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Formação do professor em Modelagem Matemática: um olhar sobre o conhecimento pedagógico do conteúdo
Teacher training in Mathematical Modeling: a pedagogical content knowledge view
Formación del profesorado en la Modelización Matemática: una mirada al conocimiento pedagógico del contenido
Revista de Ensino de Ciências e Matemática, vol.. 12, núm. Esp.2, 2021
Universidade Cruzeiro do Sul

Artigos

Revista de Ensino de Ciências e Matemática
Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil
ISSN-e: 2179-426X
Periodicidade: Trimestral
vol. 12, núm. Esp.2, 2021

Recepção: 19 Novembro 2020

Aprovação: 27 Dezembro 2020

Publicado: 01 Março 2021

Uma nova publicação de artigo publicado na REnCiMa, de iniciativa de seus autores ou de terceiros, fica sujeita à expressa menção da precedência de sua publicação neste periódico, citando-se o volume, o número e data dessa publicação.

Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Compartilhamento Pela Mesma Licença.

Resumo: Neste artigo dirigimos nossa atenção para a formação de professores em Modelagem Matemática considerando o conhecimento pedagógico do conteúdo requerido para o professor. Investigamos a contribuição para duas dimensões desse conhecimento relativo à Modelagem Matemática, a dimensão teórica e a dimensão da tarefa, a partir do desenvolvimento de atividades de modelagem por alunos-professores de uma disciplina de Modelagem Matemática em um programa de pós-graduação em Educação Matemática. As análises são subsidiadas por dados coletados a partir de registros escritos relativos ao desenvolvimento das atividades, da gravação da apresentação da atividade pelos grupos bem como da resposta a um questionário respondido ao término da disciplina. Resultados indicam que o conhecimento pedagógico do conteúdo se fortalece quando: os alunos-professores articulam teoria sobre Modelagem Matemática com a situação-problema que investigam; a dinamicidade do fazer Modelagem Matemática é associada às etapas de um ciclo de modelagem; múltiplas soluções são vislumbradas, seja para propor um problema, seja para encontrar soluções para ele. E, reconhecer que atividades de Modelagem Matemática podem ter diferentes objetivos educacionais e a associação entre as atividades e a prática docente também é indício das dimensões do conhecimento pedagógico do conteúdo, especialmente as dimensões teóricas da tarefa.

Palavras-chave: Educação Matemática, Formação de Professores, Dimensão de Tarefa, Dimensão Teórica.

Abstract: In this paper we direct our attention to teachers training in Mathematical Modeling, considering the pedagogical content knowledge required for teachers. We investigated the contribution of two dimensions of this knowledge regarding Mathematical Modeling, the theoretical dimension and the task dimension, from the modeling activities development by student-teachers in a Mathematical Modeling course carried out in a graduate program in Mathematics Education. The analyzes are subsidized by data collected from written records during the activities development, the recording of the activity presentation of each group, and the response to a questionnaire answered at the end of the course. Results indicated that the pedagogical content knowledge it is strengthened when: the student-teachers articulate theory about Mathematical Modeling with the problem situation they investigate; the dynamics of doing Mathematical Modeling is associated with the steps of a Mathematical Modeling cycle; multiple solutions are envisioned, either to propose a problem or to find solutions to it. And, recognizing that Mathematical Modeling activities can have different educational objectives and making associations between activities and teaching practice are also indications of the dimensions of knowledge investigated, especially regarding the theoretical and task dimension’s.

Keywords: Mathematics Education, Teacher Training, Theoretical Dimension, Task Dimension.

Resumen: En este artículo dirigimos nuestra atención a la formación de docentes en Modelización Matemática considerando el conocimiento pedagógico de los contenidos que requiere el docente. Investigamos el aporte a dos dimensiones de este conocimiento relacionado con la Modelización Matemática, la dimensión teórica y la dimensión de la tarea, a partir del desarrollo de actividades de modelización por alumnos-docentes de una disciplina de Modelación Matemática en un programa de posgrado en Educación Matemática. Los análisis están subvencionados por los datos recogidos de registros escritos relacionados con el desarrollo de las actividades, el registro de la presentación de la actividad de cada grupo, así como la respuesta a un cuestionario contestado al final del curso. Los resultados indican que el conocimiento pedagógico del contenido se fortalece cuando: los alumnos-docentes articulan la teoría sobre la Modelización Matemática con la situación problemática que investigan; la dinámica de hacer modelación matemática está asociada con los pasos de un ciclo de modelación matemática; se vislumbran múltiples soluciones, ya sea para proponer un problema o para encontrarle soluciones. Y, reconocer que las actividades de Modelización Matemática pueden tener diferentes metas educativas y hacer asociaciones entre las actividades y la práctica docente también son indicadores de las dimensiones del conocimiento investigado, especialmente las dimensiones teórica y de la tarea.

Palabras clave: Educación Matemática, Formación de Profesores, Dimensión Teórica, Dimensión de la Tarea.

Para iniciar: uma incursão nas preocupações com a formação docente em Modelagem Matemática

Nas últimas décadas a Modelagem Matemática tem sido tópico recorrente em debates acerca do ensino e da aprendizagem da matemática em diferentes países mundo afora. Um dos pontos de interesse nas discussões acerca da Modelagem Matemática neste contexto refere-se à formação dos professores visando a inclusão de práticas com modelagem nas aulas em diferentes níveis de escolaridade (BORROMEO FERRI, 2018; FREJD; BERGSTEN, 2018; BLUM, 2015; GREEFRATH; VORHÖLTER, 2016; BISOGNIN; BISOGNIN, 2015; OLIVEIRA, 2017; BARBOSA, 2001; MUTTI ; KLÜBER, 2018; ALMEIDA; DIAS, 2007; NUNES; NASCIMENTO; SOUSA, 2020).

Vários estudos estão alinhados com a ideia de que a Modelagem Matemática representa uma maneira de agir e atuar na sala de aula que, conforme aponta Pollak (2015), coloca desafios até então não enfrentados.

No Brasil a Modelagem Matemática é citada em documentos oficiais como uma das possibilidades para fomentar o ensino e a aprendizagem da matemática. Assim, a formação de professores em Modelagem Matemática vem merecendo atenção de modo mais intenso desde o início do século XXI (BARBOSA, 2001; ALMEIDA, DIAS, 2007; SILVA; BARBOSA, 2011; BISOGNIN; BISOGNIN, 2012; TAMBARUSSI; KLÜBER, 2014; MUTTI; KLÜBER, 2018; BISOGNIN; BISOGNIN, 2018; OLIVEIRA, 2017; MALHEIROS; FORNER; SOUZA, 2020 entre outros).

Diferentes perspectivas e interesses relativos à formação do professor têm se evidenciado nas pesquisas. Entre elas, destaca-se, por exemplo, a necessidade de investir no desenvolvimento de competências dos professores para ensinar matemática por meio da Modelagem Matemática, bem como para ensinar Modelagem Matemática (BLUM, 2015;KAISER; SCHWARZ; TIEDEMANN, 2010; DOERR, 2007; entre outros). Outras pesquisas têm se endereçado a aspectos do desenvolvimento profissional requeridos para lidar com a Modelagem Matemática na sala de aula, como é o caso, por exemplo, de Barquero, Bosch e Romo (2018) e Braz e Kato (2017).

Segundo Malheiros, Forner e Souza (2020, p. 5), no que se refere à Modelagem Matemática “uma das principais preocupações é a formação de professores, para que mudanças ocorram nas aulas de Matemática. [...] Em contrapartida, temos várias pesquisas que mostram que a Modelagem não está na escola, por vários motivos [...]”.

Em termos gerais, a formação de professores em Modelagem Matemática, para além de capacitar os professores para a inclusão de atividades de modelagem na sala de aula, deve lhes possibilitar segurança no uso dessas atividades e a audácia para quebrar paradigmas vigentes nos processos de ensino e de aprendizagem da matemática, seja pela força da estrutura escolar, que muitas vezes subtrai a autonomia docente, seja por motivos pessoais de formação, como apontado por Ceolim e Caldeira (2017), por Tambarussi e Klüber (2016) e por Mutti e Klüber (2018). É neste contexto, que o conhecimento do professor entra em cena, sendo necessário que a formação em modelagem matemática contemple, para além de conhecimentos teóricos, conhecimentos associados ao fazer modelagem matemática, bem como ao uso da modelagem matemática para o ensino.

Em particular, sobre o conhecimento dos professores de matemática, Doerr (2007) sinaliza que a natureza do conhecimento dos professores está associada a três características que são complementares: (a) o entendimento do conteúdo matemático; (b) o entendimento da multiplicidade de caminhos pelos quais os professores podem desenvolver seu pensamento; (c) o conhecimento de estratégias pedagógicas que podem ser utilizadas em uma variedade de contextos, a fim de apoiar o desenvolvimento do pensamento matemático dos estudantes.

Esta assertiva pode ser associada também à construção teórica clássica de Shulman (1986), acerca da base profissional docente, bem como às recentes contribuições de Debora Ball e seus colaboradores que versam sobre a necessidade de pesquisas acerca da base de conhecimentos dos professores (BALL; THAMES; PHELPS, 2008; BALL; HILL; BASS, 2005; FERNANDES; CURI, 2012).

A base de conhecimento da docência, de acordo com Shulman (1986), foi organizada inicialmente em três categorias de conhecimentos dos professores – o conhecimento do conteúdo, o conhecimento pedagógico e o conhecimento curricular. Mais adiante, em Shulman (1987), o autor amplia sua construção com a inserção do conhecimento pedagógico do conteúdo, o conhecimento dos professores e de suas características, o conhecimento dos contextos educacionais, bem como o conhecimento dos fins educacionais, propósitos, valores, e de seus fundamentos filosóficos e históricos. E, neste contexto, o conhecimento pedagógico do conteúdo (PCK)[1] é dinâmico e, de acordo com Pereira (2015, p. 38) “de especial interesse para o estudo dos conhecimentos do docente, pois está constantemente sendo construído pelo docente, sendo enriquecido à medida que os outros tipos de saberes se amalgamam”.

Para Ball, Thames e Phelps (2008) o conhecimento pedagógico do conteúdo destacado nos trabalhos de Shulman sugere a necessidade de um conhecimento do conteúdo específico para o ensino. De acordo com os autores, o PCK pode ser dividido em: conhecimento do conteúdo e dos estudantes; e conhecimento do conteúdo e de ensino. As implicações dos avanços teóricos de Debora Ball e seus colaboradores para a Educação Matemática são pauta de diferentes pesquisas e associam a base de conhecimentos dos professores recomendada por Shulman em diferentes aspectos (BARBOSA, 2017; SILVERMAN; THOMPSON, 2008; entre outros).

Com fortes ressonâncias no Brasil e no exterior, a construção teórica acerca do conhecimento pedagógico do conteúdo e do conhecimento do conteúdo específico para o ensino de matemática ganha desdobramentos quando se consideram práticas com a Modelagem Matemática, seja devido às especificidades da Modelagem Matemática, sua aprendizagem e uso em sala de aula, seja devido à incorporação da Modelagem Matemática nos ambientes educacionais.

Ao se debruçar sobre a questão A Modelagem Matemática pode ser ensinada e aprendida?, Blum (2015) coloca em discussão a possibilidade de que o PCK no âmbito da Modelagem Matemática deve se pautar em quatro dimensões caracterizadas em Borromeo Ferri e Blum (2010): dimensão teórica, dimensão da tarefa, dimensão instrucional e dimensão diagnóstica. Cada uma destas dimensões, na perspectiva de Blum (2015), abarca especificidades do conhecimento que o ensino da matemática mediado pela Modelagem Matemática e o próprio ensino do fazer Modelagem Matemática requerem do professor modelador.

No presente artigo, nos pautamos em uma pesquisa empírica para investigar a mobilização do conhecimento pedagógico do conteúdo – PCK, particularmente no que se refere a duas das dimensões caracterizadas por Borromeo Ferri e Blum (2010) e por Blum (2015): a dimensão teórica e a dimensão da tarefa. A pesquisa empírica foi desenvolvida por alunos-professores[2] durante uma disciplina de Modelagem Matemática: Teoria e Práticas na Educação Matemática, ministrada pelas autoras do presente artigo em um programa de pós-graduação em Educação Matemática.

Especificidades de atividades de Modelagem Matemática e a formação do professor

O entendimento que assumimos acerca da Modelagem Matemática na Educação Matemática está alinhado às ideias de Almeida, Silva e Vertuan (2012) que a entendem como uma alternativa pedagógica para o ensino de matemática por meio de situações-problema não matemáticas.

Tal entendimento compreende a ideia de que o uso da Modelagem Matemática na sala de aula pressupõe que os modeladores (alunos e professores) se engajem em atividades em que precisam:

[...] identificar uma situação-problema da realidade e formular um problema associado a esta situação, decidir o que manter e o que ignorar na criação de um modelo matemático para deliberar sobre esse problema e então decidir se os resultados fazem sentido face à situação original (POLLAK, 2015, p. 267).

É neste contexto, que especificidades como a formulação de hipóteses, o uso de simplificações e a estruturação, uso, interpretação e validação de modelos matemáticos fazem parte da dinamicidade de uma atividade de Modelagem Matemática e, de certo modo, a definem e a caracterizam por meio dos elementos de uma atividade dessa natureza, ou seja, a investigação de uma situação-problema, associada ao uso da matemática por meio de um processo investigativo.

Para se referir à dinâmica do desenvolvimento de uma atividade de Modelagem Matemática, na literatura são caracterizadas estruturas denominadas ciclos de Modelagem Matemática. Para Galbraith (2012), estes ciclos cumprem também a função de orientar os modeladores nas suas ações no desenvolvimento de atividades de Modelagem Matemática. No presente artigo nos referimos a um ciclo de Modelagem Matemática apresentado por Blomhøj e KJeldsen (2006) em que se caracterizam seis etapas, (de (a) até (f)), cada uma relacionada a ações requeridas no desenvolvimento de uma atividade de modelagem conforme indica a Figura 1. No ciclo de Blomhøj e KJeldsen (2006), os autores identificam também o que chamam de bases epistemológicas (experiência, teoria, dados) associadas às etapas da Modelagem Matemática, mas com naturezas distintas.


Figura 1
Ciclo de Modelagem Matemática
Ciclo adaptado de Blomhøj e KJeldsen (2006)

Quando nos referimos às especificidades teóricas da Modelagem Matemática, um ciclo de Modelagem Matemática como o da Figura 1, abarca para além da representação de ações dos modeladores nas atividades, especificidades em relação aos domínios com os quais os modeladores precisam se engajar em suas atividades, como a organicidade e as relações de idas e vindas em termos da realidade percebida e do sistema matemático em uso, bem como coloca em evidência os elementos com os quais os modeladores têm contato, como experiências, teorias e dados necessários para o processo investigativo que culmina na solução para um problema da realidade por meio da matemática.

Embora reconhecer as etapas da Modelagem Matemática seja relevante, a formação dos professores em Modelagem Matemática não se refere somente à teoria relativa à Modelagem Matemática, mas também às especificidades do desenvolvimento dessas atividades, como a investigação de uma “realidade”, a formulação de um problema, a formulação de hipóteses, realização de simplificações e uso de modelos matemáticos, bem como seu uso para o ensino e a aprendizagem da matemática. Segundo argumentações de Baumert et al., (2010), independentemente da área em que o professor atua, o pressuposto fundamental sobre o impacto do ensino para a aprendizagem é que as competências do professor aumentam a qualidade do ensino de modo que a aprendizagem do aluno é incrementada pela qualidade do ensino do professor.

Blum (2015, p. 89), com base na análise de vários estudos empíricos, pondera que, na introdução de abordagens de ensino com as quais o professor ainda não está familiarizado, “o professor é o que mais importa!” de modo que para o ensino mediado pela Modelagem Matemática apresentam-se vários desafios e o professor precisa de conhecimentos específicos. Neste contexto, uma superação requerida pelos professores é mudar seu papel de instrutor, que transmite conhecimento, para o papel de facilitador da aprendizagem (MAAß; ENGELN, 2018).

Os argumentos relativos à introdução de atividades de Modelagem Matemática nas aulas, em termos gerais, residem na suposição de que os professores têm um papel fundamental a desempenhar se o foco estiver no ensino de matemática por meio da Modelagem Matemática, ou no ensino da própria Modelagem Matemática. Neste contexto, alguns pesquisadores se dedicam a uma descrição normativa de conhecimentos requeridos pelo professor para as práticas de Modelagem Matemática na sala de aula (por exemplo, KAISER, 2007; KAISER; SCHWARZ; TIEDEMANN, 2010; MAAß, ENGELN, 2018; BLUM, 2015; NISS; HØJGAARD, 2011; BORROMERO FERRI; BLUM, 2010; BORROMEO FERRI, 2018; KRAUSS et al., 2020).

No presente artigo o lugar teórico de onde partimos refere-se às pesquisas amparadas nos argumentos de Shulman (1986), Shulman (1987) e Ball, Hill e Bass (2005). Estes autores consideram categorias distintas em relação ao conhecimento do professor: conhecimento de conteúdo (CK), conhecimento pedagógico de conteúdo (PCK), conhecimento pedagógico/psicológico geral (PK), conhecimento curricular (CUK), conhecimento de professores (LK) e conhecimento de contextos educacionais (EK). Essas categorias visavam destacar o papel do conhecimento do conteúdo e situar o conhecimento baseado em conteúdo no cenário do conhecimento profissional para o ensino (BALL; HILL; BASS, 2005; SHULMAN, 1986, 1987).

No que se refere ao conhecimento pedagógico do conteúdo (PCK), Shulman (1986, p. 9) defende que se trata de um tipo de conhecimento do conteúdo que vai para além do conteúdo específico e aborda um amálgama de aspectos do conteúdo, “os tópicos regularmente ensinados em uma área, as formas mais úteis de representação dessas ideias, as analogias mais poderosas, ilustrações, exemplos, explicações e demonstrações [...] formas alternativas de representação”. Para esse autor este item da base de conhecimentos dos professores abrange ainda, a compreensão do que dificulta ou facilita a aprendizagem de tópicos específicos e do conhecimento de estratégias mais pertinentes para o ensino de determinado conteúdo.

Quando se trata do ensino de matemática particularmente, os trabalhos de Debora Ball e seus colaboradores avançam nessa categorização para abordar o que significa saber matemática com a finalidade de ensiná-la. Ball, Thames e Phelps (2008), por exemplo, detalham um mapa referente ao conhecimento matemático necessário para o ensino como um refinamento do conhecimento pedagógico do conteúdo caracterizado por Shulman.

No que tange à formação de professores em Modelagem Matemática, à articulação dos conhecimentos necessários à docência e ao desenvolvimento profissional do professor, a pesquisa brasileira tem, de fato, mostrado avanços (TAMBARUSSI, KLUBER, 2016; ALMEIDA, DIAS, 2007; BARBOSA, 2001; PEREIRA, 2015; MUTTI; KLÜBER, 2018, por exemplo).

Já na década de 2001, Barbosa (2001, p. 11) agendou uma série de discussões necessárias à pesquisa sobre a formação de professores em Modelagem Matemática, entre elas: “de que forma os professores conduzem atividades de Modelagem?”; “Como os professores iniciantes conduzem atividades de Modelagem?”; “Que saberes os professores produzem no ambiente de Modelagem?”.

Com foco em cursos de formação de professores, Almeida e Dias (2007) apresentam uma perspectiva de formação de professores em Modelagem Matemática a partir da análise de discussões de alunos em formação inicial durante o desenvolvimento de atividades de Modelagem Matemática. Os conhecimentos dos futuros professores e daqueles em formação continuada, aparecem nessa pesquisa, também para o desenvolvimento de conhecimentos sobre a Matemática, seu ensino e o impacto na sala de aula.

Pereira (2015) também com foco na formação de professores em Modelagem Matemática detalha as contribuições de um curso de formação de professores para a base de conhecimentos docentes, investigando em particular a mobilização do conhecimento pedagógico do conteúdo.

Tambarussi e Kluber (2016, p. 140) sistematizam um panorama da área de formação de professores em Modelagem Matemática, indicando, entre outros, que tal formação exige mais do que os conhecimentos de sua disciplina de atuação, mas requer “[...] um cuidado e uma valorização das ideias e conjecturas dos alunos, um olhar para os diferentes assuntos interdisciplinares que podem surgir em uma atividade de Modelagem”.

É nesse contexto que essa pesquisa se insere, com preocupações semelhantes às agendadas por Barbosa (2001) em relação à constituição dos conhecimentos dos professores, em particular do conhecimento pedagógico do conteúdo e das dimensões que o constituem em relação à formação de professores em Modelagem Matemática.

Uma articulação acerca das pesquisas brasileiras sobre conhecimentos de professores de matemática e a Modelagem Matemática foi realizada por Ribeiro e Powell (2019, p. 14), que ao investigar o conhecimento matemático para o ensino, considerando dois domínios – o conhecimento do conteúdo e o conhecimento pedagógico do conteúdo – inferem que a Modelagem Matemática favorece tanto o aprimoramento de conhecimentos de conteúdo pois “os professores aprendem novos argumentos, novas maneiras de encontrar e representar soluções, tentando usar a linguagem matemática de maneira adequada”, quanto oferece conhecimentos para a docência, por meio do desenvolvimento da autonomia docente, auxiliando na construção de um ambiente no qual a resolução de problemas se coloca como um fator para além da identificação e aplicação de procedimentos de cálculo e pode alterar a prática dos professores de matemática de maneira significativa.

Em relação ao ensino da Modelagem Matemática e do ensino mediado pela Modelagem Matemática, a literatura já apresenta algum progresso em torno do que constitui o PCK requerido pelo professor (DOERR, 2007; LINGEFJÄRD, 2013; KAISER; SCHWARZ; TIEDEMANN, 2010; BORROMEO FERRI; BLUM 2010; BARQUERO; BOSCH; ROMO, 2018; KRAUSS et. al, 2020; BISOGNIN; BISOGNIN, 2015; BISOGNIN; BISOGNIN, 2018).

Kaiser, Schwarz e Tiedemann (2010), por exemplo, argumentam que o conhecimento de futuros professores acerca de práticas de Modelagem Matemática muitas vezes não vem junto com um conhecimento dos objetivos do ensino mediado pela Modelagem Matemática, ou seja, quando a prática docente é orientada pela Modelagem Matemática. A formação de professores em Modelagem Matemática, neste contexto, se torna uma necessidade, em particular no que tange a base de conhecimentos necessários para a docência.

Considerando o conhecimento pedagógico do conteúdo como o amálgama de conhecimentos dos professores, suas especificidades em relação aos conteúdos e como estas se articulam aos contextos educacionais, aos propósitos educacionais, valores, e fundamentos filosóficos e históricos; tal conhecimento está em constante construção e diferentes “faces” podem se mostrar dependendo do olhar que lançamos para o que na literatura é denominado de dimensões do conhecimento pedagógico do conteúdo, em particular, ao tratar da formação de professores em Modelagem Matemática:

  1. (1) Uma dimensão teórica: esta inclui o conhecimento do professor relativo à caracterização do que é uma atividade de modelagem e como se dá o seu desenvolvimento. Assim, nesta dimensão se inclui a identificação de ciclos de Modelagem Matemática bem como a possibilidade de considerar diferentes objetivos para a inclusão de uma atividade de Modelagem Matemática em consonância com que se caracteriza em Kaiser e Sriramam (2006) como perspectivas de Modelagem Matemática;

    (2) Uma dimensão chamada por Blum (2015) de dimensão da tarefa. Nesta dimensão, a formação deve prover o professor de conhecimentos que o levam a lidar com práticas de modelagem nas quais ele precisa identificar e formular um problema, realizar simplificações, definir hipóteses, se apropriar da informação de que é possível encontrar diferentes soluções e de que deve encontrar meios para avaliá-las e validá-las. Nesta dimensão está implícito que é essencial reconhecer e conhecer a matemática que emergir na atividade;

    (3) Uma dimensão instrucional em que o professor deve aprender como lidar com seus alunos no desenvolvimento de atividades de Modelagem Matemática, reconhecendo como e quando intervir, dar suporte e fazer feedback, além de estar certo de que ensinar matemática pode lhe ser solicitado pelos alunos;

    (4) Uma dimensão diagnóstica em que deve se familiarizar como pode reconhecer as dificuldades de seus alunos e como progrediram em cada atividade. Estas quatro dimensões do PCK ao mesmo tempo em que detalham como ensinar o fazer Modelagem Matemática, também sinalizam como ensinar por meio de Modelagem Matemática.

Aspectos Metodológicos

No presente artigo nos pautamos em uma pesquisa empírica para investigar a mobilização do conhecimento pedagógico do conteúdo, particularmente no que se refere a duas das dimensões caracterizadas por Borromeo Ferri e Blum (2010) e por Blum (2015): a dimensão teórica e a dimensão da tarefa. Com esta finalidade analisamos duas atividades de Modelagem Matemática desenvolvidas na disciplina Modelagem Matemática: Teoria e Práticas na Educação Matemática, ministrada pelas autoras do presente artigo em um programa de mestrado e doutorado em Educação Matemática. Dezoito alunos-professores formaram quatro grupos e participaram do desenvolvimento dessas duas atividades, sendo cada uma delas desenvolvida por dois grupos.

Dos 18 participantes da pesquisa, 14 eram professores havia mais de um ano. Os outros quatro tinham pequenas experiências com docência. Todos já haviam desenvolvido outras atividades de Modelagem Matemática na disciplina a que nos referimos bem como em outras oportunidades de sua vida acadêmica ou profissional.

A coleta de dados foi feita com os estudantes organizados em grupos, sendo quatro grupos trabalhando cada dois em uma das temáticas indicadas pelas professoras da disciplina, grupo 1 e grupo 2 Logística Reversa, grupos 3 e 4 Desmatamento. Os dados para subsidiar nossas análises foram coletados por meio de:

  1. - gravação em áudio do desenvolvimento das duas atividades durante as reuniões dos grupos;

    - relatório entregue contendo a descrição da atividade realizada;

    - comunicação da atividade para os participantes da disciplina;

    - resposta, individual, a um questionário digital sobre o desenvolvimento das atividades, especificidades em relação aos procedimentos e ações requeridos para solucionar a situação-problema, reflexões referentes o ensino mediado pela atividade de Modelagem Matemática, facilidades e dificuldades observadas no desenvolvimento das atividades;

    - a entrega de um ciclo de modelagem matemática, que foi objeto de reflexão do grupo para pontuar as ações dos participantes do grupo nas atividades de Modelagem Matemática desenvolvidas.

Consideramos a pesquisa, de natureza qualitativa, dada a investigação da mobilização do conhecimento pedagógico do conteúdo, em particular por meio das dimensões teórica e de tarefa no contexto de atividades de modelagem matemática. Para guiar nossas reflexões, nos pautamos em uma abordagem interpretativa e estruturamos a análise de modo a considerar: uma descrição das atividades de Modelagem Matemática desenvolvidas, a investigação das dimensões de tarefa e teórica nas ações dos alunos durante as atividades, nas suas reflexões ao responder o questionário posterior às atividades, bem como nos registros que representam a organicidade do ciclo de Modelagem Matemática em relação às atividades realizadas.

As atividades de Modelagem Matemática desenvolvidas

Para a pesquisa empírica aqui referida duas temáticas passíveis de investigação foram sugeridas pelas professoras aos 18 alunos-professores. Uma delas, Logística Reversa, refere-se à devolução de embalagens de produtos agrotóxicos pelos usuários dos produtos em áreas rurais. A outra, Desmatamento da Amazônia Legal, dirige-se a uma análise de uma questão polêmica, inclusive no cenário internacional, que é o desmatamento desenfreado ou não regularizado da Mata Amazônica. Os dezoito alunos-professores fizeram então quatro grupos e, espontaneamente cada temática foi escolhida por dois grupos.

A atividade Logística Reversa

Esta atividade foi desenvolvida por dois grupos de alunos-professores indicados aqui por G1 e G2. Na atividade, embora a temática tivesse sido sugerida pelas professoras, não havia um problema a ser resolvido e também não havia informações, especialmente quantitativas, em que os alunos pudessem se ancorar. Esta etapa do desenvolvimento da atividade já era de responsabilidade de cada grupo de alunos-professores.

O grupo G1 definiu o problema como sendo: investigar os impactos da logística reversa na reciclagem de plásticos. Com essa finalidade, em sites da internet especializados, coletaram dados relativos à quantidade de embalagens destinadas à logística reversa no período de 2000 a 2016. Para matematizar a situação, o grupo associou os dados relativos a esse período a uma sequência numérica. Considerando a característica da situação de que esta quantidade aumenta no decorrer dos anos, puderam considerar que essa sequência é crescente. Porém, também coube aqui a hipótese de que essa sequência é limitada. Provavelmente a partir de suas experiências anteriores com Modelagem Matemática, o grupo optou pelo método de Ford Walford[3] para elaborar um modelo assintótico que possibilitasse modelar matematicamente a situação-problema e obter um modo de realizar previsões para o crescimento no decorrer do tempo em relação ao número de embalagens recicladas, considerando o comportamento atual dos dados. A Figura 2 é uma síntese das ações dos alunos relativas ao desenvolvimento da atividade de modelagem do Grupo 1. Na apresentação da atividade para todos os participantes da disciplina os alunos-professores justificaram alguns de seus procedimentos matemáticos conforme segue.

[...] como os dados relativos à quantidade de plástico produzido no Brasil se referem ao ano de 2018, ao multiplicarmos 51,0019, quantidade de embalagens devolvidas na logística reversa segundo nosso modelo para o ano de 2018, por 0,9405, obtemos que 47,96 mil toneladas de embalagens plásticas são recicladas. Dividindo isso 1000, temos que 0,04796 representa o total em toneladas de embalagens plásticas devolvidas e, consequentemente recicladas. [...] no ano de 2018, [...] o Brasil reciclou 145,043 toneladas de plástico e o sistema de logística reversa contribuiu com um total de 0,04796 toneladas, valor que representa 3,30% do total.

Registros dos professores do Grupo 1 na comunicação da atividade.


Figura 2
Modelando o impacto da reciclagem na logística reversa no Brasil
Registros do Relatório do Grupo 1

Já os alunos-professores do Grupo 2 se interessaram por um problema diferente relativo à temática da Logística Reversa. Este grupo formulou o problema visando associar a emissão de CO2 à geração de energia ocasionada pela logística reversa. Na matematização da situação o grupo indicou a variação da quantidade de embalagens no decorrer do tempo e foram construídos dois modelos, sendo um para o total de emissão de carbono (aterro+incinerado) em mil/ton e um para o total de energia produzida (aterro+incinerado) em KWh. A partir dos dados iniciais (os mesmos usados pelo Grupo 1) os alunos-professores fizeram comparações indicando o que ocorreria se o lixo que hoje é incinerado fosse todo para um aterro. Alguns registros dos caminhos percorridos pelos professores na atividade de Modelagem Matemática são expostos na Figura 3.

Em seu desenvolvimento, os alunos-professores do Grupo 2 não consideraram os impactos gerados pelas embalagens que são recicladas. Investigaram matematicamente a emissão de CO2 no sistema atual de tratamento das embalagens, ou seja, pelas embalagens que são incineradas mais as embalagens que vão para o aterro e, o que ocorreria se as embalagens que são incineradas fossem para o aterro também. Como resultado, uma diferença foi notada no que diz respeito à emissão de CO2 em relação ao sistema atual, e caso todo o lixo produzido pelas embalagens de agrotóxicos fosse para o aterro, ou seja, se não houvesse a logística reversa. Puderam inferir então que com a logística reversa, houve uma redução considerável na emissão de CO2.


Figura 3
Modelando a produção de CO2 e a geração de energia a partir do lixo incinerado no Brasil
Registros do Relatório do Grupo 2

Este grupo também apresentou justificativas e esclarecimentos em relação aos seus procedimentos na apresentação da atividade conforme indica a transcrição a seguir.

O lixo incinerado emite uma quantidade muito menor de CO2 no ambiente se comparado ao lixo que vai para o aterro. [...] Uma diferença de aproximadamente 190 mil toneladas. [...] Enquanto que o lixo incinerado produz uma quantidade relevantemente maior de energia elétrica se comparado ao lixo destinado à aterro. [...] Uma diferença de quase 15000 mil kWh.

Registros dos professores do Grupo 2 na comunicação da atividade.

A atividade Desmatamento da Amazônia Legal

Esta atividade foi desenvolvida por dois grupos de alunos-professores indicados aqui por G3 e G4. Na atividade, embora a temática tivesse sido sugerida pelas professoras, não havia um problema a ser resolvido e nem dados coletados, cabendo essas etapas aos grupos. Os alunos do grupo G3 formularam o problema: determinar um modelo matemático que permita prever o desmatamento do local para um período a partir do ano de 2019.

A partir da análise dos dados que coletaram em sites da internet, os alunos-professores consideraram como hipótese que a variação do desmatamento é proporcional ao desmatamento acumulado. A partir dessa inferência, a matematização da situação conduziu a um modelo exponencial. Tal procedimento, no entanto, levou a conclusão de que em algum momento no tempo, entre 2051 e 2052 o desmatamento seria total. Os alunos concluíram então que o modelo matemático poderia ser usado somente para análise da situação do desmatamento para curtos períodos de tempo, sendo necessário revisitá-lo periodicamente para rever parâmetros, visto que o comportamento dos dados pode ser modificado por políticas públicas, mudanças de governo, entre outros. A Figura 4 ilustra aspectos relevantes do desenvolvimento da atividade pelos alunos-professores do Grupo 3.


Figura 4
Modelando a projeção do desmatamento da Amazônia, dada a tendência atual
Registros do Relatório do Grupo 3

No desenvolvimento desta atividade pelos alunos-professores do grupo G4, o problema foi definido como sendo: determinar a área da região desmatada na Amazônia Legal no período de 1988 a 2018. Suas formulações também se apoiaram em informações obtidas em sites oficiais. Parte do interesse dos alunos-professores deste grupo residia no uso de tecnologias digitais para resolver um problema associado a essa temática, e neste sentido a resolução foi efetuada considerando o uso do software GeoGebra, em particular com a finalidade de uso de situações reais que podem ser estruturadas por meio de tecnologias digitais. A resolução do grupo se deu conforme indica a Figura 5.


Figura 5
Modelando a área desmatada na região da Amazônia Legal de 1988 a 2018
Registros do Relatório do Grupo 4.

Investigando o PCK, nas dimensões teórica e da tarefa

Nas atividades a que nos referimos no presente artigo a temática foi sugerida pelas professoras, todavia os alunos-professores desenvolveram as atividades de forma independente, formulando um problema a partir desta situação da realidade e obtendo uma solução, em conformidade com ações caracterizadas no ciclo de modelagem de Blomhøj e KJeldsen (2006).

No desenvolvimento das atividades pelos quatro grupos, a adequação entre o apoio das professoras e o trabalho independente dos denominados alunos-professores na presente pesquisa, vem pautada nas considerações de Blum (2015, p. 21) quando formula a questão: “Como pode se chegar ao equilíbrio entre o trabalho independente dos alunos e a orientação do professor, considerando um suporte mínimo do professor em atividades de Modelagem Matemática?” No âmbito das atividades a que nos referimos, podemos argumentar que esse suporte mínimo significa que as professoras colaboravam com os alunos-professores quando solicitadas e nos casos em que seriam necessárias intervenções para melhorar a qualidade do que os alunos–professores estavam fazendo em relação à solução do problema ou em relação aos conceitos matemáticos em uso. É neste contexto que trazemos para a pauta a discussão em torno da dimensão teórica e da dimensão da tarefa relativas ao PCK em atividades de Modelagem Matemática.

O esforço analítico relativo às atividades com as temáticas Logística Reversa e Desmatamento da Amazônia indica que os alunos-professores produziram conhecimentos associados à identificação e formulação de um problema, realização de simplificações, formulação de hipóteses. Tais excertos e ações sinalizam manifestações da dimensão teórica do conhecimento pedagógico do conteúdo, uma vez que estão associadas às particularidades da Modelagem Matemática, como já sinalizado por Pollak (2015), por exemplo, em relação à formulação de problemas e por Almeida, Silva e Vertuan (2012) em relação à formulação de hipóteses e condução de um processo investigativo.

No que tange à dimensão da tarefa, em resposta ao questionário após o desenvolvimento das atividades, identificamos diferentes estratégias que poderiam conduzir a diferentes soluções para a problemática investigada. O excerto de um dos alunos-professores indica, por exemplo, a possibilidade de investigação da temática Desmatamento da Amazônia por meio de duas soluções:

Pela experiência que tive nas discussões do grupo, deu para ver que fazer Modelagem Matemática é uma atividade interessante, mas desafiadora porque depende muito do entendimento da situação-problema (se pretende descrever ou prever). Em qualquer das situações, vários caminhos podem ser seguidos. O meu grupo, por exemplo, considerou dois modos de resolver o mesmo problema (pela integral ou pela área de polígonos).

Registro de integrante do Grupo 4.

Relativamente à dimensão da tarefa do conhecimento pedagógico do conteúdo é relevante para a formação em Modelagem Matemática o reconhecimento de noções, conceitos e conteúdos da matemática que podem emergir nas atividades. No questionário respondido pelos alunos-professores após o desenvolvimento das atividades, houve a identificação de possíveis conteúdos da matemática que poderiam emergir do desenvolvimento dessas atividades em práticas docentes com estas atividades. No Quadro 1 apresentamos uma síntese das respostas relativas ao questionamento sobre estas possibilidades

Quadro 1
Reconhecimento e identificação de possíveis conceitos e usos da matemática

Registros dos alunos-professores

Para além dos possíveis usos da Matemática e dos diferentes conceitos que poderiam ser mobilizados para a resolução dos problemas matemáticos idealizados, os alunos-professores indicaram ainda uma diversidade de conceitos não matemáticos que o desenvolvimento destas atividades poderia abarcar, em consonância com a ideia de que a dimensão da tarefa relativa ao PCK também deve prover o professor de possibilidades para discussões sobre a relevância de atividades de Modelagem Matemática nas aulas para trazer à tona o papel da matemática em outras áreas do conhecimento ou na sociedade. O Quadro 2 sumariza elementos apontados pelos alunos-professores como possibilidades de delineamento de novos problemas para investigar a partir da temática inicial, em particular quando se considera outros contextos de ensino e de aprendizagem ou diferentes níveis de escolaridade.

Quadro 2
Que aspectos podem permear os problemas delineados a partir do tema investigado

registros dos alunos-professores

Essa organização, tanto em torno da matemática usada quanto dos possíveis desdobramentos do tema, pode estar próxima do que Doerr (2007) indica como associado à natureza do conhecimento dos professores em situações que relacionam práticas de modelagem, ou seja, a complementariedade entre o entendimento do conteúdo matemático, a multiplicidade de caminhos pelos quais os professores podem desenvolver seu pensamento e as estratégias pedagógicas que podem ser utilizadas em práticas futuras do aluno-professor. Essas ideias também estão presentes nas falas dos alunos-professores como, por exemplo, no que diz um aluno do G4 na apresentação da atividade para todos os alunos da disciplina:

É possível desenvolver diversos modelos matemáticos para uma mesma situação dependendo do olhar que o estudante tem sobre ela. O estudante que se identifica mais com geometria talvez tenha interesse em tratar áreas desmatadas, enquanto um que tenha maior interesse em cálculo aborde o problema por uma perspectiva que pode permitir fazer previsões.

Registro de integrante do Grupo 4.

A fala do integrante do Grupo 4 indica tanto a mobilização de diferentes conteúdos matemáticos a depender do nível de escolaridade, quanto a multiplicidade de caminhos que os professores podem usar para auxiliar os alunos no ensino e na aprendizagem mediados pela Modelagem Matemática.

Reconhecer o conhecimento pedagógico do conteúdo a partir de sua mobilização em atividades de modelagem matemática implica investigar as dimensões que o constituem, em particular, a dimensão teórica e a dimensão de tarefa. E, ainda, buscar indícios de como o professor pode se dispor a quebrar paradigmas, conforme ponderam Ceolim e Caldeira (2017) e estar ciente de que, conforme sugerem Baumert et al. (2010), a qualidade do ensino interfere diretamente na aprendizagem. Neste sentido, apresentamos como exemplo uma articulação realizada por um dos alunos-professores que indica uma análise sobre seu próprio desenvolvimento no decorrer da atividade de Modelagem Matemática:

Aprendi sobre um processo chamado logística reversa, que consiste na devolução de embalagens de agrotóxicos para um retorno correto do material e que este possui uma grande importância para a reciclagem de materiais plásticos. Também, durante a resolução retomei métodos matemáticos como de Ford-Walford e dos mínimos quadrados para ajuste de curvas, que exigiram um reestudo e consequentemente um aprendizado sob outra perspectiva, agora mais para eu ensinar do que propriamente para eu aprender. Além disso, acredito que minhas habilidades com problemas de Modelagem Matemática evoluíram, causando assim um aprendizado de como lidar com diferentes tipos de problemas.

Registros de Integrante do Grupo 1.

Em questão respondida no questionário após o desenvolvimento das atividades os alunos-professores fizeram uma autoanálise relativa ao conhecimento mobilizado no desenvolvimento da atividade, seja em relação aos conteúdos matemáticos, seja em relação às especificidades dos temas investigados nas atividades, conforme sugere o Quadro 3.

Quadro 3
Reflexões sobre os conhecimentos de conteúdos matemáticos e extra-matemáticos identificadas pelos alunos-professores

Registros dos alunos-professores

Relativamente à caracterização de uma atividade de Modelagem Matemática no âmbito da dimensão teórica do PCK, podemos inferir que as atividades desenvolvidas pelos grupos de alunos-professores lhe proporcionaram conhecer ou, talvez retomar o que já conheciam sobre o ciclo de Modelagem Matemática, em particular no que se refere às ações desempenhadas na atividade. O Quadro 4 indica especificidades da atividade de Modelagem Matemática de acordo com os alunos.

Quadro 4
Especificidades relativas à uma atividade de Modelagem Matemática

Registros dos alunos-professores

Na disciplina em que foram desenvolvidas as atividades foram estudados textos relativos à Modelagem Matemática e, particularmente, discussões relativas à construção de ciclos de Modelagem Matemática permearam algumas ações das professoras na disciplina. O ciclo de Modelagem Matemática como apresentado em Blomhøj e KJeldsen (2006) e inserido na Figura 1 deste artigo, foi usado na disciplina. Conforme sugerem Borromeo Ferri (2018) e Galbraith (2012), por exemplo, os ciclos de modelagem podem servir como orientação para alunos modeladores e como instrumentos de avaliação para professores.

Neste sentido, na presente pesquisa, construir um ciclo de Modelagem Matemática de uma atividade de modelagem desenvolvida pode ser um indicativo, considerando a dimensão teórica do PCK em Modelagem Matemática, de como os alunos-professores compreenderam o desenvolvimento de uma atividade de Modelagem Matemática.

Após o desenvolvimento das atividades, os grupos foram solicitados a construir um ciclo de modelagem considerando suas ações na atividade e especificando seus procedimentos usando o ciclo apresentado na Figura 1 deste artigo. Trazemos para a discussão um ciclo de cada uma das atividades desenvolvidas utilizando como critério aquele que continha mais elementos da atividade realizada pelo grupo ao comparar o ciclo com o relatório dos alunos e a comunicação realizada.

Os integrantes do grupo G2 construíram o ciclo conforme indica a Figura 6, visando expor suas ações na atividade com a temática Logística Reversa e o problema de investigar o impacto do CO2 na produção de energia. Os alunos-professores procuraram, de forma discursiva, explicitar suas ações em cada uma das etapas especificadas neste ciclo. Especificaram sua inteiração com os dados da situação-problema articulada à formulação da tarefa. A organização dos dados em tabelas, a formulação de hipóteses com a sistematização. Na matematização explicitaram seus procedimentos e como o uso de matrizes lhes permitiu estudar o problema, considerando que o problema matemático se apresentou sob a forma de produto de matrizes. Já nas etapas de interpretação e validação de resultados o grupo fez comparações dos resultados obtidos com o seu modelo e os dados obtidos nas tabelas na etapa de coleta de dados.


Figura 6
Ciclo de Modelagem Matemática do Grupo 2 na Atividade Logística Reversa
Dados da Pesquisa

Na apresentação do ciclo relativo à atividade, um dos integrantes do grupo detalhou sua experiência na construção do ciclo da Figura 6:

Aprendi a modelar, traduzindo, aprendi a passar pelo ciclo de modelagem completo. Mais do que cumprir o ciclo completo, aprendi as especificidades de cada etapa do ciclo, sobretudo nas primeiras onde compreendemos a situação e formulamos os problemas com base no qual escolhemos quais dados usar (alguns dos quais não eram dados pela professora); definimos as hipóteses (com o cuidado para que não fossem apenas informações), definimos variáveis e usamos matemática, mesmo que a gente tivesse que retomar os conceitos. Todas as etapas do ciclo são importantes, mas as iniciais encaminham a modelagem, havendo casos em que só a validação denuncia a imprecisão, pelo que, se deve voltar a analisar.

Registros de Integrante do Grupo 1.

O Grupo 3, por sua vez, para indicar como conduziu o desenvolvimento da atividade com temática Desmatamento da Amazônia e o problema Determinar um modelo matemático que permita prever o desmatamento do local para um período a partir do ano de 2019, especificou de forma abreviada seus procedimentos no ciclo, conforme indica a Figura 7. Entretanto, um dos integrantes do grupo procurou explicitar como entendeu o que no ciclo apresentado por Blomhøj e KJeldsen (2006) se denomina sistema matemático:

Neste caso o sistema matemático é formado pelo método de Ford-Walford articulado com o método dos mínimos quadrados. Ele fornece a assíntota e também o modelo matemático para fazer as previsões. Mas o modelo leva a uma reflexão se vai ter mesmo o desmatamento total da Amazônia.

Registros de Integrante do Grupo 1.


Figura 7
Ciclo de Modelagem Matemática do Grupo 3 na Atividade Desmatamento da Amazônia
Registros dos alunos-professores

Os itens identificados pelos alunos-professores no ciclo da Figura 7 se referem especificamente à síntese das ações dos mesmos e aos métodos usados para determinar a previsão do desmatamento considerando um conjunto de dados. Entretanto, a articulação entre as ações e procedimentos na atividade de Modelagem Matemática desenvolvida e as especificações do ciclo usado como bases pelas professoras, indicam que relativamente à dimensão teórica do PCK, os alunos-professores ao mesmo tempo em que trabalharam no fazer Modelagem Matemática, aprenderam, reconheceram e mobilizaram o que Pollak (2015) associa à natureza das atividades de Modelagem Matemática: a formulação de um problema e sua resolução até a tomada de decisão em relação à validade dos resultados obtidos, os quais podemos articular com a dimensão da tarefa.

Assim as dimensões teórica e de tarefa que constituem parte do conhecimento pedagógico do conteúdo em atividades de Modelagem Matemática se mostram: na organicidade teórico-prática mobilizada pelos alunos no desenvolvimento das atividades de Modelagem Matemática; nas reflexões que emergem em relação aos usos de conceitos matemáticos nas atividades; em relação à multiplicidade de caminhos possíveis para a resolução de problemas definidos nas temáticas investigadas; na organicidade teórica que constitui saber Modelagem Matemática a partir da prática com atividades de Modelagem Matemática.

Considerações finais

Neste artigo temos como foco a formação do professor em Modelagem Matemática considerando, particularmente, duas dimensões do que se conhece na literatura como conhecimento pedagógico do conteúdo (PCK). Blum (2015) pondera que o PCK em programas de formação de professores para Modelagem Matemática deve atender a quatro dimensões: dimensão teórica, dimensão da tarefa, dimensão instrucional e dimensão diagnóstica.

Dirigindo nossa análise para duas dessas dimensões, dimensão teórica e dimensão da tarefa, não temos a intenção de deixar transparecer que a investigação dessas dimensões é fragmentada, uma vez que consideramos o debate já suscitado por Shulman (1986, 1987) em torno do amálgama acerca da base de conhecimentos do professor.

Assim como Pereira (2015) sinalizou que o PCK está em constante desenvolvimento pelos docentes e é enriquecido na medida em que outros tipos de conhecimentos se inter-relacionam, podemos afirmar que as dimensões desenhadas por Borromeo Ferri e Blum (2010) e por Blum (2015) mostram, cada uma, facetas do conhecimento pedagógico do conteúdo dos professores em Modelagem Matemática.

Partindo da premissa de que a investigação do conhecimento pedagógico do conteúdo impacta os processos de ensino e de aprendizagem, como indicado por Baumert et al. (2010), e levando em conta a assertiva de Blum (2015) em relação à importância do professor perante o desafio de incluir atividades de Modelagem Matemática na sala de aula, conduzimos uma pesquisa empírica em que as atividades de Modelagem Matemática foram desenvolvidas por alunos-professores de um curso de pós-graduação e apresentamos nossas contribuições a partir de um processo analítico relativo às ações de dezoito alunos-professores em duas atividades de Modelagem Matemática.

Da análise das ações dos alunos-professores nessas atividades temos indícios de que houve articulação da teoria sobre Modelagem Matemática com elementos da situação problema; articulação da teoria sobre Modelagem Matemática com elementos da matemática; a dinamicidade do fazer Modelagem Matemática foi associada às etapas de um ciclo de Modelagem Matemática; múltiplas possibilidades foram vislumbradas pelos alunos, seja em termos de propor um problema, seja em termos de encontrar soluções para ele. Inferimos que tais ações se relacionam na formação do professor em Modelagem Matemática por meio de um movimento de idas e vindas em que saber Modelagem Matemática está intimamente ligado ao fazer Modelagem Matemática. A prática é intencionada a partir de um viés teórico ao mesmo tempo em que a teoria é influenciada pela maneira como os alunos-professores atuam no desenvolvimento de atividades de Modelagem Matemática.

As atividades apresentadas também confirmam que um aspecto relevante da Modelagem Matemática é que, em geral, múltiplas soluções são possíveis. Nesse contexto, encontrar e analisar várias soluções nas atividades pode fornecer aos professores maneiras de organizar situações de ensino mediadas pela Modelagem Matemática.

Neste sentido, considerando a disciplina que estavam frequentando como parte da formação do professor em modelagem, a dimensão teórica e a dimensão da tarefa caracterizadas em Blum (2015) como partes do PCK, se fortaleceram para os alunos-professores integrantes dos quatro grupos.

Além disso, uma questão importante discutida nas atividades que apresentamos diz respeito à importância do fazer modelagem para aprender modelagem, seja como modelador, seja como professor para uso em futuras práticas de ensino, o que destaca a dimensão teórica e que ao mesmo tempo pode ser articulada com as demais dimensões do PCK para modelagem. Os alunos-professores agiram como modeladores com o objetivo de aprender e usar conceitos matemáticos e como modeladores que desejam aprender a fazer Modelagem Matemática, ou para resolver problemas ou para ensinar a usar modelagem e conceitos matemáticos que emergem neste interim.

Neste artigo, nos debruçamos sobre duas dimensões do PCK. Certamente é necessário considerar que estudos futuros requerem atenção para as demais dimensões, bem como para as demais categorias de conhecimento caracterizadas por Ball, Hill e Bass (2005) e Ball, Thames e Phelps (2008), objetivando as competências exigidas para o professor que utilizará Modelagem Matemática em suas aulas.

A presente investigação, por um lado vai ao encontro do que sugerem Kaiser, Schwarz e Tiedemann (2010) em relação à relevância da diversidade de tarefas e ações que os programas de formação de professores devem incluir visando seus efeitos sobre aspectos particulares do conhecimento pedagógico do conteúdo. Todavia o desafio continua em torno de um programa que se mostre apto à formação incluindo conteúdos ligados à prática profissional, ao conhecimento e às habilidades requeridas na formação em Modelagem Matemática visando colaborar para a inserção de atividades de Modelagem Matemática nas escolas, como indicado por Malheiros, Forner e Souza (2020), ou para transpor inseguranças nas práticas docentes com modelagem, como sugerem, por exemplo, Ceolim e Caldeira (2017), Tambarussi e Klüber (2016) e Mutti e Klüber (2018).

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Notas

[1] Manteremos no artigo a sigla em inglês PCK (Pedagogical Content Knowledge) sempre que nos referirmos ao conhecimento pedagógico do conteúdo.
[2] Usamos a terminologia alunos-professores para nos referir a alunos da disciplina de Modelagem Matemática e que já são professores.
[3] Para detalhes do método ver Bassanezi (2002).

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