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O ESTADO E A GENERALIZAÇÃO DA FORMA EMPRESA: UMA ANÁLISE DA PERCEPÇÃO DE AGENTES PÚBLICOS ACERCA DO PAPEL DA SECULT EM PELOTAS/RS
THE STATE AND THE GENERALIZATION OF THE ENTERPRISE FORM: AN ANALYSIS OF THE PERCEPTION OF PUBLIC AGENTS ABOUT THE ROLE OF SECULT IN PELOTAS / RS
SINERGIA, vol.. 21, núm. 2, 2017
Universidade Federal do Rio Grande

Artigos Científicos

Ao encaminhar os originais, o(s) autor(es) cede(m) os direitos de publicação para a Sinergia, ficando expresso que o artigo é original, não tendo sido submetido à publicação em qualquer outro periódico nacional ou internacional, quer seja em parte ou em sua totalidade. Os direitos autorais pertencem exclusivamente aos autores. Os direitos de licenciamento utilizados pelo periódico é a licença Creative Commons, sendo permitidos o acompartilhamento (cópia e distribuição do material em qualquer meio ou formato) e adaptação (remix, transformação e criação de material a partir do conteúdo assim licenciado para quaisquer fins, inclusive comerciais.

Recepção: 10 Outubro 2017

Aprovação: 20 Fevereiro 2018

Resumo: Este estudo buscou analisar como o Estado, representado aqui pela Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Pelotas (Secult), contribuicom o processo de empresarização no campo da cultura da cidade de Pelotas. Para isso, foi realizada uma pesquisa qualitativa, do tipo descritivo-interpretativa a partir da técnica de estudo de caso. Ao se optar por uma abordagem foucaultiana, na qual o alinhamento ao ideário neoliberal contribui para a generalização da forma empresa, buscou-se descrever como ocorreram as transformações na orientação do Estado frente ao campo da cultura. Diante disso, foi possível perceber a existência de elementos neoliberais que caracterizam a ação do Estado e compõe o processo de empresarização, principalmente relacionado à publicação de editais, de descentralização e de formação cultural, o que acaba por contribuir para disseminar a ideia de reproduzir múltiplos indivíduos-empresa, compondo o tecido social.

Palavras-chave: Empresa, Cultura, Neoliberalismo, Empresarização.

Abstract: This study aimed to analyze how the state, represented here by the Department of Culture of the Municipality of Pelotas (Secult), contribute to the process of the enterprisation in the field of culture in the city of Pelotas. For this, we conducted a qualitative research, of descriptive-interpretative type, through a case study technique. By choosing a Foucaultian approach, in which the alignment to the neoliberal ideology contributes to the generalization of the enterprise form, we sought to describe how the changes occurred in guidance of the State on the field of culture. Thus, it was revealed the existence of neoliberal elements that characterize the action of the State and compose the process of enterprisation, mainly related to proclamations publication practices, decentralization and cultural training. This contributes to disseminate the idea of reproducing multiples individuals- enterprise composing the social tissue.

Keywords: Enterprise, Culture, Neoliberalism, Enterprisation.

1 INTRODUÇÃO

A definição de cultura é permeada por uma série de estudos que parecem gerar mais dúvidas e indagações do que certezas. O conceito adotado por Geertz (1989), a partir de uma perspectiva antropológica, está entre os mais aceitos e considera cultura como uma teia de significados que os indivíduos de uma sociedade constroem e reproduzem (GEERTZ, 1989). Além disso, é por intermédio da cultura que o homem cria, atribui sentido e transforma o seu mundo. A cultura contribui para representar e dar significado a determinado grupo de indivíduos, estabelecendo a forma como as coisas são feitas e aceitas e como os saberes são construídos (KNOPP et al, 2010).

Por trás de toda essa representatividade e expressão, encontram-se não só indivíduos, mas organizações e instituições que atuam no campo e na transformação cultural. O estudo de Vieira e Simões (2010) mostra que o campo da cultura foi transformado, ao longo dos anos, pelas organizações culturais e, principalmente, pelas ações e interesses da esfera pública, ainda que a atuação do Estado tenha ocorrido de forma descontinuada. Os períodos de ausência do Estado acabaram permitindo que outras organizações, como as do mercado, regulassem e interferissem no campo da cultura, transformando-o a partir da incorporação de elementos de fora do seu contexto.

Ainda que existam outros aspectos, supõe-se que o comportamento do Estado frente à cultura acaba por determinar a transformação no campo, seja pela maneira como ele age diretamente ou pela lacuna que deixa para que outros agentes preencham. O campo organizacional da cultura no Brasil se configurou de diferentes formas, inicialmente a cultura foi concebida e tratada como identidade, após como ideologia, mais adiante como estratégia e, atualmente, como mercado (VIEIRA e SIMÕES, 2010).

Uma aproximação entre Estado e mercado tende, tradicionalmente, a uma ideia de liberalismo econômico, que não se pretende abordar aqui, na qual a ação do Estado é limitada pelo mercado que age segundo suas próprias regras. O foco desse estudo é no modelo neoliberal de atuação do Estado, que, ao contrário, utiliza as regras presentes na esfera econômica como uma espécie de tribunal econômico, em nome de uma lei de mercado que, dentre outras atuações, permitirá avaliar as ações do Estado segundo padrões de eficiência (FOUCAULT, 2008).

Vale ressaltar que o surgimento do Estado neoliberal está relacionado, principalmente, à crítica a um Estado Keynesiano, no qual as políticas adotadas, o aparelho estatal de oferta de bens e serviços e o sistema de bem-estar social foram vistos como um pesado ônus ao Estado, que, por meio de sua autonomia política e institucional, realizava um investimento maciço em infraestrutura e em políticas sociais aos cidadãos. E é, a partir da crise desse modelo, que o Estado, ao olhar para a empresa, vê um modelo legitimado de eficiência, passando, então, a introduzir seus modos de gerenciamento e controle através do neoliberalismo (ARIENTI, 2003).

E, no Brasil, o Estado neoliberal parece emergir no início dos anos 1990, marcado pela incorporação de um discurso há muito proferido pelos países centrais: esse esgotamento do Estado de bem-estar keynesiano e, consequentemente, o da necessidade de instituir o chamado Estado neoliberal schumpeteriano, na defesa de um Estado menos oneroso, mais flexível, orientado à empresa, à inovação tecnológica e ao trabalho, que se tornou um símbolo de modernidade e de progresso (ARIENTI, 2003).

No neoliberalismo, o Estado, dotado de uma estrutura pública reduzida, adquire um papel de destaque como um agente regulamentador que contribui para a expansão da esfera privada. O neoliberalismo não procura a retirada do Estado, mas a transformação da ação pública, o que torna o Estado uma esfera regida pelas mesmas regras de concorrência e eficácia a que são submetidas às empresas privadas (LAVAL e DARDOT, 2016). Com a expansão da esfera privada e das leis da economia de mercado para decifrar e ordenar fenômenos antes não econômicos, a empresa surge como um modelo social universalmente generalizável, que serve tanto para organizações quanto para indivíduos (FOUCAULT, 2008).

A ideia de empresarização, no Brasil, está presente em diferentes áreas, como, por exemplo, a educação (NEVES, 2002) e a geografia (VAINER, 2000). Entretanto, nos estudos organizacionais, ela ainda é pouco desenvolvida e está concentrada em um grupo relativamente pequeno de pesquisadores. Os primeiros estudos sobre o processo de empresarização datam do início dos anos 2000 (COSTA, 2005; DURIEUX, 2005; SERRA, 2005; RODRIGUES, 2006; RODRIGUES e SILVA, 2006; HOFFMANN e DELLAGNELO, 2007).Partindo de um working paper disponibilizado por Andreu Solè (2004), que partia da noção da empresa como a organização central do mundo moderno, os trabalhos, naquela época,limitaram-se à descrição e à análise da intensidade com que as organizações esportivas, religiosas e culturais incorporavam um comportamento empresarial (RODRIGUES, SILVA e DELLAGNELO, 2014).

Após retornar àqueles trabalhos e perceber a abordagem (relacional) proposta por Solè (2004),apresentava diversos pontos descobertos (ver RODRIGUES, 2013), as discussões sobre o processo de empresarização adentraram em um segundo momento. A partir da proposta de Abraham (2006), buscou-se, além de ampliar as discussões do primeiro momento para o campo da educação (RODRIGUES, 2013) e da agricultura familiar (ARAÚJO; SILVA, 2016), evidenciar como a empresa, enquanto instituição, é construída e quais as implicações/desdobramentos do processo de empresarização. Para tanto, foram elaborados trabalhos orientados à análise da mídia no processo de construção e manutenção da centralidade da empresa no Brasil (RODRIGUES, 2013), à ênfase nos traços e relações modernas que fundamentam a ideia de empresa (RODRIGUES, 2013, ARAÚJO e SILVA, 2016; TOMETICH e SILVA, 2016; COSTA, 2017) e à discussão do empreendedorismo como um dos desdobramentos daquele processo (TAVARES e RODRIGUES, 2015; MARTINS, TAVARES e RODRIGUES, 2016; FRANZ e RODRIGUES, 2017).

A busca por olhares que supram as lacunas apontadas pelos estudos anteriores é uma das motivações centrais deste texto. Busca-se, aqui, tanto contribuir com o avanço teórico da referida perspectiva, como abordar o papel das instituições no processo de construção e generalização da forma empresa em nosso mundo. Para tanto, adota-se uma perspectiva foucaultiana, até então inédita na discussão sobre esse processo, que chama a atenção para a importância do Estado e para a maneira como agentes públicos, por estarem assim como todos nós, sujeitos a este poder, tendem a incorporar e reproduzir a ideia de empresa. Impulsionado pelo neoliberalismo, parte-se da tese de que esse processo apresenta uma forma bastante sutil de reprodução e conta, assim como apontado em outros estudos, com o apoio das mais variadas instituições, dentre elas, o Estado, cuja lente econômica/empresarial é utilizada para traduzir, analisar e intervir em setores tradicionalmente não econômicos, como é o caso da cultura. Nesse sentido, o trabalho tem o objetivo de compreender de que forma o Estado, representado aqui pelos agentes públicos que atuam ou atuaram na Secretária Municipal de Cultura, contribui para generalizar a forma da empresa no campo da cultura da cidade de Pelotas.

O trabalho é divido em três seções além desta introdução e das considerações finais. A seção a seguir discorre sobre a abordagem teórico-analítica que orientou o desenvolvimento do trabalho. Após, são abordados os procedimentos metodológicos, para, finalmente, na terceira seção, desenvolver a análise dos resultados. Após esta terceira seção, são feitas algumas considerações finais à guisa de conclusão.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Uma manifestação tipicamente moderna, o processo de empresarização está relacionado à compreensão da empresa como símbolo de eficiência, organização de referência e sistema normativo central das sociedades ocidentais e ocidentalizadas. Como um fenômeno social total (Solè, 2008), isto é, político, social, econômico, cultural e cognitivo; o processo de empresarização, caracterizado, aqui, como o avanço e predomínio da ideia de empresa sobre tudo e todos, contribui, no limite, para redefinir as relações sociais, as maneiras de viver e as subjetividades. É, nada mais e nada menos, a compreensão da empresa como um poder transversal que contribui para estabelecer a forma de nossa existência – o modo como nós agimos e nos relacionamos com os outros e com nós mesmos.

Nesse processo, reside um poderoso discurso segundo o qual o “bom”, “aceitável” ou “positivo” é tudo aquilo que remete à ideia de uma organização empresarial. Essa compreensão da empresa como um modelo universalmente generalizável que permeia o tecido social parece estar sendo intensificado através do neoliberalismo. No Nascimento da Biopolítica, Foucault (2008) afirma que o neoliberalismo enquanto um conjunto de ideias e práticas assenta-se, dentre outros aspectos, em dois elementos centrais:

(1) o uso da lente econômica para decifrar todo e qualquer fenômeno social; e

(2) a compreensão da empresa como modelo e forma de organização central, amplamente difundida por todo tecido social, atingindo indivíduos e organizações. Neste trabalho, os elementos que balizaram o processo de análise estão diretamente alinhados à obra de Foucault (2008), na qual o autor traz diversos elementos característicos do neoliberalismo e representativos do processo de empresarização, são eles: autorresponsabilização do sujeito pela sua condição (como se fosse ele mesmo uma empresa); relações concorrenciais permeando o tecido social; Estado como agente mantenedor da ordem neoliberal; formação como instrumento para elevar o capital humano e centralidade no desenvolvimento da economia de mercado, tendo a inovação como principal instrumento. Esses elementos estão melhores descritos na sequência do texto.

Na forma de atuação do Estado Neoliberal, mais do que o emprego de mecanismos produtivos, há uma preocupação com a forma com que são alocados esses recursos, há uma preocupação com a lógica que faz com que o indivíduo decida aplicar os recursos escassos em dado modo de produção e não em outro, para atingir um fim e não outro. O Neoliberalismo ocupa-se da maneira como os indivíduos racionalizam o emprego dos recursos, visando atingir determinado fim, sendo esse fim o mantenedor da lógica econômica (FOUCAULT, 2008). Trazendo a definição de Robbins de que a economia é a ciência que estuda o comportamento humano como uma relação entre fins e meios. Foucault (2008) deixa a questão de qual cálculo faz com as pessoas, considerando os recursos raros, decidam atribuí-lo a um fim e não a outro, deixando a prerrogativa de que a economia do Estado neoliberal operacionaliza-se na racionalidade interna dos indivíduos.

No modelo econômico neoliberal, existe uma estreita relação entre capital e competência, sendo capital o trabalhador capaz de gerar renda - relativamente maior, de acordo com a sua competência. Essa relação torna o trabalhador o responsável por melhorar a sua condição, ou seja, uma empresa para si mesmo. E é numa multiplicidade de empresas compondo o tecido social que o Estado neoliberal operacionaliza-se, com uma nova estrutura social, que faz do modelo econômico um modelo para as relações sociais e para a relação do indivíduo consigo mesmo e com a sociedade (FOUCAULT, 2008).

O ponto central a ser destacado aqui diz respeito à articulação entre indivíduo, sociedade e Estado, operando de acordo com pressupostos ligados à ideia de homo economicus. O cálculo, a eficiência e a adequação estrita dos meios aos fins que se pretende alcançar passam a ser os determinantes da ação social, seja no âmbito do indivíduo, seja no âmbito público e na definição de políticas públicas. A ideia de “público”, assim, dá lugar a uma concepção atomizada de sociedade (SANTOS, 1987).

Aqui é importante destacar a ascensão dos governos conservadores de Margareth Tatcher e Ronald Reagan na Inglaterra e Estados Unidos, respectivamente. Esses governos, na década de 1980, tiveram papel central em disseminar uma lógica centrada no indivíduo. A afirmação famosa de Tatcher dá ênfase a esta lógica atomizada: “essa coisa de sociedade não existe. O que há e sempre haverá são indivíduos”. Já Reagan afirmava, com frequência, que “os governos nunca são a solução para nada, mas sim parte dos problemas”. Ou seja, as soluções devem ser encontradas no âmbito privado, excluindo qualquer possibilidade de aprimoramento de instituições públicas.

O fato de a empresa representar um modelo social universalmente generalizado acaba por reconstituir uma série de valores morais e culturais, aproximando-os dos antiéticos, do mecanismo da concorrência, mas que garantem a sobrevivência desse modelo. A concorrência pode ser considerada o instrumento mais eficiente para elevar o desempenho da ação pública, “o homem neoliberal é o homem competitivo, inteiramente imerso na competição mundial (DARDOT e LAVAL, 2016, p. 322). Essas relações concorrenciais, inerentes ao ambiente empresarial e que atuam como um princípio no campo da economia de mercado, ao serem inseridas no meio social, tendem mais a atuar como um princípio dissolvente do que unificante.

O Estado passa a não ser mais uma entidade que se situa fora da ordem do mercado, mas inteiramente integrado aos espaços mercantis e à interdependência dos agentes econômicos (DARDOT e LAVAL, 2016). Portanto, para que os mecanismos de concorrência possam agir no tecido social, torna-se necessária a atuação do Estado como mantenedor da ordem neoliberal, por meio de políticas que o mantenham acima das relações concorrenciais e que assegurem uma cooperação entre homens socialmente integrados. Com relação a isso, tem-se, na atualidade, a legislação como uma construção utilizada como instrumento para a manutenção desse Estado neoliberal (FOUCAULT, 2008).

O neoliberalismo, por intermédio de uma política orientada para a constituição do mercado, deixa subentendida uma série de objetivos, como evitar a centralidade, favorecer empresas médias, apoiar o artesanato e o pequeno comércio, multiplicar o acesso à propriedade, entre outros. A ideia é incluir os pequenos, fazê-los participar do mercado, torná-los empreendedores, ou seja, múltiplos indivíduos-empresa (FOUCAULT, 2008).

Interessado em reproduzir na sociedade situações como o indivíduo empresário de si e a ideia de concorrência permeando as relações sociais, o Estado neoliberal encontra na formação desses indivíduos a peça-chave para manter essa ordem e garantir o desenvolvimento econômico. Conforme já foi mencionado acima, Foucault (2008) aponta para a ideia de que é o capital humano elevado que garantirá a elevação da renda. Isso, claro, relacionado ao fato de que são as novas combinações, defendidas por Schumpeter (1988), as promotoras do desenvolvimento econômico, ou como muito se tem ouvido falar, a inovação.

Schumpeter (1988) e Foucault (2008), cada um à sua maneira, abordam a centralidade do empresário como promotor desse desenvolvimento econômico, pois a ele cabe a função de realizar a inovação. Para tanto, torna-se necessário que o Estado estabeleça com esse indivíduo-empresa uma relação educacional através de investimento em formação. A educação acaba tendo a finalidade de produzir agentes que se adaptam às necessidades da economia, e esses devem fazê-lo de forma autônoma (GAULEJAC, 2007). E, nesse contexto, incentivá-los a tomarem para si o papel de construtores da sua formação também é papel desse Estado neoliberal; afinal de contas, trata-se de uma multiplicidade de indivíduos atuando como se constituíssem, eles próprios, uma empresa.

Diante disso, entende-se porque a centralidade da empresa, presente no íntimo dos membros de uma sociedade, é capaz de garantir a manutenção de uma ordem econômica neoliberal. E é, nesse sentido, que nos preocupa não somente o fato dos diversos tipos de organizações estarem assumindo a forma de empresa (RODRIGUES, 2006; 2013), mas dos indivíduos encurralados a assumir para si a responsabilidade de mudar a sua situação (FOUCAULT, 2008).

2 METODOLOGIA

Para alcançar o objetivo proposto, optou-se por realizar uma pesquisa qualitativa, a qual busca, segundo Godoy (1995), identificar as causas das transformações e descrever suas implicações. Além disso, trata-se de uma pesquisa descritivo-interpretativa, a partir da técnica de estudo de caso, tendo como unidade de análise a Secretaria de Cultura da cidade de Pelotas. E, também, dado o objetivo da pesquisa, foi adotado um corte seccional com perspectiva longitudinal, no qual a coleta de dados é feita em um determinado momento, mas com resgate de dados e informações de períodos passados (VIEIRA e ZOUAIN, 2004).

Originalmente, a intenção era analisar apenas a percepção dos agentes públicos que atuavam na Secult no momento da coleta de dados e, para isso, entrevistou-se o secretário de cultura de Pelotas (ENTREVISTADO 1) e dois assessores indicados por ele: o responsável pelos editais (ENTREVISTADO 2), ator do mercado cultural; e o superintendente (ENTREVISTADO 3), ex-professor universitário na área de educação. O contato com essas percepções desencadeou um interesse em compreender a percepção dos secretários de cultura pregressos. Para tal, entrevistaram-se três ex-secretários de cultura (ENTREVISTADOS 4, 5 e 6), totalizando seis entrevistas. Vale ressaltar que, desde o período de criação da Secult, seis pessoas ocuparam o cargo de secretário de cultura, uma dessas ocupou o referido cargo em dois momentos distintos. Todavia, dois ex-secretários não estavam disponíveis no período de coleta dos dados.

Ressalta-se que, no que diz respeito aos dados secundários, não foi possível obter acesso aos primeiros editais lançados e aos primeiros programas desenvolvidos. Nesse sentido, os dados secundários analisados são referentes à gestão passada, finalizada em 2016.

O resgate histórico apresentado a seguir assentou-se, essencialmente, em entrevistas não estruturadas com os referidos entrevistados. A opção por essa e não outra abordagem para a coleta de dados primários está intimamente relacionada à guinada teórica deste trabalho. Durante, aproximadamente, dez anos, um dos autores desse artigo tem se dedicado à análise do processo de empresarização de organizações tradicionalmente não empresariais, utilizando, basicamente, duas perspectivas teóricas complementares: uma que trata a empresa como uma a organização e outra que a trata como a instituição central no nosso mundo (ABRAHAM, 2004; SOLÉ, 2004). Em ambas, as categorias mencionadas pelos autores foram complementadas, revisadas e apropriadas à realidade das organizações brasileiras. Neste trabalho, ao se inserir uma abordagem foucaultiana para discutir esse processo, acreditou-se que seria relevante deixar que o campo, este e todos os outros analisados daqui para frente, nos demonstrasse como esse fenômeno, esse dispositivo de poder, opera. Uma vez que a intenção aqui não é apenas verificar a presença ou não de uma postura empresarial, mas, sim, desvendar como, lentamente, a ideia de empresa é disseminada e incorporada, como suas práticas transformam-se em valores e acabam por apontar aos sujeitos a única, senão, a melhor possibilidade.

Para a análise dos dados, utilizou-se a técnica da análise de conteúdo, sendo que a mesma foi realizada em três fases: (1) a pré-análise, que se refere à organização do material obtido; (2) a descrição analítica, que consiste na codificação, classificação e categorização dos dados; e (3) o tratamento dos resultados, etapa em que ocorre a interpretação dos dados (BARDIN, 1988). Partindo dessa forma de análise, organizaram-se historicamente os dados coletados, ou seja, buscando uma linearidade dos fatos. E dentro de cada período histórico, buscou-se encontrar as categorias empresariais e neoliberais presentes.

3 DESENVOLVIMENTO

Como forma de reconstruir as transformações que ocorreram na maneira de atuação do Estado frente ao cenário cultural pelotense, o contexto de análise foi dividido em três períodos. O primeiro deles, o período de criação e organização da secretaria de cultura, que ocorreu de 2001 a 2004, para o qual foi realizada entrevista com o secretário de cultura da época. O segundo, caracterizado por um período de modernização do campo, para o qual foram entrevistados dois ex-secretários: um deles atuou em dois momentos separados, de 2005 a 2007 e de 2013 a 2014, e o outro somente no ano de 2012. E o terceiro, em que ocorreu a intensificação das ações, com agentes do mercado representando o Estado e fomentando ações, e para o qual, além do secretário de cultura, foram entrevistados dois funcionários indicados pelo secretário.

Um dado relevante é que, anterior à criação da Secult, existia a Fundação Municipal de Cultura, Lazer e Turismo de Pelotas, responsável até então pelas ações que o Estado realizava no cenário cultural. Diferentemente do que ocorreu no governo federal, no qual, antes da criação do Ministério da Cultura, as ações culturais eram tratadas em conjunto com a educação. Em Pelotas, essa fundação, como é possível perceber no próprio nome, tinha suas ações culturais ligadas ao lazer e turismo. Trata-se de uma forma de conceber a cultura que pode contribuir para delimitar, de certa forma, esse cenário cultural. Como diz Dória (2001), é o Estado que acaba por definir e fixar, em dado momento histórico, o que aquela sociedade entenderá por cultura.

Ao definir que a cultura representa um conjunto de saberes e fazeres de uma sociedade (VIEIRA, SILVA e RODRIGUES, 2010) e é elemento fundamental e insubstituível na construção da própria identidade nacional (BRASIL, 2015), seria esperado que as ações culturais estivessem ligadas à educação, pois é essa que nos transmite a ideia de formação e transformação. Situação essa que foi levantada no relato abaixo:

O que significa o setor de cultura da cidade estar vinculado a uma secretaria de educação ou estar numa fundação autônoma vinculada a desporto, lazer e turismo? São duas formas de propor projetos e gerenciar tudo isso muito díspares e determinadas por um mesmo posicionamento político (ENTREVISTADO 4).

3.1 Criação e organização da secretaria de cultura

O projeto de criação da Secult foi concebido durante uma campanha de governo de um candidato da oposição, que buscou para representante do Estado na área da cultura um professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que no momento da posse acabara de retornar do doutoramento, e diz que aceitou o cargo por acreditar nas contribuições que poderia realizar no campo.

Com a criação da Secult, pôde-se perceber uma movimentação para que as ações dessa Fundação fossem mapeadas e o cenário cultural minimamente organizado, em termos de ações, prédios históricos, teatros, museus etc. Percebe-se que, nesse período, o Estado tomou para si a responsabilidade de organizar e fortalecer o contexto cultural local, assumindo o papel de transformador do contexto, no qual suas ações vão ampliando o espectro da intervenção no cenário cultural pelotense.

Tudo era recuperação porque nada havia, tudo foi criação e investimento. O museu da baronesa era uma degradação total. [...] Todo o acervo de arte dos nossos artistas, que haviam em diferentes momentos doado obras para a prefeitura, misturados com restos de Kombi, pneus, pedações de madeira, tijolo, debaixo de um telhado todo esburacado [...] transformar o entulho, dar dignidade ao entulho (ENTREVISTADO 4).

A centralidade do Estado é evidente nesse contexto de estruturação, com projetos criados, controlados e mantidos pelo Estado, sem interferências notórias da esfera econômica. Havia também uma preocupação com a criação e manutenção de projetos extensivos que se repetissem ano após ano, o que representa interesse na manutenção das atividades, sem evidências de direcionamento para a inovação. Fato evidenciado na fala abaixo:

O que nós tratamos de fazer, a equipe que foi pra secretaria, foi justamente construir uma série de projetos separados por áreas de atuação, conforme as linguagens da cultura e da arte, que pudessem ser projetos extensivos, que pudessem acontecer todos os anos [...] então se montava projetos que ora eram estimulados por demandas da comunidade, ora por essa inteligência toda que a gente reuniu dentro da secretaria (ENTREVISTADO 4).

No que diz respeito aos projetos com financiamento federal, nota-se uma centralização das ações na esfera pública e aumento do aparelho estatal, o qual incorporava para si a execução dos projetos existentes. Essa situação é claramente evidenciada na forma como a secretaria se estruturou para dar início às atividades do Programa Monumenta, para o qual recebeu um convite do Ministério da Cultura e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), uma das vinte e seis cidades brasileiras selecionadas. Para o desenvolvimento desse projeto, foi selecionada uma equipe de arquitetos que trabalhariam dentro da secretaria. Isso ocorreu de forma diferenciada ao que foi visto nas outras cidades, as quais elegeram escritórios terceirizados que lhes apresentaram projetos para o restauro dos prédios.

Esse fato relaciona-se com a realização de concurso para a contratação dos arquitetos, com a intenção de que esses permanecessem na secretaria, fortalecendo o papel do Estado com uma equipe permanente e própria na elaboração desses projetos, não entregando ao mercado esse papel. Além disso, em uma organização pública, cujo restante dos funcionários é substituído a cada mandato político, a permanência dos arquitetos representa a constituição de um aparato do Estado. Essa situação contraria a lógica neoliberal, que prega a diminuição do tamanho do Estado com consequente transformação das suas funções (ARIENTI, 2003; DARDOT e LAVAL, 2016).

No que confere ao papel da cultura, pode-se observar que o Estado, durante esse período, adotou um papel de agente transformador do indivíduo, fato evidenciado na convergência das falas do secretário quanto aos objetivos da Secult. O papel da cultura e sua contribuição para o desenvolvimento estão, respectivamente, listados abaixo:

Tu queres que o cidadão comum tenha acesso ao que há de melhor no mundo, era isso que a gente queria. Eu queria que eles tivessem, que todo mundo, que nós tivéssemos acesso (ENTREVISTADO 4).

[cultura] como uma possibilidade de revolução que nós temos nesse mundo desgraçadamente capitalista, [...] nos transforma em outras pessoas, essa ideia do cultivo, uma perspectiva frente à vida que nos coloca como construtores da vida e não como herdeiros subalternos de um conjunto de valores que nos acachapa toda hora (ENTREVISTADO 4).

Eu acho que o desenvolvimento é decorrência, porque esse sujeito mais cultivado, não vou dizer mais culto porque se confunde com o cara que tem acúmulo de informações e de dados de cultura, esse sujeito mais cultivado, ele vai ser um cidadão muito mais autônomo, mais crítico. Pra mim é uma decorrência obvia, e que é o que nos distingue daquilo que ainda se chama de centro, centro e periferia (ENTREVISTADO 4).

De forma geral, os primeiros anos da Secult são marcados pelo esforço e intervenção do Estado no processo de organização e estruturação de alguns elementos que compõem a cena cultural pelotense, como museus, teatros e prédios históricos. Segundo o entrevistado, tudo isso foi realizado com o intuito de contribuir com a transformação social através da construção de sujeitos críticos e mais conscientes da sua condição. É interessante notar, também, que, nesse período, a ideia de economia não se apresenta como uma máxima, inclusive não foi mencionado nenhum contato com atores do mercado cultural. Aliás, ela sequer é mencionada pelo entrevistado.

3.2 O impulso modernizante

Com o início de um novo mandato político e a nomeação de um produtor cultural para o cargo principal da Secult, verifica-se uma mudança na forma de como o Estado compreende a cena cultural pelotense. Como ilustra a fala abaixo:

Até então nós tínhamos pleitos que já tinham sido feitos em encontros de culturas que nós fazíamos, nós que eu digo os produtores culturais, agentes de cultura. No governo [anterior] nós pleiteamos muito uma conferência municipal de cultura, o que nunca aconteceu, um Conselho Municipal de Cultura. Então nós tínhamos pleitos importantes e quando eu me vi naquela situação de secretária eu achei que eu tinha obrigação de imediatamente implementar essas [...] vamos dizer assim, abrir o espaço para a sociedade civil (ENTREVISTADO 5).

Paralelamente a essa mudança que ocorria no cenário municipal, em nível nacional, já‟ havia a previsão de um Plano Nacional de Cultura (PNC), que só foi promulgado pela Lei 12.343 em 2010. Esse plano estabelece uma série de exigências para os municípios, com vistas a viabilizar o recebimento de verbas do governo estadual e federal. Essa movimentação em nível nacional corroborou para a reestruturação do cenário cultural pelotense, o qual passou a ser organizado para convergir com o PNC. Em 2005, o então governo da cidade de Pelotas declarou seu interesse em participar do PNC, durante um evento que ocorreu em Porto Alegre, na presença do então Ministro da Cultura Gilberto Gil. Essa situação deixou implícita a necessidade de implementação das conferências municipais de cultura e o estabelecimento de programas de incentivo à cultura. As ações eram direcionadas diretamente ao Plano Nacional de Cultura e, consequentemente, ao Sistema Nacional de Cultura. Ainda assim, para além da necessidade de se adequar às exigências do governo federal, o entrevistado 5 declarou que algumas dessas ações, como os editais de incentivo à cultura, já estavam presentes nos seus planos, de forma independente do que ocorria no cenário nacional: “isso tava, já, vamos dizer assim, na minha proposta e na proposta do prefeito, que era estabelecer essa relação de proximidade com a sociedade civil e dando poder à sociedade civil de decidir onde colocar os recursos públicos, isso sempre foi a bandeira do prefeito” (ENTREVISTADO 5).

As ações desenvolvidas, nesse período, foram a ativação do Conselho Municipal de Cultura (Concult), inclusive com a reestruturação do mesmo; a redação da legislação do Procultura municipal, a qual não foi implementada nessa gestão; e as conferências municipais de cultura. O programa de incentivo à cultura municipal (Procultura) ficou nesse período limitado apenas à redação, pois, mesmo com todo o esforço que o entrevistado 5 diz ter feito, não obteve êxito para a sua aprovação. E este foi um dos motivos que a levou a exonerar-se do cargo em 2007: uma série de desentendimentos com o novo prefeito, que assumira o cargo após o afastamento do seu antecessor. Não obstante, o Procultura foi aprovado no ano de 2009, quando o entrevistado já não atuava mais como secretário de cultura, mas como presidente do Concult. Nessa nova posição, realizou um esforço para que o prefeito promulgasse a lei de incentivo à cultura, a qual garantiria o destino de uma determinada verba à publicação para os editais de incentivo. Situação essa que pode ser evidenciada na fala do entrevistado 5: “eu fui Presidente do Conselho Municipal de Cultura, e aí o Conselho Municipal de Cultura cobrava do poder executivo a implementação do Procultura” (ENTREVISTADO 5).

Após a saída do entrevistado 5, ocuparam o cargo dois secretários de cultura, aos quais não se obteve acesso, no período entre 2007 e 2012. Entre os meses de abril e dezembro de 2012, atuou como secretário de cultura o entrevistado 6, o qual, vale ressaltar, trabalhava na secretaria desde 2005. Essa última situação nos auxiliou a compreender o período que se teve acesso aos secretários de cultura. Trata-se de um período cuja esfera econômica manteve sua centralidade, inclusive pela fala do entrevistado 6, quando se referiu à relação entre cultura e desenvolvimento:

Eu entendo que a cultura é uma das áreas que mais movimenta a questão econômica, porque, vamos pensar, só o carnaval, vamos pegar o carnaval. O que que tu tem? Tu tem desde o alfinete, a agulha, as lantejoulas, então tu tá movimentando a costureira, o serralheiro, o comerciante que vende os aviamentos, o pessoal que coloca a música, que bora o som, que bota a luz, tu movimenta todos os setores da economia em pequena escala e não em grande escala.

Em um segundo momento em que o entrevistado 5 esteve na função de secretário, cargo para o qual retornou após a troca de mandato político na prefeitura, houve uma preocupação com a ampliação dos programas de incentivo à cultura, mediante publicação de editais. A ideia e até mesmo a redação de projetos implementados apenas na gestão seguinte foram realizadas nesse período, como é o caso do Prêmio Movimento e do edital de auxílio para eventos.

O Prêmio Movimento foi idealizado, segundo o entrevistado 5, a fim de contemplar as pessoas que não tinham condições de elaborar um projeto “bem instruído, bem escrito e bem orçado”, como exige o Fundo Municipal de Cultura. Esse edital foi escrito com a intenção de chegar a pessoas da comunidade de Pelotas que, conforme relatou o entrevistado 5, "exercem liderança nas suas comunidades", mas que muitas vezes não sabem escrever. Trata-se de um edital que permite ao candidato se inscrever de diversas formas, inclusive de forma verbal. Há o reconhecimento, por parte do entrevistado 5, de que os editais que deveriam democratizar, acabam falhando, pois fazem aos candidatos uma série de exigências, impedindo o acesso de todos os que poderiam concorrer e receber apoio oficial. Vale ressaltar que, nesse período, o que ocorreu foi apenas a idealização e a redação desse edital, o qual foi implementado somente na gestão seguinte.

O edital referente a eventos também foi idealizado, embora tenha sido lançado em 2015. Essa idealização reforça o intuito de fornecer apoio financeiro mediante editais de concorrência, ainda que, como afirma o entrevistado 5, diga respeito a eventos importantes para a sociedade. Fato esse que pode ser evidenciado nas falas abaixo:

[situação] que também foi gestada naquele tempo, que era não se dar mais apoios a eventos, mesmo que eventos reconhecidos pela comunidade como têm festas e várias coisas que acontecem anualmente [...] eventos cívicos. Não se oferecer mais apoio sem que os projetos passem por uma seleção também, mesmo que sejam eventos reconhecidos. É chato, aquela coisa da pessoa ir, sentar e dizer assim: „ah, eu tô fazendo o 20 de setembro, nós vamos fazer isso e aquilo e precisamos de tanto‟. „Ah, nós vamos fazer a via sacra, que é uma coisa super importante também e precisamos disso, disso, disso e daquilo‟. Escrevam um projeto, deixem o Conselho Municipal de Cultura dizer: 'do montante que a secretaria tem disponível, nós julgamos mais importante investir tanto aqui, tanto ali, tanto ali (ENTREVISTADO 5).

A secretaria tá acabando com toda e qualquer participação do executivo [Estado], de forma que seja a mais democrática possível (ENTREVISTADO 5).

Com relação à criação do Dia do Patrimônio, outra ação instituída, concebida pelo entrevistado 5 como uma atividade, cuja secretaria não executa as ações, somente estimula para que grupos e indivíduos tragam as atividades, sendo assim, a comunidade é que desenvolve as atividades e o Estado as regula, fornece equipamentos e organiza horários e divulgação.

Outro ponto levantado pelo entrevistado é a necessidade de retornar ao mercado através da sua empresa. E foi por esse motivo, depois de um ano e meio atuando pela segunda vez como secretário, que o entrevistado solicitou exoneração. E na fala abaixo, fica evidente a relação estabelecida entre a ex-secretária, sua empresa e o mercado em que se insere: “eu só não consegui permanecer porque na minha empresa, se eu paro de trabalhar por quatro anos, é muito difícil eu conseguir retomar depois, se eu me afasto do mercado de trabalho por tanto tempo” (ENTREVISTADO 5).

Ao sair da secretaria, as ações que estavam em andamento seguiram-se, sem qualquer prejuízo, pois um dos seus assessores assumiu o cargo de secretário, mantendo juntamente com ele, todo o pessoal que lá já estava. Para fazer referência à manutenção dos assessores, a entrevistada 5 usa o termo “técnicos em cultura”, referindo-se ao pessoal que atualmente trabalha na secretaria: “disseram que todos seriam mantidos, que aquela secretaria continuaria uma secretaria sem o cunho partidário que muitas têm nos governos, é natural que tenha. A Secult é formada por técnicos em cultura, não tem esse perfil de cargos que sejam indicados por políticos coisa desse tipo” (ENTREVISTADO 5).

É possível perceber uma alteração na relação entre Estado e cenário cultural pelotense. O financiamento das ações culturais, que antes ocorria mediante relação direta entre a Secult e os artistas, que lentamente os coloca, em competição passou a ser estabelecido por editais. Uma competição na qual os critérios de avaliação das propostas estão, de certa forma, orientados por elementos econômicos, estabelecendo para o Estado o papel de modernizador do campo. E assim, o papel assumido pela Secult aproximou o Estado da lógica econômica, conformando uma forma de atuação antes não presente ou não importante, mas que agora confere ao Estado o papel de mantenedor de uma lógica neoliberal. Segundo Foucault (2008), no neoliberalismo, o Estado ocupa um papel central, inserindo nos mais diversos contextos sociais, tal como o cultural, elementos da economia de mercado.

A centralidade das ações parece ser encontrada na implementação dos editais, que garantem a manutenção de um mercado e a incorporação da forma de atuação da empresa por parte dos indivíduos. No tocante a essa disseminação dos editais, há o reconhecimento de que diversos atores da cena cultural são desprivilegiados, como aqueles que não sabem escrever e são considerados merecedores de apoio. Na tentativa de sanar essa falha, a Secult cria então o Prêmio Movimento, aproximando do estado e dessa esfera quem antes estava distante. Alguns pontos importantes reforçam a presença da forma de ser da empresa: a formalização dos editais, que impõe aos concorrentes uma atuação delimitada, como delimitam as empresas a manifestação individual dos seus trabalhadores por meio das exaustivas normas de comportamento; a tecnificação esperada dos membros que compõe a Secult e a ideia de concorrência na busca de melhorias.

Outro elemento importante é o fato de que o entrevistado 5, por atuar no mercado cultural, já buscava recursos para os projetos particulares de sua empresa em editais estaduais e nacionais. Então, em função dessa atuação e conhecimento do contexto de mercado vivenciado, o entrevistado 5 apresenta uma capacidade de antecipação das ações e de previsão do que acontece nas demais esferas governamentais. Essa situação possibilitou o desenvolvimento de um programa de incentivo à cultura, através da publicação de editais, antes mesmo que a prefeitura da cidade de Pelotas recebesse uma orientação nacional ou estadual. A competição, colocada como estratégia para democratizar o acesso aos recursos culturais, já ocorria em nível nacional e estadual, ou seja, o Estado incentivando a concorrência entre os atores, como se esses fossem empresas competindo em busca da sua sobrevivência em um determinado mercado.

3.3 Intensificação das ações, participação e fomento

A transição para esse novo período é representada pela mudança na figura do secretário de cultura. A transição do período anterior para esse parece ter ocorrido de forma tranquila, visto que o restante do pessoal foi mantido. Claro que, tudo isso, é para dar seguimento ao modelo de gestão estabelecido.

Esse modelo parece estar centrado, principalmente, na publicação de editais, com a publicação de um número cada vez maior para diferentes propósitos, como o programa municipal de incentivo à cultura (Procultura), os de seleção de apresentações (Sete ao Entardecer e Palco no Parque), os de apoio a eventos e o do prêmio de reconhecimento à cultura popular (Prêmio Movimento). O modo de atuação da Secult, baseado na publicação de editais, é definido pelo atual secretário como uma forma democrática de fracionar os recursos da cultura. Fato esse que pode ser percebido nas falas abaixo:

A política cultural da nossa gestão é de procurar cada vez mais democratizar o acesso tanto à cultura quanto aos recursos que a secretaria dispõe pra fomentar as ações culturais da cidade [...] estamos já praticamente aumentando o lançamento dos editais (ENTREVISTADO 1).

A forma que nos encontramos foi exatamente a de publicar editais, porque isso faz com que a pessoa se prepare pra isso. [...] fala e não tem um projeto, não tem algo escrito, não tem um histórico, as pessoas precisam se organizar, hoje não é mais possível chegar e „minha arte fala por mim mesmo‟, até fala dependendo da situação. Mas, em qualquer lugar que ele vá buscar um financiamento, ele tem que ter o seu projeto, ele tem que saber porque faz e como faz. Então eu vejo que a forma de incentivar é cada vez mais publicar diferentes possibilidades da pessoa concorrer ao financiamento, ao apoio e a ajuda pra desenvolver a sua arte (ENTREVISTADO 3).

A gente está fomentando, incentivando pra que diferentes áreas, pra que diferentes segmentos se organizem pra oferecer ações. E que forma nós achamos para incentivar? Com a publicação de editais (ENTREVISTADO 3).

Em todos os editais, apenas um determinado número de projetos será contemplado, gerando uma espécie de relação concorrencial entre os candidatos, semelhante à forma com que empresas se relacionam em determinado mercado. Na busca pela aprovação dos projetos, é necessário que os candidatos estejam atentos ao edital e aos critérios que serão pontuados na avaliação. Diante disso, o Estado desperta a ideia de competição entre os atores da cena cultural pelotense e deixa de privilegiar determinados projetos para atender a essa política, como se verifica nas falas abaixo:

Quem entra pra participar sabe onde é que ele precisa se mostrar mais (ENTREVISTADO 2).

Os editais fazem com que a pessoa se prepare para concorrer (ENTREVISTADO 3).

Não é uma tarefa fácil, porque às vezes a gente tem que deixar de aprovar projetos bons, reconhecidamente bons, mas em função do limite de verba não se pode atender a todos, então tu tem que chegar a algum momento que tu tens que cortar (ENTREVISTADO 3).

O que chama a atenção no edital de incentivo à cultura são os critérios utilizados para avaliar os concorrentes: o ineditismo, o mérito artístico; a qualificação do proponente; os desdobramentos e impactos capazes de gerar resultados no campo cultural, social e econômico; entre outros. Critérios esses muito próximos dos encontrados nos editais para seleção de apresentações culturais, como, por exemplo: originalidade, a qual subentende trabalhos inovadores; e currículo, que diz respeito à qualificação dos profissionais envolvidos. O edital para eventos também possui critérios nesse sentido, como autossustentabilidade, critério que avalia o potencial de autossustentabilidade nas edições vindouras e, também, o critério de democratização do acesso que possui como subcategoria a realização de atividades fora do centro, descentralizadas (PELOTAS, 2015).

Apesar da continuidade, um novo elemento parece ganhar espaço na narrativa dessa gestão, a descentralização, vista como uma meta dessa gestão, pois segundo o secretário “descentralizar é uma necessidade” (SANGUINÉ, 2014). Fato que pode ser evidenciado na fala abaixo:

A nossa urgência agora, na verdade, é chegar nos bairros (ENTREVISTADO 1).

A gente acredita que no ano passado a gente já conseguiu fazer umas ações descentralizadoras da cultura e esse ano a gente quer ainda mais (ENTREVISTADO 1).

Outra forma encontrada de descentralizar foi o Prêmio Movimento, o qual previa, por meio da publicação de edital, a inscrição de agentes com iniciativas culturais fora do centro da cidade, ou seja, era proibida a inscrição de ações que ocorressem no centro. Um programa que, embora tenha sido idealizado na gestão anterior, parece ter adquirido nesta gestão o caráter local, e que, de certa forma, pode representar uma forma de mapeamento e desenvolvimento das ações locais.

Aliando a ideia de descentralização à de formação, a Secult está estruturando um Programa de Formação Cultural, o qual pretende, a partir de demandas específicas da comunidade, distribuir agentes culturais nos bairros. Além disso, com uma ideia de complementariedade, esses cursos foram idealizados para serem oferecidos nas áreas que não são atendidas pelas universidades da cidade.

Além desse programa de formação cultural, a Secult realiza um curso de prestação de contas para os habilitados no Procultura e outro curso para os inabilitados na primeira fase do Procultura, esclarecendo porque não continuaram a concorrer e como podem melhorar os seus projetos para as próximas inscrições. Além disso, há uma proposta de que os editais municipais preparam os atores para editais de outras esferas governamentais, como os estaduais e federais. Situação evidenciada nas falas abaixo:

Os nossos editais dão uma preparação pra que os agentes culturais possam se inscrever em editais estaduais e federais (ENTREVISTADO 1).

A secretaria de cultura valoriza a arte e a cultura daquilo que é bom e tenta fomentar pra que as pessoas desenvolvam o seu potencial (ENTREVISTADO 3).

Essas melhorias e capacitações parecem repercutir em profissionalização e independência dos artistas. O desejo do Estado por essa independência surge na redação do edital para eventos que pontua a capacidade de autossustentabilidade para os próximos eventos, como demonstrado acima. Essa situação está diretamente relacionada à defesa do Estado em prol das ações culturais independentes, situação evidenciada nas falas que seguem:

Se a gente prestar atenção nos programas independentes, eles são todos um sucesso: o Sofá na Rua, o Piquenique Cultural, Samba no Mercado (ENTREVISTADO 1).

O Piquenique Cultural, por exemplo, [...] uma ação que tem muito mérito como uma ação independente (ENTEVISTADO 1).

Então a gente gosta, na verdade, é de estimular que a comunidade carnavalesca procure recursos [...] com o passar dos anos talvez o carnaval fique independente do poder público (ENTREVISTADO 1).

Incentivando ações independentes e descentralizadas, como uma multiplicidade de empresas agindo no ambiente, a Secult parece transformar-se, pois, por intermédio de seus representantes, atua como “fomentador”, “inovador” e através de “conexões” entre ofertas e demandas de ações culturais. Situação essa que evidencia o Estado como agente regulador no contexto, por meio de agentes do mercado e para o mercado. Além disso, parece introduzir, no contexto cultural, termos como “trabalhador cultural”, que não era característico desse contexto, como se pode apreender abaixo:

Porque, pelo menos como a gente vem da iniciativa privada, a gente tá acostumado a fazer projeto com pouquíssimo recurso, a gente é mais um trabalhador da cultura que nesse momento está aqui entendeu?! Então a gente acaba tendo um pouco essa visão e aí de funciona como facilitador mesmo, é isso [...] Então, trabalhar em rede com o trabalhador da cultura mesmo, acho que é isso que tem nos feito transitar bem nos seguimentos. Como é que a gente mapeia isso? Olha a gente mapeia ouvindo, recebendo demanda, atento ao que tá acontecendo (ENTREVISTADO 2).

As secretarias de cultura, elas ficaram estigmatizadas durante muito tempo, como apoiadoras financeiras de eventos. [...] Então, nós não somos isso, não somos uma secretaria que paga contas, nós nos enxergamos como fomentadores de ações culturais, em toda a sua amplitude (ENTREVISTADO 1).

Além dessa parte de editais a gente faz [...] a gente trabalha bastante estabelecendo conexões [...] conexão na verdade, como um grande modo de operação nosso (ENTREVISTADO 1).

Surge, também, a preocupação com a modernização, a inovação da sua própria forma de agir, pois, segundo o entrevistado 1, a secretaria está “sempre revendo o modo de operação”. Assim como nos editais, o ineditismo e a originalidade são critérios pontuados, na forma de agir da Secult esses também são critérios importantes. E revendo o seu modo de operação com base em modelo fora do cenário da cultura, nesse caso o empresarial, situação percebida na forma como atua no contexto cultural e como define os critérios de avaliação dos editais.

Outro critério, ao qual o Estado parece dar atenção, são os desdobramentos gerados a partir das ações culturais. A atuação no campo em si já não parece ser suficiente para o Estado, é preciso gerar resultados no campo cultural, social e econômico, como demonstra um dos critérios do Procultura. No entanto, parece que o viés econômico tem assumido um papel importante nessas ações, parece ser para onde caminham as demais ações, como defendido pelo entrevistado 3:

Cultura como expressão simbólica, como expressão cidadã e dimensão econômica. Então é a cultura se fundamentando, expressão simbólica porque ela tá no subjetivo de todas as pessoas, cidadã porque é isso né reconhecimento daquilo que a pessoa faz, realiza e é capaz, e a dimensão Econômica [...] no que ela está baseado e o que ela pode suscitar. [...] Aí entra o lado econômico, a cultura ela é capaz de gerar renda, ela é capaz de permitir que as pessoas se mantenham por elas mesmas, então é a questão da profissionalização dos artistas (ENTREVISTADO 3).

Durante esse período, estava sendo construído o Plano Municipal de Cultura, o qual estava alinhado ao Plano Nacional de Cultura, e, como exigência desse, trata-se de um projeto com duração de dez anos. “São dez anos porque tá ligado ao Plano Nacional de Cultura, é uma exigência do Plano Nacional de Cultura” (ENTREVISTA 3). É importante atentar para o fato de que muitas das narrativas encontradas estão diretamente relacionadas ao fato da Secretaria Municipal de Cultura estar buscando a construção do Sistema Municipal de Cultura, o que exige a elaboração do Plano Municipal de Cultura e permitirá a inserção nos sistemas estadual e nacional de cultura. Como argumenta o Entrevistado 3: “esse plano é importante e imprescindível para que Pelotas tenha o seu sistema Municipal de Cultura, e o sistema ele exige, faz algumas exigências, entre elas o plano, a existência do Conselho, as conferências, pra que tu estejas vinculado e seja reconhecido como sistema Municipal que vai se ligar ao sistema Estadual que vai se ligar o Sistema Nacional” (ENTREVISTADO 3).

Diante do exposto, fica evidente que o foco do Estado, neste momento, vai além dapublicação de editais, que delimita o número de contemplados e estabelece concorrência entre os atores culturais. Nesse período, o Estado parece investir na profissionalização e na descentralização, como categorias promotoras de uma multiplicidade de atores culturais independentes e responsáveis pelos resultados alcançados, ou seja, uma multiplicidade de indivíduos- empresa. Se o modo de atuação da Secult privilegia ações voltadas para uma proposta que aproxima os atores das ideias e praticas empresarias, a política de descentralização atua como uma ferramenta que as multiplica, que as dissemina. Situação idealizada pelo Estado neoliberal.

E nessa multiplicidade de atores culturais, seguindo uma lógica predominantemente econômica, se encontra a materialidade da forma empresa. Isso porque esses atores agem segundo a formalização imposta pelos editais, e em busca de novas características de fora do contexto cultural, com base em pressupostos empresariais na busca por sobrevivência nesse ambiente. E, dessa forma, vão invadindo a cena cultural: a inovação, a formalização, a profissionalização, a lógica econômica, os cálculos utilitaristas, a busca por resultados, a melhoria contínua, a competitividade e a independência. E, então, ao se olhar para essas características, fica difícil saber do que se está falando, são atores culturais? São Trabalhadores culturais? Indivíduos-empresa? Ou são empresas? E aqui percebe-se o processo de disseminação da ideia de empresa, disposta nos mais diversos contextos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No primeiro período de formação da Secult, parece haver uma forma de atuação que se aproxima mais de um Estado keynesiano, com uma autonomia política e institucional, que sofre pouca interferência da economia de mercado e, consequentemente, da ideia de empresa. E quanto aos objetivos propostos pelo secretário, pode-se perceber uma convergência também do que é dito sobre o papel que a cultura representa e sua contribuição para o desenvolvimento, uma postura que converge a do estudo de Knopp et al (2010), no qual desenvolver é empoderar os indivíduos, ampliar a consciência sobre a sua condição, aumentar a sua capacidade de ação e sua liberdade substantiva, portanto, deve ser entendido como um projeto político de transformação social.

No entanto, as ações do Estado, ao longo do tempo, começam a se consolidar em torno do ideário neoliberal. O Estado ainda ocupa um papel central, mas exerce funções diferentes. No regime de bem-estar social, o Estado toma para si a responsabilidade pelo desenvolvimento, enquanto que, no neoliberalismo, ele age para as instituições da esfera econômica, ainda que possa pareça estar tomando para si a incumbência.

Através das posturas adotadas, percebe-se a presença de elementos neoliberais descritos por Foucault (2008), que estão alinhados ao processo de empresarização e caracterizam a atuação do Estado. O primeiro deles é a compreensão do trabalhador como responsável por melhorar sua condição, ou seja, como uma empresa para si mesmo. Essa compreensão estabelece a existência de uma estreita relação entre capital e competência, sendo capital o trabalhador capaz de gerar renda, a qual será relativamente maior, de acordo com a sua competência (FOUCAULT, 2008). Situação evidente com a publicação de editais e que é caracterizada como uma forma de democratizar o acesso à cultura. Por trás dos critérios impostos pelos editais, como ineditismo, qualificação do proponente, necessidade de gerar desdobramentos e autossustentabilidade, muitas manifestações podem estar fadadas ao desaparecimento ou à descaracterização. A arte, por exemplo, pode ser transformada em um produto disposto a atender uma demanda. Atores entram em contato e podem passar a incorporar os modelos tipicamente empresariais, como a busca por qualificação profissional, eficiência e resultados.

Nessa forma de conceber os editais, os candidatos são autorresponsabilizados pela aprovação do seu projeto, afinal de contas, o Estado diz deixar claro quais serão os critérios de avaliação mensurados. Essa aprovação permitirá o recebimento de determinada renda, de acordo com a relação existente entre o trabalhador e suas competências, cabendo a ele melhorá-las. Então, quando se diz que o Estado neoliberal atua centrado na forma empresa, não é em um modelo empresarial tradicional, é o incentivo para que os indivíduos assumam a forma empresa (FOUCAULT, 2008).

E assumindo a forma empresa, esses indivíduos são incentivados a buscar qualificação profissional, seja pela disseminação de cursos de formação cultural pelos bairros da cidade, ou pelos editais que estabelecem currículo e qualificação profissional como critério de avaliação. No entanto, para que esses cursos de profissionalização obtenham sucesso, é necessário despertar nesses atores um ser empreendedor de si, para que reconheçam naqueles um investimento. E, como investidores, tornem-se empresários de si, responsáveis pela posição que ocupam e também pelo que conquistam. Logo se tornarão multiplicadores e reprodutores do comportamento empresarial, ações tão esperadas na lógica neoliberal. E é nessa perspectiva de crescimento, baseada no investimento em qualificação do capital humano, que Foucault (2008) nos fala que são executadas as políticas públicas atualmente, inclusive as culturais.

Essa forma de lidar com os atores culturais, como se constituíssem sua própria empresa, insere-os em uma lógica econômica voltada para o mercado. E as relações concorrenciais aparecem como outro elemento desse Estado neoliberal. Naturais no ambiente empresarial, elas acabam por reconstituir uma série de valores morais e culturais.

Esse modelo político é o que Foucault (2008) vai propor como a generalização da forma empresa no interior do corpo social, fazendo dos indivíduos uma espécie de empresa permanente e de empresas múltiplas. É, na economia do corpo social, organizado de acordo com as regras da economia de mercado, que as relações concorrenciais aparecem como um princípio de ordem. No entanto, esse princípio pode ser mais dissolvente do que unificante, tornando-se necessário que o Estado ocupe o seu lugar através da construção de leis que reforcem e mantenham o papel do Estado, como é o caso da lei de incentivo à cultura – Procultura. Essas relações concorrenciais fazem surgir, dentro da cena cultural, um ambiente próximo ao que está inserido a empresa, no qual ocorre concorrência entre empresas e, também, o estabelecimento de parcerias, a fim de se atingir um resultado. Então, percebe-se o Estado incentivando essas conexões, como forma de promover essas parcerias.

Outra característica é a descentralização, na busca por uma multiplicidade de indivíduos atuando como se constituíssem, eles próprios, uma empresa. Aliada à ideia de profissionalização dos artistas, a descentralização parece ter a intenção de autonomizar e reproduzir indivíduos-empresa, ou seja, empresários independentes, inovadores, qualificados, com projetos autossustentáveis e competitivos, os futuros multiplicadores e reprodutores do comportamento empresarial.

Ainda, evidenciou-se que algumas narrativas estão relacionadas a uma dimensão muito mais ampla, que engloba as esferas estadual e nacional, como é o caso da construção do Plano Municipal de Cultura. Esse é um projeto que teve início no ano de 2005 e guiou as ideias de constituir as conferências municipais de cultura ea criação dos editais de incentivo à cultura.

Através da análise das posturas adotadas pelo Estado, representado aqui pelos agentes públicos que atuaram na Secult, pode-se perceber que, embora as primeiras ações não fossem permeadas por pressupostos da economia de mercado, com o passar dos anos, é notória a inserção da ideia de empresa no contexto cultural. É importante ressaltar que muitas das posturas adotadas referem-se a uma conjectura de esfera pública muito mais ampla do que o âmbito municipal, já que estão alinhadas a uma esfera nacional e estadual.

Chama a atenção o fato de a cultura e de as ações culturais concernentes ao Estado serem pautadas, majoritariamente, por uma lógica de distribuição de recursos. Isso representa forte relação e, até mesmo, um incentivo às ações promovidas e disseminadas no mercado cultural, espaço que, até então, parecia exclusivo dessa esfera. Ressalta-se que não se faz aqui nenhuma critica às ações de democratização do acesso aos recursos culturais, mas, sim,se demonstra que a maneira com que isso ocorreu representa forte alinhamento com o processo de empresarização. Ou seja, ainda que a intenção seja democratizar o acesso aos recursos públicos destinados a ações culturais, o que acabou ocorrendo foi a intensificação do processo de empresarização do campo. Talvez pelo fato de a empresa, na modernidade, ser apontada como a principal, quiçá a única solução.

É importante ressaltar que não se trata aqui de criticar comportamentos ou visões de mundo dos agentes públicos em relação à cultura, ou em relação ao papel do Estado frente à dimensão cultural. O que se está analisando, a partir das falas coletadas nas entrevistas, é a incorporação de um discurso amplo e disseminado na sociedade contemporânea: a centralidade da empresa seja como modelo e forma de organização.

Essa pesquisa representa um trabalho inicial sobre o processo de empresarização, a partir de uma perspectiva foucaltiana, logo, teve um cunho exploratório com vistas a subsidiar pesquisas futuras relativas ao papel do Estado na disseminação da empresa, suas ideias e práticas, nos mais diversos contextos. Uma das principais limitações desse estudo refere-se à dificuldade de acesso aos dados secundários, principalmente documentos internos, já que muitos deles foram negados. Além disso, nesse momento,realizar entrevistas com outros atores da cena cultural pelotense, como empresários, artistas, participantes de projetos da secult, atividade que se pretende realizar em pesquisa futura. Ressalta-se aqui o trabalho de Martins, Tavares e Rodrigues (2016), o qual analisou a configuração do campo artístico pelotense sob a ótica dos atores culturais. Trata-se de pesquisas iniciais que permitem uma aproximação da discussão sobre o processo de empresarização no contexto cultural pelotense.

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Autor notes

* Graduada em Administração e em Enfermagem pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Mestra em Administração pela Universidade Federal de Rio Grande (PPGA/FURG) e Doutoranda em Administração na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGA/UFRGS).
** Doutor em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente é Professor do Curso de Bacharelado em Administração, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial e Sistemas Agroindustriais da Universidade Federal de Pelotas. Também é líder do Núcleo de Estudos Marcelo Milano Falcão Vieira (NeMaVi).


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