ARTIGOS CIENTÍFICOS
Uma noite de núpcias entre a prática do exercício e a prática da atenção: exercit(ação)2
A wedding night between exercise practice and attention practice: exercit(ação)2
Una noche de bodas entre la práctica del ejercicio y la práctica de la atención: exercit(ação)2
Revista de Educação Matemática
Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Brasil
ISSN: 2526-9062
ISSN-e: 1676-8868
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 19, núm. 4, e022047, 2022
Recepção: 19 Novembro 2021
Aprovação: 03 Março 2022
Publicado: 12 Agosto 2022
Resumo: Nesse artigo desenvolvemos a ideia de exercit(ação) 2 , uma noção pensada a partir de práticas mobilizadas pelas olimpíadas de matemática para nomear um movimento exercido por um estudante-egiptólogo sobre exercícios de matemática. Essa ideia é elaborada através de um conto, de inspiração deleuziana, e de articulações matemáticas através de uma composição envolvendo as palavras exercício, atenção e ação. A exercit(ação) 2 possuí certas características que foram associadas a enunciações extraídas de trabalhos selecionados dos anais do XII e XIII Encontros Nacionais de Educação Matemática.
Palavras-chave: Exercício, Deleuze, Atenção.
Abstract: In this article, we develop the idea of exercit(ação) 2 , a notion conceived from practices mobilized by the mathematical olympiad to name a movement exercised by an egyptologist-student on mathematics exercises. This idea is elaborated through a story, inspired by deleuzian, and mathematical articulations through a composition involving the words exercise, attention and action. The exercit(ação) 2 has certain characteristics that were associated from selected works from annals of the XII and XIII National Meetings of Mathematics Education.
Keywords: Exercise, Deleuze, Attention.
Resumen: En este artículo desarrollamos la idea de exercit(ação) 2 , noción concebida a partir de prácticas movilizadas por las olimpíadas de matemáticas para nombrar un movimiento ejercido por un estudiante-egiptólogo sobre ejercicios de matemáticas. Esta idea se elabora a través de un cuento, de inspiración deleuziana, y de articulaciones matemáticas a través de una composición que involucra las palabras ejercicio, atención y acción. La exercit(açãa) 2 posee ciertas características que se fueron asociadas a enunciados extraídos de obras seleccionadas de los anales de los XII y XIII Encuentros Nacionales de Educación Matemática.
Palabras clave: Ejercicio, Deleuze, Atención.
Repetir repetir – até ficar diferente.
Repetir é um dom de estilo.
Começamos tomando as letras de exercício, atenção e ação como elementos pertencentes a um corpo algébrico[3] e fazendo algumas repetições e variações:
Imaginemos uma noite de núpcias entre a prática do exercício e a prática da atenção. A prática do exercício com seus formalismos, sua ênfase na leitura do enunciado e escrita das respostas, sua lei de que um exercício possui uma, e somente uma, resposta correta, seu encanto pelos diferentes modos de expressar essa resposta, seu divertimento no que um exercício dá a pensar até que se consiga construir um meio de expressar a resposta correta e sua grande paixão por encontrar meios novos de escrever a resolução de um exercício. A prática da atenção, que anda meio fora de moda na atualidade, se encanta ao conhecer mais de perto a prática do exercício. Elas têm a sensação de que se completam! A atenção acostumada a ler e reler, a dedicar o tempo necessário para a execução das suas atividades, a não ter pressa, a estar presente no que faz, se realiza em sua união com a prática do exercício.
Essa noite de núpcias é atípica! A educação matemática está a observar, como um voyeur, e convida a filosofia da diferença. Dessa noite as expectadoras percebem a concepção de um movimento novo. Dão-lhe o nome de exercit 2, em homenagem às suas progenitoras.
Às vezes, há dúvida com relação à filiação da exercit 2. Será que ela poderia ser filha do paradigma do exercício com os cenários para investigação[4]? Mas, nesse caso seria uma filha feita a la Deleuze, pelas costas. Ela diz algumas coisas que são ditas tanto por um quanto por outro. No entanto, caso fosse filha deles, seria considerada uma filha monstruosa[5].
O exercício-conto acima é um convite para pensarmos sobre a prática do exercício na educação matemática escolar, especialmente a instigada pelas olimpíadas de matemática e que acontece em muitas escolas, universidades e institutos federais no Brasil nos dias de hoje. Para nós, essa prática foi um impulso para nos debruçarmos a estudar diferentes ações mobilizadas pelas olimpíadas de matemática e a dedicar os estudos de um doutorado em Educação em Ciências para investigar sobre essa temática. Será que as olimpíadas de matemática constituiriam um plano que permitiria a inscrição de práticas relacionadas ao exercício em educação matemática? Essa pergunta se faz necessária uma vez que percebemos certa interdição à essa prática em outros contextos quando ela não vem acompanhada de outras expressões tais como: exercícios contextualizados, exercícios da realidade do aluno etc.
Com o objetivo de investigar práticas disparadas pelas olimpíadas de matemática no Brasil e construir sentidos para esse estudo, iniciamos um movimento duplo. Por um lado, escolhemos como material empírico para a escrita desse artigo os anais do XII e XIII Encontros Nacionais de Educação Matemática (ENEM), onde buscamos por trabalhos que versassem sobre ações relacionadas às olimpíadas de matemática em nosso país. A escolha deste evento se deu porque acompanhamos Foucault quando esse pontua a necessidade do estatuto de cientificidade e do caráter institucional para que os discursos entendidos como “verdadeiros” se produzam e adquiram certa estabilidade ao adentrarem em um sistema de dispersão, que o faz circular de forma mais eficiente.
Nas palavras do filósofo, “a ‘verdade’ é centrada na forma de discurso científico e nas instituições que o produzem” (FOUCAULT, 2000, p.13). Frente a essa premissa, selecionamos ao todo quatorze trabalhos que discutem diferentes práticas que envolvem tais olimpíadas. Neles, destacamos algumas enunciações que compõem nosso estudo e que serão apresentadas dentro de retângulos na escrita desse artigo. Efetuamos uma análise desses excertos através de uma perspectiva foucaultiana, buscando ficar na superfície do dito, sem procurar por significados ocultos ou por alguma intenção que pudesse estar “por trás” do que está escrito. Assim, buscamos “não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo” (FOUCAULT, 2012, p. 7).
Dito de outra forma, ousamos catar na superfície desses materiais elementos para realizar possíveis articulações, que nos permitissem pensá-los. Como diria Nietzsche “é necessário permanecer valentemente na superfície, na dobra, na pele, adorar a aparência, acreditar em formas, em tons, em palavras, em todo o Olimpo da aparência” (NIETZSCHE, 2001, p. 14–15).
Sistematizando os quatorze trabalhos selecionados do XII e XIII ENEM com relação ao tipo de prática que eles abordam, observamos as seguintes densidades:
· 5 deles fazem referência à olimpíada interna a uma escola, regional ou estadual;
· 6 versam sobre projetos de preparação para as olimpíadas (sendo que um deles trata sobre uma olimpíada regional e por isso está incluído nessa categoria e na anterior);
· 2 trabalhos relatam atividades desenvolvidas com medalhistas;
· 2 relatam a utilização de problemas olímpicos para desenvolver conteúdos de matemática em aulas regulares ou em meio virtual.
A leitura dos trabalhos que compõem os anais dos ENEM’s nos levaram a atribuir um sentido, ao mesmo tempo, particular e amplo para a expressão olimpíadas de matemática, associando ele a diversas atividades que levam esse nome. Assim, nesse artigo, essa expressão se refere a competições internas a escolas específicas, a atividades municipais, regionais, estaduais ou nacionais, organizadas por algum grupo ou órgão. Além disso, compreendemos por práticas disparadas pelas olimpíadas de matemáticas diferentes ações que são mobilizadas por elas, se referindo a diferentes modos de estudo para se preparar para uma dessas competições, a atividades com medalhistas e também ao momento de realização da prova em si.
Ao efetuar uma análise do material empírico escolhido, buscando trabalhar as enunciações na superfície do dito, observamos certa centralidade conferida à prática de exercícios de matemática nos contextos ligados às olimpíadas. Dessa maneira, no desenvolvimento desse estudo, a temática das olimpíadas de matemática foi direcionando o nosso olhar para a prática do exercício na matemática escolar. Assim, o que escrevemos sobre a prática do exercício nesse artigo está embasado em excertos relacionados às olimpíadas, tornando essas duas superfícies interligadas nesse estudo.
Imbricado com o movimento anterior, realizamos um outro que consiste em buscar por elementos teóricos que pudessem potencializar o nosso pensamento para problematizar as práticas de exercícios de matemática através de “um ponto de vista educacional em termos das operações efetivas e reais realizadas por um arranjo particular de pessoas, tempo, espaço e matéria” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018a, p. 21). Nesse movimento, buscamos por suporte teórico nos estudos de Masschelein e Simons (2018a, 2018b), Larrosa (2002, 2004) e Larrosa e Rechia (2018) que têm potencializado o nosso pensamento para discutir a prática do exercício na matemática escolar, mais especificamente nos contextos relacionados às olimpíadas de matemática.
Uma vez que “as palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação” (LARROSA, 2002, p. 20-21), pensamos que precisamos ter atenção e cuidado com as palavras que usamos. Seria exercício uma das palavras que “talvez já estejam tão manipuladas que haveria de abandoná-las, assim, completamente, ‘deixá-las ao inimigo’, como dizia García Calvo” (LARROSA, 2004, p. 246)? Em alguns momentos chegamos a pensar que seria esse o caso: abandonar o uso da palavra exercício em nosso estudo. No entanto, pudemos perceber, através do nosso material empírico, que esta é uma palavra cara para a matemática escolar e que ainda vale a pena usá-la, ainda que seja necessário ter cuidado com o seu uso em contextos contemporâneos.
Assim, é a partir de um ponto de vista educacional, construído junto ao que Masschelein e Simons (2018a, 2018b) vêm pensando sobre a escola, que olhamos para a prática do exercício que é mobilizada pelas olimpíadas de matemática. Para Masschelein e Simons (2018b, p. 26) “é importante ressaltar que a escola é uma invenção da polis grega e que a escola grega surgiu como uma usurpação do privilégio das elites aristocráticas e militares na Grécia antiga” (grifo dos autores). Os autores enfatizam, que “a escola é uma invenção histórica e pode, portanto, desaparecer” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018b, p. 11). Movidos por essa preocupação, eles se dedicam a trabalhar “Em defesa da escola” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018b), como o título do seu livro propõe, trazendo algumas ideias potentes para pensarmos essa instituição e suas práticas nos dias de hoje.
Nesse contexto, para os autores, a escola possui um significado particular que é pensado a partir do que “os gregos chamavam de skholé: o tempo para o estudo e o exercício” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018a, p. 21, grifo dos autores). “Assim, queremos reservar a noção de escola para a invenção de uma forma específica de tempo livre ou não produtivo, tempo indefinido para o qual a pessoa não tem outra forma de acesso fora da escola” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018b, p. 28). Dessa forma, a escola é pensada como sinônimo de tempo livre, que deve ser criado para que os estudantes possam se dedicar ao estudo e ao exercício. Esse tempo livre não deve ser confundido com um tempo para o relaxamento ou para satisfazer as necessidades pessoais. Pelo contrário, é um tempo para a formação, no qual os estudantes podem se dedicar ao estudo de uma matéria e à prática do exercício.
[...] o tempo livre como tempo escolar não é um tempo para diversão ou relaxamento, mas é um tempo para prestar atenção ao mundo, para respeitar, para estar presente, para encontrar, para aprender e para descobrir. O tempo livre não é um tempo para o eu (para satisfazer necessidades ou desenvolver talentos), mas um tempo para se empenhar em algo, e esse algo é mais importante do que as necessidades pessoais, os talentos ou os projetos. (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018b, p. 98, grifo dos autores)
Para os autores, esse algo no qual os estudantes devem se empenhar é o estudo das matérias escolares. Assim, eles defendem que a operação de criar tempo livre deve ser acompanhada de uma outra: colocar a matéria de estudo sobre a mesa. Essa é uma metáfora criada por Masschelein e Simons (2018b, p. 110) para indicar que “a mesa da escola não é uma mesa de negociação; é uma mesa que torna possível o estudo, o exercício e o treinamento; é uma mesa sobre a qual o professor oferece algo”. A mesa pode ser também a lousa ou a tela, ou seja, a mesa é a superfície onde a matéria é apresentada (informação verbal)[6]. Nesse contexto, nos perguntamos: como colocar a matéria sobre a mesa em aulas de matemática senão, também, por intermédio de exercícios?
Ao empreender uma análise dos quatorze trabalhos que compõem o material empírico dessa investigação, pudemos perceber que os exercícios de matemática fazem parte das práticas de estudo da matemática escolar mobilizadas pelas diferentes ações instigadas pelas olimpíadas de matemática. Mais precisamente, parece-nos que através deles a matéria é colocada sobre a mesa nessas práticas. Pontuamos que algumas vezes eles são chamados de questões, de problemas ou de atividades pelos autores dos trabalhos. Apresentamos na sequência alguns excertos que visibilizam alguns modos com que os exercícios são mobilizados nessas ações:
Propor aos estudantes a resolução de problemas matemáticos ou blocos de exercícios buscando desenvolver neles a capacidade de racionar, imaginar e moldar problemas para conseguir encontrar a solução deles é um modo com que as olimpíadas de matemática colocam a matéria sobre a mesa nessas práticas e convidam os estudantes a se interessarem por ela. Nesse contexto, a partir da leitura de Larrosa e Rechia e dos trabalhos que compõem o material empírico desse estudo, realizamos um movimento de perceber a importância das práticas de exercícios em contextos escolares:
Procuro praticar a velha lógica do exercício. E os exercícios, para sê-lo, têm que ser bem regulados. Meus alunos não fazem o que querem, mas o que peço que façam, e o que lhes peço é muito rigoroso. Além disso, já sabes que tenho fama de professor exigente e não creio que meus alunos achem que faço as coisas com eles e junto deles. Eles têm umas tarefas e eu tenho outras, e cada um tem que fazer as coisas o melhor que pode e sabe. Mas, em todo caso, nem eles nem eu somos os protagonistas. E todas as tarefas que imponho (sim, imponho) têm a ver com formar a atenção (ao texto, ao mundo) e com provocar o pensamento. Algo que, evidentemente, requer disciplina, esforço, trabalho e um certo ascetismo. Uma certa suspensão, inclusive, do eu e de seus caprichos. (LARROSA; RECHIA, 2018, p. 306)
Soma-se a isso a percepção de que nas ações mobilizadas pelas olimpíadas de matemática os exercícios possuem certa permissão para assumirem uma posição central. Além disso, parece-nos que eles estão relacionados com formar a atenção e com provocar o pensamento nessas práticas. É através deles que a “matéria [...] parece assumir uma voz própria” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018b, p. 39) numa conversa entre o estudante e o exercício. Esses momentos de estudo parecem ter “a capacidade de dar uma voz ao objeto de estudo ou prática, seja ele matemática, linguagem, madeira ou estampas” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018b, p. 77). Dessa maneira, o exercício de matemática pode se tornar um meio da matéria de estudo adquirir voz própria e se comunicar com os estudantes. Ou dito de outro modo, os exercícios de matemática constituem-se em uma expressão da linguagem da matemática. Quando a matéria de estudo adquire voz, “a linguagem da matemática consegue ser autossuficiente – o seu enraizamento social é suspenso – e, por meio disso, ela se torna um objeto de estudo” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018b, p. 40).
Masschelein e Simons defendem que as operações de criar tempo livre e de colocar a matéria de estudo sobre a mesa devem ser acompanhadas da operação de suspensão, “isto é, de colocar temporariamente fora do efeito da ordem ou do uso habitual das coisas” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018a, p. 21). Isso significa, que “a escola deve suspender ou dissociar certos laços com a família dos alunos e o ambiente social, por um lado, e com a sociedade, por outro, a fim de apresentar o mundo aos alunos de uma maneira interessante e envolvente” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018b, p. 14). Os autores defendem que é através de tal suspensão que o conhecimento pode aparecer como matéria de estudo na escola, sem a obrigatoriedade de uma aplicação imediata para ele. Em nosso material empírico, vislumbramos tal suspensão através dos exemplos de exercícios que são apresentados em alguns trabalhos. Neles, parece que o interesse está voltado para a matemática que pode ser estudada através do exercício, independentemente de haver alguma aplicação direta dos conceitos estudados.
A exercit 2 é uma ideia que desenvolvemos na busca por um vocabulário que expresse diferentes movimentos que observamos ao analisar o nosso material empírico. Além disso, ela é produzida também pelo que nossos estudos teóricos nos deram a pensar até aqui. A exercit 2 é uma composição de três palavras-ideias: exercício, atenção e ação. A primeira delas faz referência aos exercícios de matemática que compõem as diferentes práticas geradas pelas olimpíadas de matemática. A segunda palavra coloca em cena uma condição necessária a um estudante-egiptólogo[7] em seus momentos de estudo junto aos exercícios de matemática. “Estar atento [...] é estar no que se faz, no que se lê, no que se diz, plenamente, de corpo e alma. Ou dito de maneira diversa, [é] suspender por um momento o eu (que nesses tempos é o único que interessa) e entregar-se à tarefa, ainda que não saibamos muito bem por que ou a troco de quê” (LARROSA; RECHIA, 2018, p. 67-68). Assim, a atenção que compõe a exercit 2 está relacionada com a matéria e com o estudo. Nessa perspectiva “a escola focaliza a nossa atenção em algo” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018, p. 51), no estudo das matérias escolares. A ação faz alusão ao movimento realizado por um estudante-egiptólogo para decifrar e interpretar os signos[8] emitidos pela matéria. Dessa maneira, essa expressão carrega consigo essas características.
Assim, adotamos a grafia exercit 2 para expressar uma ação atenciosa exercida por um estudante-egiptólogo sobre exercícios de matemática emitidos no encontro do estudante com a matéria, pois como afirma Deleuze “sem dúvida o signo, por si próprio, não se reduz ao objeto, mas ainda está parcialmente contido nele. Sem dúvida o sentido, por si próprio, não se reduz ao sujeito, mas depende parcialmente do sujeito, das circunstâncias e das associações subjetivas” (DELEUZE, 2010, p. 85). Pensamos também que esse movimento é análogo à escovação que o egiptólogo efetua com seu pincel (ou escova) sobre os artefatos de seu ofício, direcionando sua atenção aos detalhes e atribuindo sentido aos hieróglifos que surgem. Assim, dizemos que enquanto um egiptólogo efetua uma escovação sobre um artefato, um estudante-egiptólogo realiza uma exercit 2.
Inspiradas nas leituras teóricas e nas enunciações que compõem o material empírico, tornou-se visível para nós outras características que contribuem para, muitas vezes, compor a exercit 2 nos movimentos de estudo praticados por estudantes-egiptólogos em ações mobilizadas pelas olimpíadas de matemática. Usamos essas características para circundar alguns pontos que conseguimos vislumbrar a partir do nosso material empírico, atravessadas por nossos estudos.
A exercit 2 necessita de tempo, um tempo livre (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018b) que possibilite pensar sobre um exercício, testar hipóteses, discutir com os colegas, verificar se a resposta encontrada faz sentido. O tempo livre possibilita que se possa demorar em um exercício, pensar nas estratégias, verificar se a solução encontrada faz sentido, ou seja, praticar uma exercit 2.
Assim, a forma com que essas atividades são desenvolvidas cria tempo livre para que dentro delas sejam possíveis diversas práticas. É possível se demorar em um exercício, pensar sobre ele, discutir com os colegas. Esse tempo feito livre criado pelas práticas mobilizadas pelas olimpíadas de matemática também cria possibilidade para que o professor possa inventar variações de um mesmo exercício e que se possa pensar o que cada variação implica matematicamente, isto é, abre possibilidade para o estudante efetuar uma exercit 2.
Assim, faz-se necessário que o professor crie tempo e espaço para que encontros possam acontecer[9]. Ou dito de outra forma, que o professor não tente atribuir de pronto um sentido ao exercício, que não se coloque a explicar as suas nuances antes do estudante ter tempo para fazer sua exercit 2.
Rancière (2019) chama de mestre explicador o mestre que cria a ficção da necessidade de uma explicação para se poder compreender o mundo. Para o autor, “explicar alguma coisa a alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só” (RANCIÈRE, 2019, p. 24). Ao criar a necessidade da explicação minimiza-se o espaço-tempo exigido pela exercit 2. “Aquele, contudo, que foi explicado investirá sua inteligência em um trabalho do luto: compreender significa, para ele, compreender que nada compreenderá, a menos que lhe expliquem” (RANCIÈRE, 2019, p. 25). Em oposição a essa ideia, o autor apresenta o conceito de mestre emancipador, que teria por característica instigar a inteligência do estudante através de questionamentos. Fazendo uma ponte entre as ideias de Rancière e de Deleuze[10], podemos dizer que um mestre emancipador é um professor que se propõem a fazer com seus estudantes, enquanto um mestre explicador é um professor que almeja que seus estudantes façam como ele.
Nos excertos acima, observamos o mestre-professor agindo por meio de questionamentos para que o estudante, por si só, faça o seu aprendizado. Estes excertos também exemplificam outra ideia presente em Rancière (2019, p. 31) que “eles haviam aprendido sem mestre explicador, mas não sem mestre”. O professor estava presente em todo o processo, pronto a instigar o pensamento dos estudantes-egiptólogos com suas perguntas. Nesse contexto, pode-se pensar no “professor como mediador que conecta o aluno ao mundo” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018b, p. 57), que conecta o estudante-egiptólogo ao mundo da matemática.
Algumas das características marcantes das práticas em questão nesse artigo é a orientação relativa à leitura atenta dos enunciados dos exercícios, à elaboração de estratégias para a resolução e à escrita por extenso das respostas, detalhando a resolução. Ou seja, um esforço na direção de interpretar os signos emitidos pelo encontro do estudante com a matéria.
As características que mostramos até o momento que podem acompanhar a exercit 2, levam a uma outra: a disciplina, ainda que este seja “um termo que não é, entusiasticamente, recebido nos círculos educacionais atuais” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018b, p. 63-64). Parece-nos que a disciplina é uma característica marcante aos atletas que competem em modalidades esportivas, uma vez que estes se dedicam intensamente ao treinamento[11]. Talvez este seja um ponto de contato entre as características dos jogos olímpicos e as das olimpíadas de matemática. Além disso, talvez a reverberação da disciplina para o estudo e para a atenção nas práticas instigadas pelas olimpíadas de matemática seja mais facilmente aceita e autorizada no contexto educacional por estar relacionada a uma olimpíada.
A disciplina na escola (também na universidade) é disciplina de estudo. Por isso tem a ver com atenção. A disciplina escolar (também na universidade) consta de regras, mandados ou imperativos de atenção. A única disciplina válida em educação, a única que é pedagógica, é a que tem a ver com a atenção. A escola (e a universidade) disciplina os corpos e as mentes, claro que sim, mas para que estejam atentos. A disciplina escolar e o professor que a impõe, tentam produzir mentes e corpos atentos, corpos e mentes estudiosos, corpos e mentes que se submetem às exigências da matéria de estudo. (LARROSA; RECHIA, 2018, p. 132)
Assim, “queremos reservar o termo ‘disciplina’ para seguir ou obedecer às regras que ajudam os alunos a alcançarem aquela situação inicial em que podem começar ou manter o estudo e a prática” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018b, p. 64-65). A palavra disciplina não chega a ser mencionada nos trabalhos que compõem os anais do XII e XIII ENEM com o sentido que estamos utilizando provavelmente pela conotação negativa que costuma ser associada a ela)[12], no entanto percebemos de outras maneiras esta característica nos trabalhos. Uma vez que a disciplina escolar é a que tem a ver com a atenção e com o desenvolvimento do estudo, são nesses pontos onde a visualizamos. Ou dito de outro modo, percebemos nos excertos a disciplina escolar nos trechos em que os professores relatam que os estudantes estão envolvidos com o estudo e desenvolvendo as tarefas com atenção. Dessa maneira, essa disciplina se torna visível na participação e no envolvimento dos estudantes.
Através da atenção e da disciplina, a exercit 2 convoca os estudantes a estarem presentes no que estão desenvolvendo, a estarem no que “se hace”[13]. Isso nos conduz a um outro elemento que acompanha esse movimento: o interesse pela matéria de estudo. Parece-nos que as práticas vinculadas ao estudo da matemática mobilizadas pelas olimpíadas podem despertar o interesse dos estudantes pela matéria. Aqui, falamos junto com Masschelein e Simons (2018b) para pontuar a diferença entre interesse e motivação: “enquanto a motivação é uma espécie de caso pessoal, mental, o interesse é sempre algo fora de nós mesmos, algo que nos toca e nos leva a estudar, pensar e praticar” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018b, p. 52). Temos a impressão de que nessas práticas a matemática, muitas vezes, se torna esse “algo de fora”, mencionado pelos autores, que gerar interesse dos estudantes-egiptólogos.
Os apontamentos que vimos fazendo nos indicam que nessas ações o foco está no estudo da matemática. Por mais que essas práticas sejam vinculadas às olimpíadas de matemática, nos parece que a competição é suspensa nelas e o foco se torna o estudo, independentemente da relação que o estudante tenha com a prova em si. O que é colocado em questão é o “conhecimento em prol do conhecimento, e a isso chamamos de estudo” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018b, p. 40, grifo dos autores).
Larrosa sistematiza, diferentes movimentos que estamos associando à exercit 2:
O estudante isola o que leu, repete-o, rumina-o, copia-o, faz variá-lo, recompõe-no, diz e contradiz o que leu, rouba-o, fá-lo ressoar com outras palavras, com outras leituras. Vai-se deixando habilitar por ele. Dá-lhe um espaço entre suas palavras, suas idéias, seus sentimentos. Torna-o parte de si mesmo. Vai-se deixando transformar por ele. E escreve. (LARROSA, 2003, p. 67)
Pensamos que um estudante-egiptólogos pode desenvolver os seus meios de estudar, os seus meios de ler, de repetir, de ruminar, de compor e de recompor suas escritas, de realizar uma exercit 2. Também pode desenvolver os seus meios de aprender e de se expressar na linguagem matemática, uma vez que “não há método para encontrar tesouros nem para aprender, mas um violento adestramento, uma cultura ou paideia que percorre inteiramente todo o indivíduo” (DELEUZE, 2018, p. 222, grifo do autor).
Neste artigo buscamos apresentar algumas articulações que estamos efetuando a partir de encontros entre as filosofias da diferença e a educação matemática. Nessa escrita, criamos a ideia de exercit 2 enquanto um movimento nascido da união entre a prática (ação) do exercício e a prática da atenção. Pensamos que essa noção se faz necessária para expressar elementos que vêm se tornando visíveis em nosso material empírico ao sermos atravessadas pelas leituras de Masschelein e Simons (2018a, 2018b), Larrosa (2002, 2004) e Larrosa e Rechia (2018).
A partir dessa inspiração, transpiramos para articular e construir algumas características que contribuem para compor a exercit 2 nos movimentos de estudo praticados por um estudante-egiptólogo sobre exercícios de matemática em ações mobilizadas pelas olimpíadas. Destacamos que essa prática exige a criação de tempo livre para o estudo e para o exercício da matéria e assim abre possibilidades para que a exercit 2 possa acontecer. Além disso, o tempo livre criado pelas olimpíadas de matemática possibilita a interpretação e permite variações para um exercício. Parece-nos que a exercit 2 está ao lado do professor emancipador, ao trabalhar com a escovação de um exercício, com a leitura atenta dos enunciados, com a elaboração de estratégias e com a escrita por extenso das respostas, buscando gerar interesse pela matéria.
Assim, buscamos evidenciar a exercit 2, fruto de um estudo de doutorado que se dedica a estudar práticas mobilizadas pelas olimpíadas de matemática e alguns usos que estamos fazendo a partir dessa noção.
REFERÊNCIAS
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Notas
Ligação alternative
https://www.revistasbemsp.com.br/index.php/REMat-SP/article/view/36 (pdf)