professora, estudantes da escola básica e uma sala de aula tentam atravessar a matemática. A lua fica avermelhada, sangra, pois alguém a persegue para devorá-la. Diante da iminência de devorarem a lua, a construção de uma mediatriz abre possibilidades para deglutir o outro e caminhar em busca de uma terra sem males. Neste artigo, comemos a humanidade da matemática e que constitui nosso próprio ser, para nos deixarmos alterar por quem devoramos. Dobrando a linguagem, assumimos nossa natureza predadora, na produção de educações matemáticas que tomem a experiência e a diferença como políticas de afirmação da vida.

Palavras-chave: Antropofagia, Diferença, Educação Matemática, Formação de Professores.

Abstract: On the lookout, some mathematicians move, in a coordinated way, and go on an expedition through the forest. With their external gaze and desire to capture, they contemplate the nature of a pure, universal, omnipresent, wealth-producing Mathematic. Static, they can barely perceive the other forms of life that coexist in the landscape, and they get scared when they come across someone being devoured. Claiming the humanity of their group, they determine sub-humanities and name the savages, when they cry out: “mathematical educators are predators”. Jaguars, tupinambás and caboclos mingle in this anthropophagic ritual by the river. Along with them, a teacher, elementary school students and a classroom try to get through math. The moon turns red, bleeds, because someone is chasing it to devour it. Faced with the imminence of devouring the moon, the construction of a mediatrix opens possibilities to swallow the other and walk in search of a land without evils. In this article, we eat the humanity of mathematics and that constitutes our very being, to allow ourselves to be altered by those we devour. By bending language, we assume our predatory nature, in the production of mathematical educations that take experience and difference as life-affirming policies.

Keywords: Anthropophagy, Difference, Mathematics Education, Teacher training.

Resumen: Al acecho, algunos matemáticos se desplazan, de forma coordinada, y emprenden una expedición por el bosque. Con su mirada exterior y deseo de captura, contemplan la naturaleza de una Matemática pura, universal, omnipresente, productora de riqueza. Estáticos, apenas pueden percibir las otras formas de vida que conviven en el paisaje, y se asustan cuando se encuentran con alguien siendo devorado. Reivindicando la humanidad de su grupo, determinan subhumanidades y nombran a los salvajes, cuando gritan: “los educadores matemáticos son depredadores”. Jaguares, tupinambás y caboclos se mezclan en este ritual antropofágico junto al río. Junto a ellos, un profesor, alumnos de primaria y un aula intentan superar las matemáticas. La luna se pone roja, sangra, porque alguien la persigue para devorarla. Ante la inminencia de devorar a la luna, la construcción de una mediadora abre posibilidades para tragarse al otro y caminar en busca de una tierra sin males. En este artículo nos comemos la humanidad de la Matemática que constituye nuestro propio ser, para dejarnos alterar por aquellos a quienes devoramos. Doblando el lenguaje, asumimos nuestra naturaleza depredadora, en la producción de educaciones matemáticas que toman la experiencia y la diferencia como políticas de afirmación de la vida.

Palabras clave: Antropofagia, Diferencia, Educación Matemática, Formación de profesores.

DIANTE DA ONÇA

Eicobé xeramói! Eicobé xeramói güé! – “viva, meu avô[4]”. Da mata virgem, surge um grito tupinambá para assustar Jaguar .Îagûara, a onça pintada), toda vez que ela persegue Jaci .Îacy, a lua) com a intenção de devorá-la. Do lado de cá da modernidade[5], aonde a onça chega cada vez mais próximo de comer a lua, quais significados você produz ao se deparar com o olhar penetrante da fera que mata a presa com um golpe só?


Figura 1
Onça
Gustavo Figueirôa – Instagram @gufigueiroa

Na dança predatória entre a onça e a presa se garantem condições de existência, mas de quem e com respeito a quem? Há algo de estranho nesse cenário: enquanto olhava nos olhos da onça, quem era o objeto para os significados que você produziu? O que você, realmente, disse era sobre a onça ou sobre você mesmo?

Estranhamento que se coloca junto àqueles que veem a matemática em tudo, mas que insistirão que ela não está presente aqui. Processos de estranhamento onde, segundo Lins (2004), algo é natural para alguém e, por outro lado, tais significados são estranhos e não podem ser ditos por outros. Nos portões da diferença entre a matemática dos matemáticos e outras matemáticas, uma mesma coisa pode tornar-se um ser monstruoso para uns e um ser de estimação para outros (LINS, 2004). Diante de mim, quem é a onça? Diante da onça, quem sou eu?

Esta última questão nos convoca para um deslocamento e uma inversão do olhar. À luz da cosmogonia ameríndia, como mostra Viveiros de Castro (2018), a subjetividade, a intencionalidade nos modos de vida e a produção de cultura não são caraterísticas exclusivas dos humanos, são potencialidades de uma infinidade de outras espécies. Então, mais uma vez, diante da onça, quem sou eu? Cada uma das diferentes formas de vida vê sua própria espécie como humana, considerando as outras como animais ou espíritos. Ser bicho ou ser gente é, portanto, apenas uma questão de relação, de enunciação, isto localizados no pensamento indígena, em que um dos elementos fundamentais é: “todos os seres da mãe terra e do cosmos somos irmãos”. Neste sentido, é humano aquele que tem o ponto de vista do sujeito, seja ele onça, inimigo ou espírito (VIVEIROS DE CASTRO, 2018).

Somos colocados no jogo das diferenças, da diferencialidade[6], do puro diferir, enquanto espaçamento, temporização e relação à alteridade. Neste movimento de diferencialidade, o que fica para a Educação Matemática? Quando a diferencialidade não é reconhecida e encarada como constitutiva no devir onça pintada, chega, então, a “hora da onça beber água”. À espreita, o olhar externo do matemático que não habita esta terra, junto ao seu desejo de captura do outro, de fixar significados a objetos e controlar o discurso: “professores de matemática que, porém, além de malformados, mal pagos e desprestigiados são vítimas fáceis de um grupo de predadores autointitulados educadores matemáticos[7]”. A tentativa de capturar uma essência para a Educação Matemática e seu ritual: de um lado, estariam vítimas indefesas (professores de matemática) e, do outro, predadores (educadores matemáticos), em um embate canibal.

Na perspectiva de Krenak (2020), teríamos aqui a demarcação de um clube da humanidade também no contexto da matemática, uma casta que considera como sub-humanidade todos que estão fora dela e que, supostamente, ameaçam uma ideia prospectiva de caminho para o progresso. Sem nenhuma cerimônia, antes que sejamos engolidos, aproveitamos a condição de sub-humanidade que nos foi imposta, nesse discurso, para assumir nossa natureza antropofágica.

Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi, or not tupi, that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

[...]

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi o Carnaval. (ANDRADE, 1928).

Na esteira das comemorações, neste ano, do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, movimento organizado por um grupo de intelectuais e artistas da época, que representou um marco na história da cultura brasileira, o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade fundamenta aqui a reivindicação de educações matemáticas em que deglutir o outro não é exótico, constitui sua própria existência. Em uma dimensão da alteridade, o outro que devoro irá morar em meu estômago, constituindo meu ser e sendo quem sou[8].

Nesse ritual antropofágico onde se devora o humano, o que faz a onça aqui? Eicobé xeramói! Eicobé xeramói güé! – “viva, meu avô”. O grito tupinambá para assustar a onça carrega, em seu fundamento, a ancestralidade de uma perspectiva de vida que esgarça a relação sujeito/objeto discutida anteriormente. Conforme destaca Viveiros de Castro (2011, 2018), o cogito indígena, de forma contra-equivalente ao cogito cartesiano .penso, logo existo”, considera outras formas de vida e se articula em torno da máxima animista “isso existe, portanto pensa”. Nos relatos quinhentistas da ocupação francesa no Rio de Janeiro, o diálogo entre o chefe tupinambá Cunhambebe e Hans Staden, alemão que elabora um dos primeiros registros etnográficos dos rituais antropofágicos indígenas no Brasil, ilustra o encontro entre essas duas perspectivas de mundo.

Staden, que ficou cativo nove meses em uma aldeia dos Tamoio (nome dos Tupinambá dominantes no Rio de Janeiro), na costa sul do Rio, perto de Angra dos Reis, narra a seguinte situação: um certo dia, no momento em que seus captores haviam acabado de matar prisioneiros de outra tribo, assavam-nos e os estavam comendo, ele chega perto de Cunhambebe, e o apostrofa em termos bem cristãos, que parafraseio: “Mas isso é um absurdo, nem os animais comem seus próprios semelhantes, nem as feras comem seus próprios semelhantes, como é que você, um humano, come um outro homem?”. E Cunhambebe responde: “Sou uma onça. Está gostoso.”. (VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p. 20)

Viveiros de Castro (2018) destaca que Cunhambebe não nega a humanidade da presa, mas sua própria humanidade, como quem diz: “como homens, logo sou onça”. Segundo o autor, Cunhambebe nos mostra que, na perspectiva antropofágica[9] tupinambá, para comer outro humano, é necessário comer o humano de si mesmo. Nesse sentido, o destino tupinambá é ser onça, uma vez que, para o outro ser humano, é preciso que quem o come não seja. Trata-se de digerir o outro e, ao mesmo tempo, devorar a si próprio. Onças querem devorar o colonizador que, valendo-se de suas representações, imaginários, preconceitos e imposições, a assassinam, atropelam e silenciam. Sim, tornados feras, tornados onças, no plural, nossos olhares estão fixos na presa, ou nas presas, aqui se trata de comer o inimigo,

como forma de “assimilá-lo”, torná-lo igual a Mim, ou de “negá-lo” para afirmar a substância identitária de um Eu, mas tampouco transformar-se nele como em um outro Eu, mimetizá-lo. Transformar-se, justo ao contrário, por meio dele, transformar-se em um eu Outro, autotransfigurar-se com a ajuda do “contrário”. Não ver-se no outro, mas ver o outro em si. (VIVEIROS DE CASTRO, 2016, p. 15-16).

Se digeri o outro para perturbar dicotomias instituídas com o projeto civilizatório promovido pela modernidade, as feras/onças olham com ângulos diferentes a presa e campos semânticos diversos se abrem, as feras procuram desvendar qual é a força que nelas se apossam, a força que se exprime nela. Sentidos emergem no predomínio de uma força sobre outras, nesse jogo de forças, a presa a ser dominada cumpre um papel.

Diante da tentativa de sermos capturados por um pensamento cartesiano que visa essencializar determinada Matemática como universal, lançamos flechas que riscam o céu e o tempo para evocar a antropofagia tupinambá, como parte de educações matemáticas diversas. “Nunca seremos catequizados. Faremos é Carnaval”.

GUAJUPIÁ, TERRA SEM MALES

Índio é tupinambá

Índio tem alma guerreira

Hoje meu Guajupiá é Madureira

Voa águia na floresta

Salve o samba, salve ela

Índio é dono desse chão

Índio é filho da Portela

(Valtinho Botafogo; Rogério Lobo; José Carlos; Zé Miranda; Beto Aquino; Pecê Ribeiro; D´Sousa; Araguaci; G.R.E.S. Portela, 2020)


Figura 2
Aldeia Karióka
Desfile da Portela de 2020 – Fernando Grilli/Riotur.

Escondida na mata da Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, está a ancestralidade tupinambá. Diferentemente do que muitos pensam, “carioca” não é a “casa do homem branco”, significado etimológico que foi naturalizado ao longo do tempo, resultante de apropriações que guardam resquícios do sotaque lusitano e de seu desejo de reescrever a história. Ao contrário, o termo se refere à morada dos habitantes originários de uma das mais importantes tabas tupinambás do Rio de Janeiro: a aldeia Karióka[10], localizada às margens do rio que herdou seu nome, nas terras onde hoje se encontram os bairros Flamengo, Laranjeiras, Largo do Machado, Catete e Glória (FREITAS, 2020).

Auê, auê, a voz da mata, okê, okê arô! A letra do samba de 2020 da Portela remete ao espírito guerreiro dos tupinambás, um sentido de guerra que não estava relacionado à disputa de terras ou riquezas. Mussa (2009) destaca que as tribos tupi, em determinados momentos, dividiam-se entre aliadas e inimigas não para tomar o território dos vencidos, cobrar tributos, escravizar oponentes, saquear riquezas ou obter vantagens econômicas. O sentido indígena de guerra tupinambá estava relacionado a um fundamento existencial: capturar seu inimigo e devorá-lo em um ritual antropofágico.

Freitas (2020) descreve, por exemplo, que dois anos após a fundação “oficial” do Rio de Janeiro em 1565, enquanto portugueses e franceses lutavam na Batalha de Uruçumirim pelo domínio do território da Guanabara, no atual Morro da Glória, região da aldeia Karióka, nativos tupinambás também formavam seus exércitos, guerreando divididos entre tamoios (aliados dos franceses) e temiminós (aliados dos portugueses). No pensamento europeu, a luta pelo domínio do território e de suas riquezas. Na cosmovisão tupinambá, o desejo de ficar mais próximo do Guajupiá .Gûaîupîá), a terra sem males.

O Guajupiá representava um lugar paradisíaco onde, após a morte física, morariam os ancestrais tupinambás mais valorosos e guerreiros, aqueles que, em vida, honraram as tradições de seu povo, vingaram seus antepassados e devoraram o maior número de inimigos possível (FREITAS, 2020). A antropofagia, portanto, era uma forma de se apropriar das forças de seu oponente, tornando-se um guerreiro mais forte e, consequentemente, mais próximo da terra sem males. Nesse sentido, a natureza guerreira, constituinte desses povos indígenas, existia em função do desejo de retornar à forma originária de vida presente antes dos males provocados pelo homem, cenário não mais possível de experenciar, agora, em vida.

Conforme afirma Mussa (2009), em sua perspectiva cosmogônica, os tupinambás dividiam a história do universo em três períodos distintos, que demarcavam a existência de diferentes humanidades. No mundo primitivo, antes da existência humana, havia somente Monan (o Velho) que, posteriormente, criou a humanidade integrada a um lugar onde não havia morte, nem trabalho. Contudo, algum tempo depois, a imprudência humana provocou a ira de Monan, vingando a ingratidão dos homens com um enorme incêndio que destruiu tudo e todos, exceto apenas um homem que foi salvo: Irin-Magé (Pajé do Mel).

A segunda humanidade se constitui a partir da desilusão de Irin-Magé, ao se deparar com a destruição de um mundo em chamas e com a solidão de uma vida sem semelhantes. Comovido com as súplicas de Irin-Magé, Monan faz cair um grande dilúvio, que apaga as chamas e forma grandes oceanos de água salgada pelas cinzas do incêndio. Impressionado, também, com a beleza de um novo lugar que se formou a partir do encontro entre a terra e o mar, Monan molda uma mulher para, junto com Irin-Magé, repovoar a humanidade com seres melhores, numa nova terra sem males. Entre seus filhos, que iam se afastando por outras regiões, até mesmo se esquecendo de como retornarem ao Guajupiá, nasceu Maíra .Maíramûana). O grande karaíba (profeta) era considerado um “familiar” de Monan, uma vez que tinha livre acesso ao Velho no céu, com quem aprendeu a arte de transformar as coisas e o caminho que levava à terra sem males.

Maíra não era o único com poderes ou que sabia o caminho do Guajupiá. Inimigo de Maíra, Sumé tinha a arte de se transformar em onça, poder que, posteriormente, também concedeu a seus parentes. As divergências entre Maíra e Sumé existiam porque ambos engravidaram uma mulher ao mesmo tempo. Do ventre dessa mulher, nasceram os gêmeos Tamandûaré, filho de Maíra, e Guaricuité, filho de Sumé. Com personalidades opostas, assim como seus pais, os gêmeos se odiavam ao ponto de, em um dia de fúria ao brigar com seu irmão, Tamandûaré bater tão forte com o pé no chão e abrir um buraco imenso, por onde começou a jorrar toda a água existente embaixo da terra. A enchente foi tão forte que a água alcançava as montanhas. Em meio ao desespero, os gêmeos, cada um com sua companheira, se abrigaram nas árvores mais altas. Após a água escoar, os dois casais desceram e encontraram um cenário de destruição e morte, verificando serem os únicos sobreviventes.

A terceira humanidade surge, então, dos descendentes dos irmãos gêmeos que, juntamente com suas mulheres, tinham a incumbência de repovoar o mundo. Do lado de Tamandûaré, descenderam os tupinambás tamoios, enquanto Guaricuité seria o ancestral dos tobajaras (temiminós, maracajás e tupiniquins). Diante da imprudência do homem nos dois períodos anteriores, a terceira humanidade ficou privada da possibilidade de chegar, em vida material, à terra sem males, uma vez que já não restava mais ninguém que soubesse o caminho que os levariam até lá.

Inimigos ancestrais, tamoios e temiminós que povoaram a terceira humanidade, acreditavam que, agora, só seria possível chegar ao Guajupiá após a morte física. O acesso à terra sem males só seria garantido àqueles que guerreassem, vingassem seus antepassados, devorassem seus inimigos e que também fossem vingados depois de mortos. O ritual antropofágico, portanto, existe em função do desejo de chegar à terra sem males e retornar à forma primitiva de vida quando Monan ainda vivia na terra.

Na perspectiva de Mussa (2009), as leituras binárias ocidentais, que traçam fronteiras entre bem e mal, não são suficientes para descrever a antropofagia tupinambá. Ainda que, para um tupinambá, matar seu inimigo pudesse representar o “mal”, o rito antropofágico transfiguraria o ato em algo “positivo”, ao conceder a seu oponente o direito de ser vingado por seus descendentes e, assim, alcançar a terra sem males. Nesse sentido, o autor destaca uma dimensão de alteridade na qual a existência de um tupinambá está diretamente implicada na existência de seu inimigo, ou seja, “o mal, assim, é indispensável para a obtenção do bem; o mal, portanto, é o próprio bem.” (MUSSA, 2009, p. 73).

Na imagem idílica (Figura 2) que o desfile da Portela de 2020 nos apresenta, a energia de Monan parece equilibrar uma natureza onde coexistem, no mesmo cenário, descendentes deMaíra – o nativo tamoio da aldeia Karióka, Cuaraci .Kûarasy, o sol) e Jaci (a lua) – junto com onças, animais em quem Sumé tinha o poder de se transformar. Na cosmovisão tupinambá, se os tamoios, por um lado, celebram ao devorar seus inimigos temiminós na terra, por outro lado, do céu, Sumé se transforma em onça e persegue Jaci (a lua) para vingar seus parentes mortos. É nesse sentido que Mussa (2009) afirma que o destino tupinambá é ser onça: ser antropófago, devorar o maior número de inimigos para alcançar a terra sem males, antes que a onça devore a lua.

Quando, no fim das chuvas, aparece uma estrela muito vermelha, chamada Jaguar, é Sumé transformado em onça, sujo com o sangue de Jaci.

Jaci, quando reaparece assim sangrando, corre o risco de morrer para sempre.

E os homens batem no chão com seus cajados e, para assustar a onça, gritam eicobé xeramói! Eicobé xeramói güé! – “viva, meu avô”.

E Jaci, então, se regenera – porque é um grande caraíba. (MUSSA, 2009, p. 69)

ENTRE O ERRO E O ACERTO, O ATRAVESSAR

Estava na beira do rio

Sem poder atravessar

Chamei pelo caboclo

Caboclo Tupinambá

(Ponto de Caboclo – Tupinambá na Beira do Rio)

Ao chamar Seu Tupinambá, invocamos outras éticas em educações matemáticas que venham a rasurar uma moral binária, escolástica e disciplinar, historicamente erguida em torno da tentativa de negação e apagamento não somente das formas de vida ancestrais dos donos da terra, como de quaisquer outros sentidos que não se enquadrem no estabelecido como norma. Sabedoria de caboclo, de quem escapa de binarismos mesmo diante da morte, permanecendo disponível e se encantando na natureza, sem deixar de ser quem é, em uma experiência supravivente[11] de alteridade: “vive nele mesmo, vive no elemento da natureza em que se encantou e vive no outro corpo em que, pelo transe, se manifesta” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 101). Seu Tupinambá, como grande guerreiro tamoio, rompe a dicotomia vida/morte e o que supostamente seria seu fim, para permanecer em travessia na busca contínua pelo Guajupiá.

Diante da demanda apresentada na beira do rio, alguém não pode atravessar. Não pode porque é impossível? Não pode porque não deixam? Não pode porque é incapaz e não consegue? O que impede alguém passar para o outro lado do rio? “Chamei pelo caboclo / Caboclo Tupinambá”.

O chamado a Seu Tupinambá nos convida a outras poéticas, não em busca de respostas, mas de novas perguntas, que compreendam o atravessar como desejo de travessia, sem estar limitado a uma visão partida entre dois lados previamente traçados. A abertura de caminhos nos possibilita ir além de um olhar sobre o outro lado do rio, em direção, de forma mais ampla, à natureza que ele compõe. Na mata, vence-demanda, planta, quem não tem caminho para caminhar, quem está disponível para se alterar pelo outro, devorar e ser devorado, elementos reconfigurados, agora, como potências para quem está na beira do rio: o que a experiência de não poder atravessar nos possibilita?

Caboclo não tem caminho para caminhar. Caboclo das sete mil encruzilhadas corre gira, vira mundo e baixa onde quer. Abra caminho, vença a demanda, desate o nó, se levante e quebre as pedras, se banhe de outros sentidos. O carrego alimentado há séculos precisa ser despachado para nossas virações desenharem um novo dia. Neste sentido, o desafio não é simplesmente se deslocar de uma margem para outra, uma vez que nos subordinam a estar limitados a uma realidade cindida em dois polos. A peleja do agora pede a sabedoria dos encantes de outrora, as mumunhas ancestrais que nunca deixaram de existir, mas vivem no oco, no miolo de nosso sertão, campina e mata. (SIMAS; RUFINO, 2019, p. 12-13).

Como “predadores” que somos, devoramos quem espera que a relação entre tupinambás e educações matemáticas seja apresentada, aqui, a partir do olhar colonizador daqueles que, simplesmente, identificam simetrias nas cerâmicas indígenas. Ou ainda, quem considera indiferente fazer o mesmo a partir das pedras portuguesas que soterram a ancestralidade tupinambá, nas terras nativas da aldeia Karióka. Como afirmam Miguel et al. (2022), nessa perspectiva colonial, parece transparecer o desejo de hierarquizar as formas de vida, subordinando qualquer possibilidade de descrever o que se passou, se passa ou se passará, em nossa existência, à previsibilidade profética lógico-formal-ideal dos matemáticos.

Ainda assim, nossa atuação como educadores matemáticos em um sistema disciplinar, escolarizado e, ainda, dominante, nos convoca a estarmos disponíveis para digerir o que acabamos de deglutir, buscando nos colocarmos em travessia diante de qualquer experiência atravessada pela matemática. Como nos convidam Cammarota, Rotondo e Clareto (2019), tomar a sério o que acontece em uma sala de aula, para além e para aquém de uma moral escrava do erro ou do acerto, produzindo uma ética afirmativa, que afirma a vida e opera com a matemática que vem. Educações matemáticas que se colocam na relação de alteridade entre estudante e educador, junto a Seu Tupinambá ou, assim como Cunhambebe, abrindo mão de sua humanidade para se tornar onça, em um ritual antropofágico.

Quando alguém está na beira da Matemática, sem poder atravessar, o que essa experiência nos possibilita, quando buscamos ir além de uma moral escrava, cindida entre erro e acerto? Quais caminhos se abrem quando concebemos a matemática como travessia, não como ponto de passagem do erro para o acerto? “Tupinambá chamei / Chamei, tornei chamar êá”.

7h: Na sala de aula, tudo sob controle: estudantes enfileirados, a sonolência do primeiro tempo, um silêncio de contemplação, a professora escreve no quadro, o resto copia...

7h 5min: Eis que surge a definição, princípio de tudo, ditando as regras do jogo:

Definição: A mediatriz de um segmento é definida pelo lugar geométrico dos pontos do plano que estão à mesma distância de A e de B. O traçado da mediatriz determina uma reta perpendicular ao segmento de reta , que passa por seu ponto médio.”

7h 15min: “A regra é clara!”. As palavras professadas pela professora são proféticas e não poéticas, trava-língua dos estudantes e a minha também. Não há espaço para quem não seguir as regras.

7h 20min: “Já disse que é para ficar sentado. Regras quebradas: advertência! Na próxima, vai para fora de sala...”

7h 25min: Régua e compasso entram em cena para a representação do objeto definido. Representação ou re(a)presentação? Novas regras são agora fixadas (ou definidas de outra forma?). Fixação ou outra definição? A professora não mediava, conduzia à mediatriz! “Sigam o passo-a-passo comigo:

1) Desenhe um segmento de reta .

2) Com o auxílio do compasso, faça uma abertura que seja maior que a metade da medida do segmento.

3) A partir dessa abertura, coloque a ponta seca do compasso no ponto A e trace dois arcos, um acima do segmento e outro abaixo.

4) Permanecendo com a mesma abertura no compasso, faça a mesma coisa na extremidade oposta, com a ponta seca no ponto B.

5) Os arcos se cruzam em dois pontos (C e D), um acima do segmento de reta e outro abaixo. Com a régua, trace uma reta que passe por esses dois pontos C e D.”.


Figura 3
Construção da Professora
Autores

7h 35min:A mediatriz do segmento AB surge bela como a verdade. Já a Imperatriz, reinava soberana, até Iara ousar questionar a verdade que impera: “Mas, professora, e se...”.

7h 37min: A professora rapidamente a interrompe, aflita por faltarem menos de 15 minutos para terminar a aula. Afinal, regras são regras! Não existem para serem questionadas, mas para serem cumpridas, assim como o plano de aula da professora, que previa deixar os últimos 15 minutos para os estudantes fixarem os passos estabelecidos. “Agora, é a vez de vocês: sigam o passo-a-passo para traçar a mediatriz.”.

7h 40min: E se... O que acontece na experiência de quem desafia as regras? Algo de muito inusitado surge na solução de Iara, que a impede de chegar até o último passo.


Figura 4
Construção de Iara
Autores

7h 45min: Iara vai até a mesa de Kauê, após ele dizer que encontrou a mediatriz. Convicção de quem anda na linha, equilibra-se e chega ao final dos 5 passos, seguindo as regras para encontrar a reta. Ao tomar o caminho reto, vem o tombo! Os dois cochicham, caem na gargalhada e gritam: “Professora, e se...”.


Figura 5
Construção de Kauê.
Autores

7h 50min: Grito, depois silêncio, interrompido pelo sinal que indica o fim da aula: “Iara e Kauê, depois eu vejo isso. Turma, me entreguem as soluções de vocês para eu corrigir! Trago na próxima aula. Rápido porque eu tenho que ir correndo para a outra turma.”.

9h 30min: Ufa, hora do recreio! Mas, a professora aproveita o tempo livre, na sala de professores, para corrigir as construções da primeira turma. A professora se depara com as construções de Iara e Kauê e se choca com a porta de vidro. Ao tomar o caminho reto, novamente, vem o tombo! Os estudantes seguem outros caminhos, pregam uma peça e propõem novas regras: “E se... partirmos de onde paramos? Como continuar e traçar a mediatriz?”. As palavras professadas, inicialmente, pela professora eram mesmo proféticas e não poéticas: “A regra é clara!”.

9h 45mim: E se... E se quem dita as regras, agora, são os estudantes? A autoridade da caneta vermelha não dita mais as regras, diante do contragolpe lançado! A professora mostra as construções para outros colegas professores. Eles começam a discutir como construir a mediatriz, com régua e compasso, a partir da continuação das soluções de Iara e Kauê.

E se... você é um dos professores que discutem as soluções de Iara e Kauê na sala de professores[12]?

Quais significados você produziu ao se deparar com as soluções de Iara e Kauê, quando ocupou o lugar da professora? Diante de mim, quem é a onça? Diante da onça, quem sou eu? O olhar sobre as construções de Iara e Kauê se revela indissociável de nossa percepção sobre a construção da professora. Em uma Matemática singular, cujos representantes constituiriam um seleto clube da humanidade (KRENAK, 2020), a construção da professora regula a norma e atua como produtora de sub-humanidades. Juízo final que, entre erro e acerto, considera a diferença como delimitação, como separação entre humano e selvagem. Presos aos limites de uma geometria axiomática, sequencial e linear, que segue apenas o caminho reto das definições às soluções, as construções de Iara e Kauê são compreendidas como desvios da construção da professora, vista como a única possível.

Como destacam Giraldo e Roque (2021), a exposição da Matemática a partir da ordem de sua estrutura, organizada em torno das implicações lógicas e dos critérios de legitimação aceitos hoje, causa a impressão de que axiomas e definições fundaram as ideias matemáticas. Para os autores, associada a essa forma de exposição platônica, reside uma concepção de matemática não problematizada, na qual os problemas são compreendidos como estados de deficiência provisória, que só podem ser eliminados com a obtenção de uma solução.

A formalização estrutural que solidifica essa imagem de Matemática invisibiliza e nega as diferenças ou singularidades de produção de conhecimentos oriundos das práticas culturais, que podem ou não compartilhar certos aspectos semelhantes (MIGUEL et al., 2022). Nessa perspectiva, como professores, acabamos resumindo a experiência de Iara e Kauê a chegarem (ou não) ao outro lado do rio, atravessarem a matemática por um único caminho que visa sair do erro para chegar no acerto, da definição em direção à solução.

Chegando lá, na mesma dicotomia, morre a experiência, a morte como fim, como oposto da vida, não a morte como supravivência. Junto com ela, ao não ser reconhecida, a diferença entre as construções da professora, de Iara e de Kauê também é apagada, “a diferença, no pensamento representativo, é assassinada na medida em que ela, a diferença, é tratada como erro ou falsa representação” (CLARETO; SILVA, 2016, p. 932). Em uma matemática que reivindica a universalidade em seu DNA, não há espaço para a diferença como forma de vida. Tratada como desvio aqui, diferir tem conotação de separar: professora de um lado, Iara e Kauê do outro. Não faz sentido um devorar o outro, se não há a possibilidade e a iminência de Jaguar (a onça) devorar Jaci (a lua).

Para promovermos educações matemáticas que se fundamentem na perspectiva antropofágica tupinambá, por outro lado, é necessário afirmarmos um olhar positivo sobre a diferença, que a considere como potência e possibilidade de invenção. Como professores, reconhecer a diferença como potência nas construções de Iara e Kauê requer comer o humano de si mesmo, abrir mão da condição de humanidade da matemática e estar disponível para alterar-se pelo outro que habita a sala de aula. Tal qual Cunhambebe, assumiremos nossa natureza predadora como educadores matemáticos: “Sou uma onça, devoro humanidades. Está gostoso.”.

Viveiros de Castro (2018) parte da antropofagia enquanto devir não-branco e não-humano para propor o conceito de diferOnça, caracterizado a partir “do duplo movimento de diferir-absorver próprio do canibalismo: diferir como alterar-se pela incorporação do outro” (p. 14). O autor destaca a ambiguidade da antropofagia ameríndia: ao mesmo tempo que representa comer outro humano, ela representa um devorar-destruir a humanidade própria daquele que come. Para ser onça e devorar outro humano como presa, é necessário, antes, devorar o humano de si mesmo, uma vez que, com base no perspectivismo ameríndio, cada espécie vê a si própria como “gente”, entretanto, duas espécies não podem ver uma à outra como “gente” ao mesmo tempo (VIVEIROS DE CASTRO, 2011).

Ao receberem o chamado de quem está na beira da matemática, professores devem estar disponíveis para, tomando a antropofagia tupinambá como fundamento, reconhecerem a humanidade de Iara e de Kauê, devorarem suas construções e se alterarem por elas, em um duplo movimento de devorar-destruir sua própria humanidade – e da matemática – como referência moral que regula as possibilidades de travessia. Contragolpe de quem será devorado, o chamado de Iara e Kauê nos intima a não tomar a diferença como forma de separar suas construções da solução esperada pela professora, classificando-as como erradas no interior da universalidade da matemática. Na problemática presente nesse embate, ritualizamos a diferOnça como potência para considerarmos outras possibilidades de travessia, que se abrem a partir das construções apresentadas. Seria possível, ainda, construir a mediatriz a partir delas? Que outros caminhos encontramos para traçar a mediatriz, quando nos colocamos, em travessia, junto às construções de Iara e Kauê?

Apesar de essas provocações parecerem legitimar as narrativas de Iara e Kauê (e, portanto, supostamente retirá-los de uma sub-humanidade), sem considerá-las como desvios, ainda assim mantêm a (nossa) mediatriz como um objetivo a ser perseguido e conquistado; um conceito imutável, único e absoluto. Entretanto, nas suas falas, enxergamos que, de fato, a mediatriz “não é”: ela vem a ser, isto é, sentidos são a ela outorgados quando colocada em uso. A mediatriz é relativa, múltipla; uma propriedade de quem a concebe. Há tantos significados de mediatriz quanto possibilidades de seu uso em diferentes contextos de atividade humana. Ela não tem uma essência que a defina universalmente, mas dela múltiplos usos podem ser feitos por humanos na relação com não-humanos, que performam vidas ao coproduzir-se, as vidas desta terra. Ela é aquilo o que dela fizerem.

Admitindo esse fato, reconhecemos a existência de todos que a gestam e que podem vir a gestá-la. Dessa maneira, produzindo outros sentidos aos nossos questionamentos anteriores, para onde as construções de Iara e Kauê podem nos levar quando não tomamos a mediatriz como referência? O que fazemos com a existência de Iara e Kauê, a partir de suas construções?

Outra travessia: o que as construções de Iara e Kauê dizem sobre nós? Para além do ímpeto de apontar um “erro”, da crítica sobre o existir do outro e de uma manifestação reativa, baseada em nossos próprios parâmetros, o que pode ser devorado em situações ordinárias e, também, naquelas que são tradicionalmente consideradas como desvios?

Matemática como acontecimento, em uma sala de aula aberta à invenção, “uma matemática sempre provisória, pois se dá na processualidade, entre o que está estabelecido e aquilo que escapa. Imprevisibilidades.” (CLARETO; SILVA; CLEMENTE, grifo dos autores, 2013). Matemática que, mesmo diante do controle estabelecido pelas regras fixadas, não se deixa aprisionar, escapa na natureza brincante da criança que prega uma peça, muda as regras e propõe novas, que não se fundamentam na regulação, mas em condicionantes: “e se...”. Na perspectiva de matemática problematizada de Giraldo e Roque (2021), o problema, frequentemente concebido como um estado de ausência de saber, a ser eliminado pela obtenção de uma solução, é reposicionado, agora, como potência de criação, possibilitando abordagens referenciadas pelas ordens da invenção, como um vir-a-ser que cria algo que nunca existiu.

De onde vem, para onde podem ir, os arcos das circunferências que não se encontraram, ou a perpendicular que não dividiu o segmento ao meio? Para onde você foi levado ao devorar-digerir as construções de Iara e Kauê e, ao mesmo tempo, devorar-digerir a humanidade da matemática universal e de si próprio? Onde, juntos, você, a matemática, Iara, Kauê e a professora podem se encontrar após esse ritual antropofágico? Na multiplicidade de construções possíveis em que uma mediatriz surge como invenção, a régua e o compasso encontram um ponto de equilíbrio na encruzilhada entre segmento e reta, demarcando a matemática como política que afirma a vida. Na ritualização da vida como supravivência, a energia de Monan equilibra a diferença, Seu Tupinambá se encanta na experiência e a travessia ao Guajupiá permanece, enquanto a onça não devorar a lua.

OLHANDO PARA O ALTO

A experiência que, em princípio, seria a representação do fim, marca o início da jornada ao Guajupiá, em um contínuo da travessia permanente e supravivente que constitui o fundamento existencial tupinambá. O Guajupiá, portanto, não significa uma época futura a ser vivenciada em um novo ciclo, mas uma morada ancestral onde se deseja habitar, um lugar caracterizado por dois aspectos importantes: a ausência de trabalho e a eterna juventude daqueles que o habitam (MUSSA, 2009). Em uma escola erguida no interior da terra sem males, não há espaço para uma matemática voltada à produção de riqueza, cujo dever seja preparar a criança para a vida adulta e para o trabalho. Nesse lugar, o que move as experiências é o olhar da infância e sua natureza brincante. Educações matemáticas são parte delas, em um tempo presente.

No clube da humanidade, em contrapartida, “o modo de vida ocidental formatou o mundo como uma mercadoria e replica isso de maneira tão naturalizada que uma criança que cresce dentro dessa lógica vive isso como se fosse uma experiência total” (KRENAK, 2020, p. 51). Diante disso, pode parecer, para alguns, ser delírio ou utopia a construção de uma escola com estudantes, professores e educações matemáticas que tenham o Guajupiá como morada. Para indígenas como Krenak (2019), entretanto, sonhar não significa abdicar da realidade ou renunciar ao sentido prático da vida. O pensador indígena destaca que, em uma tradição para sonhar, o sonho não representa uma experiência cotidiana de dormir, mas uma instituição, como a escola, onde se abrem outras visões e buscamos orientações para nossas escolhas cotidianas.

Ao vivenciá-lo como experiência, que educações matemáticas desejamos ver no sonho? Na subversão das perspectivas binárias em que fomos formados, o futuro deixa de ser algo projetado para o amanhã e o céu não é mais o limite. Dependendo da posição que ocupamos, modificamos a perspectiva e nos questionamos, assim como Irin-Magé quando foi alçado ao céu, para ser salvo na destruição da primeira humanidade: “Monan, por que destruir o céu e seu ornamento?” (MUSSA, 2009, p. 33). As visões se embaralham nas dicotomias entre céu e terra, vida e morte, passado e futuro, certo e errado, ensino e aprendizagem, humano e selvagem, a depender das posições transitórias que ocupamos ao atravessar a matemática. O céu, então, cobre a terra e a enfeita, ou o céu é coberto e ornamentado pela terra? Na relação entre educação e matemática, quem vemos quando olhamos para o alto?

O que você pensou para responder esta última pergunta não diz muito sobre quem, supostamente, estaria acima ou abaixo, na relação entre educação e matemática. Por outro lado, suas visões podem trazer indícios sobre onde você se encontra nesse momento, te fazendo refletir sobre quais histórias você tem contado em suas vivências com educações matemáticas. Na perspectiva de Krenak (2019), devemos contar histórias para adiar o fim do mundo. Já na cosmovisão tupinambá, antes que Jaguar (a onça) alcance Jaci (a lua), devoramos o outro, em um ritual antropofágico, para chegar ao Guajupiá. Enquanto não despertamos, novamente, a ira de Monan, sigamos nos tornando onça e contando nossas histórias, em educações matemáticas que tomem a experiência e a diferença como políticas de afirmação da vida.

Políticas de afirmação da vida que nos convocam para fazer no pensar, ou melhor ainda, para sentipensar os problemas de nosso contemporâneo, com base em diferentes óticas de se produzirem matemá[ticas]quinas (MIGUEL, 2018) e... de se produzirem mediatrizes e... de se produzirem geometrias e... ao desconstruir verdades unificadas pelos discursos da Matemática apresentada como única e universal, de se produzirem, em contragolpe, movimentos insurgentes. Movimentos insurgentes que encontram esperança para a manutenção da vida e para a luta contra as injustiças sociais, políticas e econômicas na diferença, que tensionam as gramáticas disciplinares da educação escolarizada como base fundamental para a luta contra a necropolítica (MBEMBE, 2018), que está diretamente ligada à ação do Estado sobre a vida e a morte das pessoas, ora deixando-as viver, ora agindo para sua morte.

Isto requer um pensar no fazer, isto é, precisamos aprender a ver de lugares comunitários outros os fazeres-saberes-sentires-pensares sobre o mundo. A política de afirmação da vida da qual falamos parte do princípio de que “nada existe como ser isolado, senão como parte de uma comunidade que exerce um fazer, que sempre é complementar ao fazer de outras comunidades, justo no lugar/tempo criado pelo caminhar do mundo” (WEIR, 2021, s.p.).

Agradecimentos

Os debates aqui levantados são produto do projeto interinstitucional intitulado “A opção decolonial em Educação Matemática: problematizando a formação inicial de professores”, financiado na chamada de projetos universais CNPq/MCTI/FNDCT nº 18/2021. Deste modo, agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Brasil pelo financiamento do projeto.

REFERÊNCIAS

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CAMMAROTA, Giovani; ROTONDO, Margareth; CLARETO, Sônia. Formação docente: exercício ético estético político com matemáticas. Perspectivas da Educação Matemática, v. 12, n. 30, p. 679-694, 14 jan., 2020.

CLARETO, Sônia Maria; SILVA, Aline Aparecida da. Quanto de Inusitado Guarda uma Sala de Aula de Matemática? Aprendizagens e erro. Bolema, Rio Claro (SP), v. 30, n. 56, p. 926 - 938, dez. 2016.

CLARETO, Sônia Maria; SILVA, Aline Aparecida da; CLEMENTE, João Carlos. De Triângulo a bola: uma matemática menor e a sala de aula. In: XI Encontro Nacional de Educação Matemática, Curitiba. Educação Matemática: retrospectivas e perspectivas. Rio de janeiro: Sociedade Brasileira de Educação Matemática, 2013.

DERRIDA, Jacques. La différance in Marges de la Philosophie. Paris: Les Editions de Minuit; Collection «Critique». 2003.

DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã...Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

FREITAS, Rafael. O Rio antes do Rio. Belo Horizonte: Relicário, 2020.

GIRALDO, Victor; ROQUE, Tatiana. Por uma Matemática Problematizada: as Ordens de (Re)Invenção. Perspectivas da Educação Matemática, v. 14, n. 35, p. 1-21, 4 ago., 2021.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Editora: Companhia das Letras, 2019.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

LINS, Romulo Campos. Matemática, monstros, significados e educação matemática. In: BICUDO, M.A.V.; BORBA, M.C. (Org.). Educação Matemática: pesquisa em movimento. São Paulo: Cortez, 2004.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: N-1 Edições, 2018. 80 p.

MIGNOLO, Walter. COLONIALIDADE O lado mais escuro da modernidade. RBCS Vol. 32 n° 94 junho/2017: e329402.

MIGUEL, Antonio. O cravo de Diderot e as novas políticas educacionais: um diálogo com as luzes em uma nova época de trevas. In: Oliveira, Andréia Maria Pereira & Ortigão, Maria Isabel Ramalho (Orgs.). Abordagens teóricas e metodológicas nas pesquisas em Educação Matemática. Livro Eletrônico. Brasília: Sociedade Brasileira de Educação Matemática. Coleção SBEM 13, pp. 298–320, 2018.

MIGUEL, Antonio; TAMAYO, Carolina; GOMES SOUZA, Elizabeth; MONTEIRO, Alexandrina. Uma virada vital-praxiológica na formação indisciplinar de educadores. Revista de Educação Matemática, v. 19, p. e022004, 8 mar. 2022.

MUSSA, Alberto. Meu destino é ser onça. Rio de Janeiro: Record, 2009.

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SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz; HADDOCK-LOBO, Rafael. Arruaças: uma filosofia popular brasileira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O medo dos outros. Revista de Antropologia, [S. l.], v. 54, n. 2, 2011.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Prefácio. In: AZEVEDO, Beatriz. Antropofagia: Palimpsesto Selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2016.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Rosa e Clarice, a fera e o fora. Revista Letras, n. 98, jul./dez. 2018, p. 9-30.

WEIR, José Ángel Quintero. Da ‘virada ontológica’ ao Tempo de Volta do Nós. Amazônia Latitude: A revista das humanidades ambientais, 06 de abr. de 2021. Disponível em: https://www.amazonialatitude.com/2021/04/06/da-virada-ontologica-ao-tempo-de-volta-do-nos/

Notas

[4] Na próxima seção e em Mussa (2009, p. 69), o sentido da frase é discutido com mais detalhes.
[5] “Estamos viciados em modernidade. A maior parte das invenções é uma tentativa de nós, humanos, nos projetarmos em matéria para além de nossos corpos. Isso nos dá sensação de poder, de permanência, a ilusão de que vamos continuar existindo. A modernidade tem esses artifícios. A ideia da fotografia, por exemplo, que não é tão recente: projetar uma imagem para além daquele instante em que você está vivo é uma coisa fantástica” (KRENAK, 2020, p. 11). O vício do qual nos fala Ailton Krenak diz da dependência a um modelo civilizatório que procura pelo disciplinamento dos corpos, segundo um padrão de vida em que uma certa humanidade se constrói por cima de todos os outros seres da natureza. A modernidade, então, é um projeto de vida que se torna o lado mais obscuro da colonialidade, “que surgiu com a história das invasões europeias de Abya Yala, Tawantinsuyu e Anahuac, com a formação das Américas e do Caribe e o tráfico maciço de africanos escravizados” (MIGNOLO, 2017, p. 4).
[6] Entendemos a diferencialidade no movimento da différance derriana com o qual Eduardo Viveiros de Castro também encontra diálogos. A différance exige que cada elemento “se relacione com outra coisa que não ele mesmo, guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se já moldar pela marca da sua relação com o elemento futuro” (DERRIDA, 2003, p. 3). Nesse sentido, “a différance diz respeito a algo que não se deixa simbolizar e excede a representação” (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 33).
[7] Trecho retirado da matéria intitulada “Educação matemática ‘crítica’ e o fracasso do ensino de matemática”, publicada em 05/03/2021, no jornal “Gazeta do Povo” (https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/educacao-matematica-critica-e-o-fracasso-do-ensino-de-matematica/). No mesmo jornal, em 17/03/2021, também foi publicada a entrevista: “Não faz sentido falar em ‘desconstrução’ da matemática” (https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/marcelo-viana-nao-faz-sentido-falar-em-desconstrucao-da-matematica/). Ao longo deste artigo, disputando o passado, lançamos flechas que riscam o céu e o tempo sem destino, mas que sopram outras vozes aos discursos presentes nas matérias citadas. O alvo? A quem se deixar atravessar.
[8] Dialogamos aqui com Simas, Rufino e Hadodock-Lobo (2020, p. 18).
[9] Viveiros de Castro (2018) faz uma distinção entre canibalismo e antropofagia como conceitos. Para o autor, o canibalismo simboliza a prática de seres da mesma espécie comerem uns aos outros, enquanto a antropofagia se relaciona ao ato de comer um humano.
[10] Embora encontremos diferentes versões sobre sua origem, Freitas (2020) discute que, em diversas fontes primárias, como Viagem à terra do Brasil, do francês Jean de Léry, o termo tupi kariók (carioca) é apresentado, etimologicamente, como junção de kariós (carijós) e de ók (oca), significando, portanto, “casa dos carijós”. Os carijós eram indígenas de uma tribo inimiga dos tupinambás, entretanto, Freitas (2020) destaca que o uso deste termo para nomear uma aldeia tupinambá pode ter um sentido mais amplo, para além de uma simples menção a uma etnia, sugerindo “casa do indígena”.
[11] Simas e Rufino (2018) destacam que a supravivência vai além de nossa compreensão biológica, filosófica e histórica de oposição binária entre binária vida e morte. O supravivente dribla os limites da vida em oposição à morte para, por meio do encante, apropriar-se de qualquer experiência como possibilidade de existência.
[12] Esta narrativa ficcional foi proposta, como atividade formativa, durante a realização da disciplina “Geometria para a Educação Básica”, na Licenciatura em Matemática da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Neste artigo, nosso intuito não é discutir as produções dos licenciandos durante a disciplina, mas os aspectos filosóficos que fundamentaram sua elaboração e possíveis reflexões que ela pode provocar.

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