ARTIGOS CIENTÍFICOS
Recepção: 29 Maio 2022
Aprovação: 19 Dezembro 2022
Publicado: 01 Janeiro 2023
Resumo: O artigo em questão tem como objetivo apresentar reflexões e discussões acerca da linguagem no ensino de matemática. Em primeira instância, considera-se a importância da gramática da matemática, isto é, de suas regras, enquanto condição de sentido para suas proposições. Outro ponto dessas reflexões, recai sobre a tradução de textos matemáticos, na perspectiva dos jogos de linguagem e suas aplicações na educação. De antemão, sobressai-se o fato de que certas dificuldades no aprendizado da matemática advêm da má compreensão da gramática de sua linguagem. Nesse sentido, o referencial adotado, consiste em apontamentos epistemológicos e de ilações filosóficas, sem o intuito de apresentar um viés metodológico e sim uma perspectiva terapêutica wittgensteiniana, acerca dos usos significativos de conceitos matemáticos na educação, como condição de possibilidade para o ensino e aprendizagem da matemática. Por fim, apresentamos reflexões sobre a tradução em situações de ensino aprendizado da matemática e sobre a possibilidade de compreender tal disciplina sem o domínio de sua gramática.
Palavras-chave: Gramática, Tradução, Matemática, Wittgenstein.
Abstract: The article in question aims to present reflections and discussions about mathematical language in teaching and learning. In the first instance, it considers the importance of the grammar of mathematics, that is, of its rules, as a condition of meaning for its propositions. Another point of these reflections concerns the translation of mathematical texts, from the perspective of language games and their applications in education. Beforehand, the fact that certain difficulties in learning mathematics arise from a poor understanding of the grammar of their language stands out. In this sense, the adopted framework consists of epistemological notes and philosophical inferences, without the intention of presenting a methodological bias, but a Wittgensteinian therapeutic perspective, about the significant uses of mathematical concepts in education, as a condition of possibility for teaching and learning of mathemathics. Finally, we present reflections on translation in situations of teaching and learning mathematics and on the possibility of understanding this subject without mastering its grammar.
Keywords: Grammar, Translation, Mathematics, Wittgenstein.
Resumen: El artículo en cuestión tiene como objetivo presentar reflexiones y discusiones sobre el lenguaje matemático en la enseñanza y el aprendizaje. En primera instancia, considera la importancia de la gramática de las matemáticas, es decir, de sus reglas, como condición de significado de sus proposiciones. Otro punto de estas reflexiones se refiere a la traducción de textos matemáticos, desde la perspectiva de los juegos de lenguaje y sus aplicaciones en la educación. De antemano, destaca el hecho de que ciertas dificultades en el aprendizaje de las matemáticas surgen de una mala comprensión de la gramática de su lengua. En ese sentido, el marco adoptado consiste en notas epistemológicas y conclusiones filosóficas, sin la intención de presentar un sesgo metodológico, sino una perspectiva terapéutica wittgensteiniana, sobre los usos significativos de los conceptos matemáticos en la educación, como condición de posibilidad para la enseñanza y el aprendizaje. de matemáticas. Finalmente, presentamos reflexiones sobre la traducción en situaciones de enseñanza y aprendizaje de las matemáticas y sobre la posibilidad de comprender esta materia sin dominar su gramática.
Palabras clave: Gramática, Traducción, Matemáticas, Wittgenstein.
INTRODUÇÃO
Há vertentes da Educação Matemática que consideram a matemática como uma linguagem (ou afirmam que a matemática possui uma linguagem) e, nesse sentido, discutem seu aprendizado como algo semelhante ao aprendizado de uma nova língua (SILVEIRA, 2020). De fato, a discussão sobre a linguagem e suas influências no aprendizado da matemática tem chamado a atenção de professores e pesquisadores. Smole e Diniz (2001) e D’Amore (2007) por exemplo, argumentam que as dificuldades do aprendizado em matemática devem-se à má compreensão de sua linguagem.
Quando aprendemos uma nova língua, como inglês ou espanhol, o que está por trás daquilo que fazemos são regras gramaticais. Mesmo que muitas vezes não tenhamos pleno domínio dessas normas, são elas que nos garantem um uso correto da língua, ou seja, a gramática que nos diz o que é certo ou errado nesse contexto. Se considerarmos as reflexões sobre as semelhanças entre o aprendizado da matemática e o aprendizado de uma nova língua proveitosas, podemos dizer que é o domínio das regras matemáticas que possibilita um bom desempenho nessa disciplina.
De fato, conforme apontam Silveira (2020) e Cunha e Velasco (2019), é em termos de uma tradução, da linguagem matemática para a linguagem natural, que o ensino e o aprendizado dessa disciplina ocorrem e, nesse sentido, embora outros aspectos possam ser considerados, muitos dos erros dos alunos, em situações de aprendizado da matemática, ocorrem por falta do domínio de sua gramática.
Por outro lado, é possível encontrar na Educação Matemática, propostas de ensino que privilegiariam o domínio dos significados dos conceitos matemáticos em detrimento do domínio das regras que envolvem determinado conceito (por exemplo em (SILVA, 2014; FELICETTI; GIRAFA, 2011; MORETTO, 2003), como se houvesse uma dicotomia entre regras e significados. Tais propostas encontram um paralelo semelhante no ensino de línguas: poder-se-ia privilegiar seu ensino através da ênfase no uso das expressões comunicativas em um suposto detrimento da gramática.
Perguntamos: Tal paralelo é de todo adequado quando pensamos na linguagem matemática? É possível aprender matemática sem gramática? Ou o domínio dos conceitos pressupõe o aprendizado das regras?
A fim de lançar luz a tais questões, propomos uma reflexão teórico-filosófica[4] sobre o aprendizado da matemática numa perspectiva da linguagem, balizada por filósofos da linguagem como Wittgenstein (1999), Granger (2013) e Moreno (2015), além de educadores matemáticos como Pimm (2002), Gottschalk (2004) e Machado (1998), discutindo a tradução de textos matemáticos e o domínio da gramática, em contextos de ensino e aprendizagem da matemática.
Para tanto, inicialmente discutiremos sobre a linguagem matemática e sua gramática enquanto condição de sentido para suas proposições; em seguida, apresentamos uma discussão teórica sobre perspectivas de tradução, como por exemplo a polêmica de uma boa tradução buscar o sentido daquilo que é dito ou buscar uma tradução “ao pé da letra”; por fim, apresentamos reflexões sobre a tradução em situações de ensino e aprendizagem da matemática e a possibilidade de compreender tal disciplina sem o domínio de sua gramática (regras).
GRAMÁTICA DA LINGUAGEM MATEMÁTICA
Uma compreensão adequada da matemática depende de um bom domínio de suas regras (BARATA, SILVA, 2019), e estas compõem o que podemos chamar de gramática da linguagem matemática. É a gramática da linguagem matemática que nos esclarece, por exemplo, as diferenças entre 2x, x2 (CUNHA; VELASCO, 2019).
A gramática da matemática é um sistema de regras que rege, por exemplo, as operações e o cálculo de equações. Ela guia o uso de determinados símbolos que seguem uma regra de formação, bem como as regras que governam um determinado jogo de linguagem, tal como as equações. O significado de um signo está no uso que fazemos dele, na aplicação do signo. O uso dos signos ∈, ∉, ⊂, ⊃, ⊆, ⊇, ⊄ estabelecem as relações entre elementos de conjuntos e entre os próprios conjuntos (SILVEIRA, 2017, p. 9-10).
Cunha e Velasco (2019) notam, inclusive, semelhanças entre as gramáticas das línguas naturais (como a língua portuguesa) e a gramática da linguagem matemática, como a derivação de palavras por afixação, sinonímia, a utilização de pontuação e até mesmo o uso de gírias, como quando dizemos “passa para o outro lado com o sinal trocado” (CUNHA; VELASCO, 2019, p. ix). Nesse sentido, interessa discutir as particularidades dessa gramática e qual a relevância de dominá-la para o sucesso no aprendizado da matemática.
Para Wittgenstein (1999), a gramática descreve as regras de uso da linguagem, define o que faz ou não faz sentido dizer ou fazer, especifica, por exemplo, quais combinações de expressões linguísticas são possíveis, isto é, as regras da gramática são o nosso padrão de correção para o uso correto da linguagem, estabelecem o que é certo ou errado. É nesse sentido que podemos falar da gramática do compreender, ou da gramática do xadrez ou ainda em proposições gramaticais.
As proposições gramaticais, tais como: “2 + 2 = 4”, “todos os homens solteiros não são casados”, “bebês não podem fingir”, “O vermelho existe”, são proposições que expressam regras gramaticais, estas se diferenciam de enunciados empíricos, pois nada descrevem, nada dizem a respeito do mundo, apenas nos fornecem regras para o uso de palavras ou conceitos, estabelecem relações internas entre conceitos (entre “solteiro” e “não casado”, por exemplo), nos permitem transformações de proposições empíricas (SILVA, 2011, p. 39, grifos em itálico do autor).
Silveira (2020) comenta que a falta de domínio da gramática da matemática confunde os estudantes em situações de aprendizagem, seja por uma instrução mal realizada pelo professor, seja por uma expressão ambígua no texto, ou ainda pelos diversos usos que uma mesma proposição matemática pode ter. Silva (2011, p. 63) apresenta-nos um exemplo de tais erros ao notar, em sua pesquisa, que os discentes “misturavam” seu aprendizado sobre o elemento neutro na multiplicação e as multiplicações por múltiplos de dez (10):
Outro equívoco observado no aprendizado das multiplicações por dez, cem e mil era achar que o resultado seria sempre igual ao outro fator da multiplicação. Os alunos argumentavam que quando multiplicamos por zero o resultado é zero e que o número um é o elemento neutro da multiplicação, de modo que uma multiplicação como “100 × 25” teria 25 como solução.
Retomando as reflexões suscitadas na introdução, é nesse sentido que defendemos a relevância do aprendizado da gramática da linguagem matemática, pois não se trata de mera memorização de símbolos, nessa perspectiva, saber a gramática (as regras) é fundamental para realizar as traduções. Se considerarmos o aprendizado da linguagem matemática semelhante ao aprendizado de uma língua natural, é comum esperar que ocorram malentendidos na comunicação e confusões no aprendizado das expressões linguísticas: assim como uma criança que está aprendendo a língua portuguesa pode confundir as palavras caso ou caos, na aprendizagem da matemática é comum o aprendiz confundir 3x2 com (3x)2.
Para se comunicar bem em linguagem matemática, é importante também saber sua gramática. Para isto, é necessário conhecer suas letras (seu alfabeto), a fim de podermos formar palavras, depois frases e, em seguida, estudarmos suas regras gramaticais. As regras gramaticais de uma língua têm a mesma função das regras de um jogo; em ambos os casos, é necessário distinguir o momento adequado para a utilização das “peças” e das regras (CUNHA; VELASCO, 2019, p. ix, grifo em itálico dos autores).
Os autores sustentam ainda que a linguagem matemática possui dialetos, a saber o “Aritmetiquês”, o “Algebrês”, o “Logiquês”[5], entre outros. Nesse sentido, na busca de um ensino e aprendizado satisfatório, isto é, quando os discentes sabem ler e escrever em Matemática, a tarefa de alunos e professores em situações de ensino é a de traduzir a linguagem matemática para a língua natural, em nosso caso, a língua portuguesa. A título de exemplo, “”, do “Logiquês” pode ser traduzido como “a afirmação q é verdadeira, à condição de p” (CUNHA; VELASCO, 2019).
TRADUÇÃO DE TEXTOS MATEMÁTICOS
Em seus estudos sobre tradução, Silveira (2014) apresenta um debate a respeito das possibilidades de traduzir: é mais adequada uma tradução “ao pé da letra”, palavra por palavra, ou deve-se dar preferência a uma tradução que privilegie o sentido do que está escrito. Sobre a tradução em Wittgenstein, Oliveira (2005) esclarece que a busca por uma tradução palavra por palavra não é possível, pois representa a busca por essências, como se nossas expressões linguísticas possuíssem um significado fixo.
Traduzir de uma língua para outra é um exercício matemático, e a tradução de um poema lírico, por exemplo, para uma língua estrangeira, é análoga a um problema matemático. Porque se pode formular o problema “como se deve traduzir (isto é, substituir) esta piada (por exemplo) para uma piada na outra língua?” e este problema pode ser resolvido; mas não houve um método sistemático de o resolver (WITTGENSTEIN, 1989, § 698).
Se o uso linguístico é contextual, não há como se estabelecer um método, um critério absoluto, daí não ser possível (ou adequado) uma tradução “ao pé da letra”. Assim, em ocasiões de ensino e aprendizagem o aluno, por vezes, tenta traduzir termo por termo, mas esbarra nos diferentes usos de uma palavra ou de simbologias específicas, é onde a linguagem natural fracassa. Por exemplo “o quadrado da soma de dois termos” pode ser confundido com a “soma de dois termos ao quadrado”, x² + y² e (x + y)², respectivamente (SILVEIRA, 2014). É assim que a comunicação entre professor e alunos é essencial, pois é por meio dela que o docente pode compreender o que pensam seus alunos.
É por meio da linguagem do aluno que podemos encontrar a origem de suas confusões e erros, como também, é por meio da linguagem que podemos lhe ensinar a traduzir corretamente um texto matemático para que o texto lhe forneça sentido. Os sentidos da linguagem cotidiana necessariamente não convergem com os sentidos na matemática (SILVEIRA, 2014, p. 70).
O exemplo da soma de termos algébricos mencionado no parágrafo anterior ilustra, dentre outros aspectos, como se dá a leitura e a interpretação de textos matemáticos, que podem ser entendidos pelos alunos de maneira diferente. Assim, quando dizemos “o quadrado de um número” o aluno pode até retrucar: - de que número se trata? E quadrado tem número? Associando a frase à figura de um quadrado. Ao mesmo tempo a frase anterior pode ser enunciada como: um número elevado ao quadrado. Para o professor, tanto faz, mas para os alunos, é como se disséssemos: a diferença entre dois números é 20. Eles perguntam logo em seguida: - que números são esses? Ou ainda, passam a procurar estabelecer uma comparação (de semelhança ou diferença) olhando para a forma do número.
O tema tradução, em especial, quando se trata de enfatizar o papel da linguagem matemática no ensino e na aprendizagem, há alguns anos faz parte das investigações do Grupo de estudos e pesquisas em Linguagem Matemática (GELIM), na Universidade Federal do Pará (UFPA), iniciadas pela professora Marisa Silveira. Não obstante, trata-se aqui de uma vertente da tradução, que não é a tradução linguageira, ou seja, a tradução de uma língua para outra e, nesse sentido, assinalamos com essa observação a título de situar o leitor em função do nosso intuito.
Assim, para quem ouve a palavra tradução, o caminho mais evidente parece ser o de que toda tradução sugere uma interpretação, a partir de uma determinada expressão idiomática, ou seja, paira sempre a ideia de que traduzir deve ser sempre o rito ou ato de passagem que se dá entre duas línguas de países com idiomas diferentes. Por outro lado, o verbo traduzir aqui, na medida do possível expande-se para o contexto de investigações de uma linguagem específica, a linguagem matemática. Nesse sentido, o objetivo do verbo traduzir, refere-se a aspectos simbólicos, sintaxes e gramática da matemática na perspectiva filosófica wittgensteiniana. É importante, ressaltar que há pesquisas no campo da literatura e tradução que vem sendo desenvolvidas, de modo particular sob um viés filosófico wittgensteiniano pelo pesquisador e especialista em língua germânica, Paulo Oliveira, da Unicamp.
Na segunda fase de seus escritos, nas Investigações Filosóficas (1999), Wittgenstein assinala que a tradução pode ser vista como um jogo de linguagem. No aforismo 199 das IF o mestre de Viena ressalta “compreender uma frase significa compreender uma língua. Compreender uma língua significa dominar uma técnica”. Essa ilação, nos permite, a partir dos jogos de linguagem, identificar analogias e estabelecer comparações, que podem ser vistas como tradução, adornada por regras de comunicação, extensivas a instituições como a escola, e por conseguinte à linguagem matemática. Na esteira do pensamento wittgensteiniano, Le Du (2009) assinala que há uma aproximação ou equivalência entre traduzir e interpretar.
No campo mais específico da Hermenêutica, Gadamer (1999) também entende tradução como interpretação. Vale ressaltar que as duas versões de tradução como jogo de linguagem ou vice-versa e a de tradução como interpretação, atribuídas à Wittgenstein, bem como as reflexões de Gadamer, são apenas algumas das contribuições que tomamos aqui, como exemplos acerca do que salientam nossas discussões. Há inúmeros autores e tradutores como Paul Ricoeur, Walter Benjamin e George Steiner, que dedicaram tempo e habilidades notáveis no campo da tradução literária e científica, merecedores de atenção.
Há, portanto, uma especificidade característica e até certo ponto restritiva em nosso intuito, quando optamos por mencionar que a linguagem matemática pode ser vista como uma das vertentes da tradução. Com esse propósito, deslocamos, de certa forma, o eixo tradutório do campo literário e das línguas estrangeiras para o campo de atuação dos estudos da matemática como linguagem. Esse desvio ou novo caminho tradutório que adotamos no âmbito da Educação Matemática, tem predecessores recentes quando se trata de pesquisas dessa natureza, cuja temática versa de maneira específica sobre obras, conceitos e simbologias da matemática.
Não negamos, portanto, ao discutir sobre a tradução do ponto de vista da tradução de textos matemáticos qualquer atividade tradutória já realizada em seu nicho de atuação central, que é traduzir de uma língua para outra, palavras, frases e textos clássicos da literatura mundial, como A Ilíada, Dom Quixote ou Macbeth.
A restrição a que nos referimos no parágrafo anterior deve ser entendida não como algo a parte do universo tradutório, mas como um interesse particular em lidar com objetos do conhecimento que possuem um teor residual do ponto de vista formal, a exemplo do que mencionou Granger (1974) sobre a linguagem simbólica da matemática.
Gonçalves (2010; 2011), Galelli (2012), Silveira (2014) e Melo (2018) desenvolveram pesquisas que tem o propósito de apresentar uma nova vertente investigativa nos domínios da tradução, considerando esta perspectiva no contexto da Educação Matemática. Há, nestas discussões, uma preocupação mais didática e estética voltada à interpretação de textos matemáticos milenares como “Os Elementos” de Euclides, a exemplo do que fez Galelli (2012). Vale ressaltar que o autor mesmo dando prioridade ao texto matemático, não se afastou propriamente do contexto mais amplo da tradução literária.
Podemos destacar também, o aspecto tradutório de textos matemáticos que foi evidenciado por Gonçalves (2011), sobre a materialidade de documentos históricos como os tabletes Baquir em argila, encontrados em escavações da antiga região da Mesopotâmia.
Cumpre assinalar que estas pesquisas por serem recentes na Educação Matemática e versarem sobre casos específicos de tradução de textos matemáticos, destinam-se a priori a um público mais voltado à pós-graduação, mas não se resumem necessariamente a esse nível de atuação. No contexto escolar, o exemplo do tablete de Baquir não se aplica diretamente em função da necessidade de conhecimentos oriundos de pesquisas científicas, que não são adequadas ao estilo de pesquisas escolares realizadas por alunos da Educação Básica, em função da complexidade exigida para tal atividade.
Outras observações que investigam de modo específico a tradução de textos matemáticos no ensino e na aprendizagem, podem ser encontradas no que foi discutido por Silveira (2014). A autora ocupou-se de mostrar que na perspectiva do jogo de linguagem wittgensteiniano, a passagem da linguagem matemática para a linguagem natural (tradução) segue regras e normas interpretativas que passam pelo olhar dos estudantes.
Silveira (2014) destaca que o campo visual dos alunos influencia no seu entendimento em se tratando de objetos matemáticos. Consequentemente, as regras que eles devem aprender são, por vezes, distorcidas por interpretações próprias ou pelo que não conseguem perceber acerca dos conceitos matemáticos. Nesse sentido, eles não conseguem estabelecer relações ou fazer conexões a partir da linguagem simbólica da matemática, em qualquer campo que se façam esses usos, para que não se restrinja o uso de símbolos apenas à álgebra. Desse modo, destaca-se que a linguagem dura (formal) da Matemática foi adaptada para ser ensinada nas escolas e tem o livro didático como meio para o aprendizado dos alunos.
Consideramos, portanto, que houve mudanças históricas na escrita algébrica ao longo dos tempos, a exemplo do que ocorreu com a álgebra retórica e a álgebra sincopada, para que pudéssemos fazer tais usos em atividades de ensino, tendo em vista o contexto da matemática escolar. Reconhecer a evolução da álgebra em diferentes períodos históricos e notar tais mudanças, requer conhecimento técnico e específico que cabem aos professores e pesquisadores, que lidam com a matemática acadêmica. Esses exemplos não separam a linguagem matemática em polos distintos, apenas esclarecem o nível de aplicação da álgebra em função de seus usos, para que possamos compreender os seus significados.
Assim, enquanto a linguagem algébrica (escolar) é destinada aos alunos da Educação Básica por exemplo, a linguagem algébrica (acadêmica), destina-se aos futuros professores de matemática. Por esses motivos, ainda que a linguagem algébrica seja governada por meio de conhecimentos lógicos e regras de usos, pode não fazer sentido para os alunos, como algumas operações aritméticas mais corriqueiras do cotidiano. E mais, há resíduos na linguagem matemática (simbologias e notações) que não são capturados no texto por falta de domínio dos conceitos exclusivos da matemática, tarefa essa destinada aos profissionais. É nessa perspectiva que se dá a tradução de textos matemáticos como atividade que possui critérios técnicos, que é uma atribuição dos professores e chega até os alunos como um texto que precisa ser interpretado e compreendido.
Ao enunciarmos uma regra como “todo número elevado a zero é igual a 1”, não se trata apenas de um enunciado solto, mas da consequência de uma propriedade da potenciação, não se trata de uma descoberta ou de um fato empírico, mas de uma regra interna da matemática. E, ressalta-se, essa regra precisa ser ensinada. Não é simplesmente uma ordem do tipo “faça assim”. Wittgenstein no aforismo 459 das I.F. orienta que “nós traduzimos ora para uma proposição, ora apara uma demonstração, ora para uma ação” e nisso consiste em um jogo de linguagem.
Não é aconselhável, do ponto de vista docente, deixarmos que um texto matemático passe por uma livre interpretação pautada apenas em critérios subjetivos dos alunos, sem que haja inferências coerentes e consistentes acerca da matemática. Esse jogo de linguagem interpretativo precisa passar pela supervisão e orientação dos professores, que conduzem, a nosso ver, o processo de tradução de uma linguagem para outra na sala de aula. Desse modo, Wittgenstein adverte no aforismo 198 das I.F que, “as interpretações por si só não determinam o significado.
Insere-se no âmbito da tradução na matemática observações de cunho teórico, em parte, oriundas do que foi pensado por Silveira (2014) sobre a tradução de textos matemáticos e que foram desenvolvidas também por Melo (2018), no intuito de adensar as pesquisas sobre o tema. Para tanto, fez-se necessária uma imersão nos domínios da tradução literária e linguística, para estabelecer diferenças entre traduzir a matemática e traduzir na matemática como foi sugerido pelo professor Paulo Oliveira em 2016, durante uma palestra no I Seminário Nacional de Linguagem e Educação Matemática, realizado em Belém, na Universidades Federal do Pará.
Amparado em um referencial preponderantemente filosófico, as discussões apresentadas por Melo (2018) procuraram mostrar que é possível, mesmo sem estar munido de uma teoria, discutir como determinados conceitos da matemática se constituem com ênfase na linguagem. Essa pesquisa destaca diversos conceitos da filosofia wittgensteiniana, com prevalência para o conceito chave de jogo de linguagem, com o objetivo de cunhar dois outros conceitos inéditos na Educação Matemática - a saber - a tradução interna e jogos de imagens, tendo em vista a particularidade de garantir a condição de uma análise epistemológica da investigação.
Sendo assim, é possível afirmarmos que a partir de uma filosofia e seus desdobramentos na educação, há espaço para contribuições de cunho científico. Entenda-se com essa afirmação que não é objetivo da Filosofia produzir ciência, mas, não há impedimentos para que possamos usar conceitos filosóficos no contexto da Educação Matemática, em especial, acerca da linguagem matemática para produzir teses, não porque se faz necessário modificar conceitos matemáticos já instituídos, mas pela possibilidade de que tais conceitos, podem ser estudados a partir de uma tradução interna na matemática como um jogo de linguagem.
Tais conexões, a nosso ver, trouxeram à Educação Matemática, em específico, outras oportunidades de discussão em sala de aula, que se somam às discussões da semiótica, da didática da matemática e da formação de professores, adornadas por teorias, mas agora, sob a perspectiva de uma filosofia e de uma teoria de cunho epistemológico como a que foi idealizada por Arley Moreno (in memoriam) entre 2005 e 2015, chamada Epistemologia do Uso[6], em fase de escritos finais, sob os cuidados da professora Cristiane Gottschalk.
Como vimos, ainda que recentes, se comparados a diversas pesquisas no âmbito da Educação Matemática, os estudos e pesquisas sobre tradução, trouxeram novas perspectivas que podem ser disseminadas ao contexto da sala de aula. Podemos perceber isso nos estudos da historiografia, visando aspectos de uma arqueologia dos tabletes de argila ou das conexões entre a tradução e a matemática pelo olhar de estudos literários. Somam-se a esse cenário as discussões sobre linguagem matemática e tradução, pautadas na filosofia de Ludwig Wittgenstein, que vem se consolidando enquanto vertente de estudos e pesquisas.
Devemos assinalar, ainda, que certas discussões sobre tradução na matemática estão em fase de absorção e disseminação quando se trata de ensino e aprendizagem da matemática. Absorção no sentido de que a discussão sobre tradução de textos matemáticos na perspectiva da filosofia wittgensteiniana se deu de forma mais intensa no contexto da pós-graduação, com as pesquisas seminais realizadas por Silveira (2014). A partir da publicação da autora, outras pesquisas como as que citamos anteriormente, nesta seção foram realizadas sobre o teor tradução de textos matemáticos, daí a menção sobre disseminação.
Tais publicações, portanto, não foram pensadas inicialmente como metodologia, mas como ponto de partida para novas discussões em função do teor de seus objetos de investigação, por serem desenvolvidas a partir da expertise de profissionais que lidam com o ensino da matemática acadêmica e não diretamente com a matemática escolar.
Ressalta-se, desse modo, que as discussões sobre tradução na matemática aqui mencionadas, requerem conhecimento técnico e vivências no campo de atuação docente, esta vertente, a priori, não foi pensada para ser usada de forma ampla na aprendizagem, seus usos seriam mais adequados ao ensino, mas nada impede de que os frutos dessas discussões, ora filosóficas ora teóricas, possam ir aos poucos tomando forma e se aproximando da sala de aula em função de suas contribuições.
Para encerrar temporariamente essa breve incursão pelos domínios da tradução na matemática, ressaltamos que outra teoria ancorada em parte na filosofia de Wittgenstein, está em curso e prestes a ser consolidada, a partir de estudos realizados pelo professor Paulo Oliveira, intitulada previamente de Epistemologia do Traduzir.
RELAÇÕES ENTRE TRADUÇÃO E GRAMÁTICA NA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
Intentamos nesse tópico abordar as relações entre gramática e tradução na Educação Matemática, a partir de uma abordagem wittgensteiniana. Se considerarmos que a matemática é uma linguagem e, assim, possui uma gramática, e que pode ser traduzida para outra linguagem, como uma língua natural, então, quais os efeitos no ensino e aprendizagem, isto é, há de se pensar a necessidade de gramática na tradução? Quando se traduz de uma língua para outra, há necessidade de gramática? Se há, qual o nível de importância? Mas tomemos essas perguntas no contexto de ensino e aprendizagem da matemática. Qual a importância de regras no processo tradutório da linguagem matemática?
Austin e Howson (1979) e Pimm (2002), entre outros, lançaram há algumas décadas indagações sobre a linguagem matemática na educação, como, até que ponto a matemática pode ser considerada uma linguagem? Machado (1998), entende que a matemática não é uma linguagem, mas sim, possui uma linguagem, pois ela depende da língua natural, por não possuir oralidade, ou seja, a matemática tem uma natureza diferente de uma língua natural. Otte e Barros (2015) entendem que a matemática pode ser considerada uma linguagem por aqueles que se utilizam dela, mas para os matemáticos, ela seria uma ciência, pois é o lugar de estudo. Pimm (2002), assinala que a matemática poderia ser entendida como uma linguagem para fins educacionais. Para esses dois últimos autores, ver a matemática como uma linguagem é algo que depende da intenção. Pimm (2002) acrescenta ainda que a matemática não é uma linguagem natural, no mesmo sentido que é o inglês e o japonês. Se a matemática não é uma língua natural, poderíamos fazer um paralelo sobre gramática e tradução?
Antes de adentramos de vez nessa questão, devemos indicar o que a filosofia de Wittgenstein entende sobre a matemática ser ou não uma linguagem. De fato, não encontramos de modo taxativo essa definição, mas pensamos que o filósofo compreendia a matemática como uma linguagem, se entendermos linguagem já em seu uso, pois ele pensava que “o signo, por si só, é morto” e este vivia no uso que se fazia dele. Tanto que Bouveresse (1987) entendia que para Wittgenstein, a Matemática seria um sistema de regras, e que se torna linguagem na sua aplicação. Gottschalk (2004) compreende que a matemática da escola pode ser vista como um jogo de linguagem, uma aplicação do sistema de regras, como foi mencionado por Bouveresse (1987).
Wittgenstein (1999) compreende jogos de linguagem como conjunto da linguagem e das atividades com as quais está entrelaçada. Assim sendo, podemos entender a partir de uma nova perspectiva, que a matemática é um jogo de linguagem e para se jogar um jogo é preciso saber (dominar) as regras. Daí, que Bouveresse (1987) tenha interpretado em Wittgenstein a matemática como um sistema de regras, o que podemos chamar de gramática. Machado (1998), considera, assim como Granger, a matemática como uma linguagem formal, e por isso precisa da língua natural como suporte para significações, por lhe conferir oralidade.
Pensamos que não podemos entender a Matemática como um idioma, uma língua natural. Quando se traduz do francês para o português pode haver situações semelhantes ao se traduzir da linguagem matemática para o português (língua materna dos autores). Poderiam ser de fato considerados no ensino de modo paralelo, mas para tal, precisamos sopesar que esse paralelismo não é em absoluto, a não ser que reduzamos essa compreensão de tradução apenas ao sistema escrito e, assim, ao lermos uma expressão ou texto matemático, de certo modo já está se traduzindo, do mesmo modo se lêssemos um texto em língua estrangeira, pois converte-se a linguagem matemática (sem oralidade) para uma linguagem natural.
De fato, já consideramos isso como uma tradução, pois, como já dissemos antes, a tradução já é uma interpretação, como pensaram Wittgenstein, Gadamer e Silveira, mas no caso da matemática isso não se dá nos mesmos moldes das línguas naturais, justamente, pelo fato de a matemática não ser uma língua natural.
Nessa comparação com outras línguas, vale lembrar que inglês e francês, por exemplo, tem o mesmo alfabeto do português, já a matemática seria diferente, pois ela não tem exatamente um alfabeto que indicam fonemas, porquanto, ela não forma palavras, é uma linguagem ideográfica (como o japonês), e não tem oralidade (MACHADO, 1998), como uma linguagem formal (GRANGER, 2013), além de ser preenchida por tipos de simbologias, chamadas por Duval (1993) de sistemas de registros matemáticos, como o geométrico e gráfico.
Disso, trazendo a gramática para a discussão, perguntamos: para se fazer uma tradução de uma outra língua, preciso saber suas gramáticas? Essa é uma discussão realizada de modo mais profundo nos estudos de linguística, tradução literária, ensino e aprendizagem de línguas, mas vale aqui apenas como comparação. Coracini (2014), apresenta uma pesquisa em que observa como alunos dizem ter aprendido algumas línguas, e temos alguns que indicam estudos formais, outros que escutavam bastante em outra língua e ainda outros alegam que foram viver em outros países com línguas diferentes. Isso pode levar a pensar que alguém poderia aprender outra língua sem necessitar da gramática tradicional. Vemos em propagandas de cursos de idiomas, principalmente pela internet, professores de inglês e de outras línguas estrangeiras que falam em “imersão” na língua como forma de aprendizagem ou slogans do tipo “aprenda sem gramática”[7].
Não entraremos detidamente nessas discussões de propaganda, mas essa temática apresenta algumas semelhanças com algumas propostas de ensino em matemática[8], em que se defende que o aluno pode aprender conceitos matemáticos sem fórmulas, que é preciso ensinar o conceito e não os símbolos ou técnicas de resolução de exercícios e problemas, onde se critica o uso de exercícios algorítmicos (SILVA, 2014; FELICETTI; GIRAFA, 2011; MORETTO, 2003).
Assim, como há também no ensino de línguas a defesa de um ensino contextualizado, em que o aluno não deve traduzir para aprender, mas ele deve entender as palavras pelo contexto, no ensino de matemática temos algo próximo, quando se diz que o aluno precisa pensar sobre os conceitos, sobre problemas e situações, e assim o professor precisaria levar o aluno a pensar sobre possibilidades de resolução, mesmo antes de se apresentar a simbologia daquele conteúdo e suas regras, isto é, sua gramática.
Por exemplo, Schliemann, Carraher e Brizuela (2011) falam em uma possibilidade de ensino de álgebra, antes de apresentar a linguagem algébrica tradicional. Eles mostram que se pode dar pistas e dicas para que o aluno chegue à forma de resolver e ao resultado, em que os alunos podem compreender o conceito de incógnita, por exemplo, e construir até mesmo uma simbologia própria para representar tal conceito.
No ensino de álgebra para as séries iniciais temos visto tentativas de uso de objetos (concretos) da realidade para tentar apresentar conceitos matemáticos, quando se usa símbolos ou objetos e se pede que o aluno resolva. Por exemplo, a soma de 5 maçãs mais 3 maçãs, com as maçãs representadas em desenhos. Outra tentativa é uso de quadrinhos que substituem locais vagos em operações, como + 8 = 11, que seria uma representação de uma equação do 1º grau, mas sem a utilização de letras, além da tentativa de iniciação a noções como variável, no estudo de relação de grandezas. Outro tipo de exercício comum é a representação da linguagem simbólica pela linguagem escrita por extenso, do tipo em que se pede para encontrar um número, como, “O triplo de um número é igual a metade de 48. Que número é esse?” e o uso de fórmulas em geometria.
Essas ideias levam à conclusão de que não se necessita de uma gramática ou um sistema de regras para se aprender uma linguagem, já que o mais importante são os conceitos. Mas precisamos já indicar que mesmo em uma tentativa de um ensino sem linguagem formalizada, a linguagem está como base, pois agimos de acordo com regras que são convencionais, e isso está na nossa linguagem ordinária e em muitos modos de agir. Oliveira (2004) entende que a aprendizagem de uma língua não é necessariamente dependente da gramática, pois ela não segue as regras gramaticais em muitos pontos, mas ela segue regras intrínsecas ao uso. Por exemplo, mesmo que um grupo de indivíduos se comunique não seguindo todas as regras da língua, a forma como se comunicam geram regras intrínsecas àquela comunidade.
Portanto, na língua natural é possível aprender sem o ensino explícito da gramática oficial, mas seja de que modo for, seguimos regras de fala de uma comunidade. Quando alguém vai aprender uma língua estrangeira em um método que diz que não apresenta gramática, o que ocorre é que as regras não são apresentadas explicitamente, mas para falar aquela outra língua existe alguma gramática. O que eles chamam de não precisar de gramática é não deter um tempo para aprender regras de modo explícito, mas aprender com o uso. E Wittgenstein defende que se o indivíduo sabe usar a apalavra de modo correto, ele segue a regra.
Mas na matemática, entendemos que a gramática é um elemento fundamental em sua aprendizagem. Quando aprendemos a falar, de fato não precisamos de uma gramática formal ou explícita, isso vamos aprendendo ao longo da educação formal. O mesmo ocorre para aprender uma outra língua, mesmo em um ensino tradicional, não aprendemos primeiro gramática para depois exercitarmos outras habilidades. Como temos dito: regras estão sendo seguidas.
Machado (1998), ao analisar a relação entre língua materna e matemática, faz uma discussão sobre técnica e significado e discute sobre o que vem primeiro, por exemplo, parece que no caso da matemática, primeiro se aprende linguagem, enquanto na língua materna, o indivíduo aprende primeiro a falar para depois fazer as relações com a linguagem escrita, no entanto, o autor indica que para se aprender qualquer coisa é preciso ter conhecimentos técnicos básicos, mesmo para quem está aprendendo a falar, segue regras ou técnicas de fala com as outras pessoas.
Machado (1998, p. 123) afirma que na aprendizagem de uma linguagem formal a aprendizagem de técnicas básicas, “as regras precisam ser bem conhecidas antes de se poder pensar em agir ou jogar”. Nessa esteira, o matemático Jean Dieudonné (1973, p. 13) diz: “Eu penso que o progresso em direção à intuição (dos objetos matemáticos) passa necessariamente por um período de compreensão puramente formal e superficial, o qual somente pouco a pouco será substituído por uma compreensão melhor e mais profunda”.
A noção de um ensino sem gramática seria devido à concepção referencial da linguagem, que ele considera que dominou a filosofia antes da virada linguística[9], e que se trata de uma compreensão da linguagem apenas como referência de um dado conceito, conhecimento ou ideia. Esse conceito estaria em um “lugar” extralinguístico, que para teorias cognitivistas ou psicológicas seria a mente, para teorias realistas, seria um mundo ideal ou a empiria. Já Wittgenstein (1999), faz uma mudança dessa compreensão e entende a linguagem como ponto de partida para a compreensão dos conceitos, ou seja, não se pode aprender sem linguagem.
Quando se diz isso, pode-se entender que estamos defendendo o uso da linguagem formal e sua gramática, e que só a partir dela seria possível o conhecimento, mas não seria esse nosso propósito. O que entendemos é que mesmo na tentativa de se ensinar sem a simbologia formal, a linguagem está presente, e é ela que permite a construção de noções pelo aluno, e a apresentação clara de certas regras convencionadas em signos específicos poderia já permitir ao aluno uma habituação com tais novidades. Com isso, não negamos quaisquer tentativas didáticas de ensino, mas destacamos a necessidade da compreensão de regras, e essas se diferenciam a depender do jogo de linguagem.
Como, então, se relacionam as diferentes gramáticas no processo de tradução? Qual a relação, por exemplo, da gramática do francês e do português? Entre línguas naturais a relação entre gramáticas depende das línguas, pois, temos línguas naturais com o mesmo alfabeto, outras ideográficas, temos construções frasais que ocorrem sintaticamente diferente, mudanças regras para gênero, número e grau, entre tantas outras. Precisaríamos nos deter em traduções específicas para abordar de modo mais profundo, mas entendemos que podemos considerar as disparidades gramaticais, de modo geral, como faremos adiante.
Austin e Howson (1979) apresentam diversas pesquisas sobre linguagem e Educação Matemática, e a partir delas, indicam, por exemplo, que há diferenças de aprendizagem em alunos bilíngues ou multilíngues, outras pesquisas mostram que determinadas línguas parecem favorecer a aprendizagem de matemática. Essas são pesquisas que podem ser realizadas nesse tema, como analisar a questão da língua portuguesa, isto é, buscar saber se há entraves ou facilitações que esta língua oferece quando se trata de aprender matemática. Essas são provocações que por enquanto só podemos teorizar.
Quanto às diferentes gramáticas, Castañeda (2002) parte da ideia de que os jogos de linguagem possuem gramáticas, então, a partir disso, o autor destaca que se se deseja justificar a gramática de uma linguagem a partir de outra linguagem, deve-se entender que de fato, esta corresponde a outra gramática, ou seja, corresponde a outras regras.
si se pretende justificar la gramática de un lenguaje a partir de la descripción de la realidad que resulta de otro lenguaje, tan sólo se está cotejando lo que se puede jugar en un determinado juego con lo que se puede jugar en otro. Sin embargo, de esta manera no se rompe con el condicionamiento del sistema de reglas de lenguaje sobre lo que se puede decir a partir de él. Este se mantiene en la medida en que se impone la gramática de otro lenguaje (CASTAÑEDA, 2002, p. 67).
Isso mostra que a gramática de uma linguagem é arbitrária e autônoma (MORENO, 2005), e, portanto, não depende de outras para ter sentido. Então, quando se fala em tradução, precisamos nos atentar para os possíveis problemas que podem ocorrer nesse processo, considerando que nele há um entrecruzamento de gramáticas (da linguagem matemática e da língua natural), tanto regras claras, quanto regras que podem ser mal compreendidas em falas de professores e alunos, em que podem ser levados diversos fatores, como cultura, classe social e incompreensões comunicativas de modo geral.
Devido essa diferença de gramáticas, no processo de tradução de outra língua, pode haver confusões, devido às semelhanças nas palavras, ou palavras iguais que tem sentidos diferentes ou mesmo palavras que possam ter o mesmo sentido, mas aplicações diversas. Por exemplo, a palavra em inglês “prejudice” parece para o português ser “prejudicar”, mas é “preconceito”. Em francês há casos de palavras exatamente iguais que tem sentidos diferentes, por exemplo, a palavra “sobre” em francês significa “sóbrio”, e “chute” significa “caída”.
Isso pode ocorrer também na tradução da linguagem matemática para a língua natural como o português. Por exemplo, a palavra “diferença”, que na matemática deve ser mais entendido como subtração e um aluno pode compreender como distinção de características. Por exemplo, Pimm (2002) diz que em uma dada situação se perguntou a um aluno “qual a diferença entre 24 e 9?”, em que um aluno respondeu que um era par e o outro ímpar, e outro aluno respondeu que um tem dois números e o outro tem um número. E, assim, tem-se em outras palavras, como igualdade, equivalência, semelhança e congruência, que tem sentidos próximos, mas na matemática, tais diferenças são mais rígidas. Outros problemas podem existir com símbolos como cruz (adição), traço (subtração), ponto (multiplicação), x (multiplicação, incógnita).
Pensamos que a questão da tradução deve ser pensada não como uma decodificação ou transliteração termo a termo, como já dissemos, pois aprendemos em contexto e no uso, então a tradução deve se dar na compreensão das regras, e essa compreensão só se mostra no uso correto dessas regras. Nesse sentido, vale ressaltar que a linguagem matemática tem um caráter próprio, que como já dissemos não podemos caracterizar como um uma língua natural, e isso já nos impõe várias reflexões sobre o paralelo que tentamos formular. Pois, de fato, poderíamos dizer que ao passo que vamos apresentando problemas e exercícios, as regras vão sendo apresentadas, mas também essas regras precisam ser expostas claramente.
Oliveira (2004), ao tratar do ensino de línguas, alerta que na busca de uma facilitação didática, muitas vezes se estabelecem confusões conceituais, “a facilitação didática deve cessar no instante em que começa a criar confusão conceitual. A explicação conceitualmente confusa pode gerar a impressão de ter facilitado o processo, momentaneamente, mas seus efeitos no longo prazo são absolutamente perniciosos” (OLIVEIRA, 2004, p. 343). Na tentativa de se facilitar a álgebra, com aritmética, geometria, o cotidiano, ou com uma linguagem mais simples, acaba mais causando confusão. “Tudo isso indica que não vale a pena procurar a facilitação didática quando se ultrapassa o limite da clareza conceitual, e quando não se leva em conta o trato real dado pelos aprendizes aos diferentes jogos de linguagem envolvidos” (OLIVEIRA, 2004, p. 358).
Afinal, o que estamos traduzindo quando traduzimos a linguagem matemática? Símbolos matemáticos ou textos com matemática? Acreditamos que a tradução não se resume aos símbolos, o que nos faria ver a tradução como uma decodificação, tão somente, mas é preciso compreender contextos em que a matemática se dá e para isso é necessário apresentar essas situações aos alunos, não esperando que por saberem certas regras eles saberão, consequentemente, situações com que se necessite dessas regras. Regras são formais e não são dependentes dos fatos da realidade, apesar de esses poderem colaborar em situações de ensino como exemplos e paradigmas. As questões aliadas à realidade, questões contextualizadas podem apresentar regras específicas, algoritmos, questões em textos, são jogos de linguagem diferentes que podem apresentar regras diferentes.
Dessa forma, no contexto do ensino, consideramos que é necessário que o professor tenha clareza das questões contextuais relacionadas a sua prática, ou seja, de que sua prática docente (assim como qualquer prática) está imersa em jogos de linguagem e consequentemente de regras. Não se pode esperar que o aluno sem conhecimento de regras construa conhecimentos, a não ser que isso seja feito de modo intencional e consciente, ou seja, como seria, por exemplo, um jogo de linguagem de adivinhação. Aqui não queremos nos limitar a criticar as práticas de contextualização, uso da realidade ou ensino por dedução, pois esses são jogos de linguagem diferentes, mas, sim, deixar claro que regras são parte de jogos e estas devem ser apresentadas claramente, se não o forem, o professor precisa ter clareza das limitações dessa prática. O grande problema é considerar que o aluno tem em si uma potencialidade construtora que antecede a linguagem. É necessário que ao aluno sejam apresentadas as regras de modo claro, mas isso não significa que isso não possa ser feito em meio ao uso. A linguagem matemática pode ser apresentada na sua aplicação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A linguagem é fundamental no ensino, devido ao fato de os processos comunicativos estarem na base da educação, e no caso do ensino de matemática isso ganha relevância maior devido à particularidade da matemática, ela em si é uma outra linguagem. Dessa maneira, entendemos que se torna preponderante a reflexão sobre tradução, que já vem sendo realizadas em outros estudos, como indicamos aqui.
Buscamos nesse texto discutir sobre essa questão, trazendo um outro conceito, o de gramática, já que há uma crítica na Educação Matemática a um ensino de regras, assim como há no ensino de línguas estrangeiras algo semelhante. Entendemos que o ensino é, do modo que for, permeado por regras, mesmo que de modo tácito. Mesmo que alguém critique o fato de a matemática ter muitas regras, com Wittgenstein compreendemos que a linguagem e as atividades humanas, em geral, têm. Defendemos, então, que nós professores, precisamos ter clareza disso, e buscar compreender tais regras e como trabalhar com elas no ensino de matemática.
Parafraseando Wittgenstein, consideramos que determinadas dificuldades no aprendizado da matemática advêm da má compreensão da gramática de sua linguagem. Buscamos aqui trazer relações com o jogo de linguagem da tradução e inferimos que, para traduzir matemática, é fundamental a gramática e, desse modo, a relação entre gramática e tradução mostra-se algo fundamental para a discussão do ensino de matemática, que pode ser desenvolvido com mais discussões teóricas e práticas, que pensamos ter feito aqui uma colaboração na introdução.
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Notas
Ligação alternative
https://www.revistasbemsp.com.br/index.php/REMat-SP/article/view/21 (pdf)