Artigos

EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E ECONOMIA SOLIDÁRIA

EDUCATION OF YOUTH AND ADULTS AND SOLIDARITY ECONOMY

Delarim Martins Gomes
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
Maria Urbana da Silva
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil

REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática

Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil

ISSN-e: 2318-6674

Periodicidade: Frecuencia continua

vol. 4, núm. 2, 2016

revistareamec@gmail.com



DOI: https://doi.org/10.26571/2318-6674.a2016.v4.n2.p80-93.i5330

Os direitos autorais são mantidos pelos autores, os quais concedem à Revista REAMEC –Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática -os direitos exclusivos de primeira publicação. Os autores não serão remunerados pela publicação de trabalhos neste periódico. Os autores têm autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para distribuição não exclusiva da versão do trabalhopublicada neste periódico (ex.: publicar em repositório institucional, em site pessoal, publicar uma tradução, ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação inicial neste periódico. Os editores da Revista têm o direito de proceder a ajustes textuais e de adequação às normas da publicação.

Resumo: A primeira experiência de formação continuada de profissionais da educação, em escala nacional, iniciou-se nos anos 1950. A Campanha de formação não durou duas décadas. Com sua extinção, a formação continuada restringiu-se a atividades descontínuas, geograficamente pulverizadas. Em 2011, o governo federal criou o sistema nacional de formação continuada, em regime de colaboração com estados e municípios. A retomada da formação continuada para professores de educação básica, incluiu programas específicos para professores de EJA. Contudo, os estudos sobre a formação continuada, em geral, e para professores de EJA, em específico, são incipientes e dispersos. Este artigo contextualiza o processo de formação, induzida pelo governo federal, como ambiência para o relato de uma experiência pioneira em Mato Grosso: a realização de um curso de pós-graduação lato sensu para professores de EJA. Com mediação da pesquisa exploratória e da narração documental, ambos – contextualização e relato da experiência – alicerçam a apreciação crítica da experiência realizada e do programa que a tornou possível. A crítica evidencia limites do regime de colaboração, da UFMT enquanto executora de ações de formação continuada e dos próprios cursistas. Conclui que a formação continuada é uma positividade inquestionável. Mas, superado o atual encolhimento por alegada falta de recursos, precisa ser requalificada, sobretudo, pela constituição de cada sistema de ensino como entidade formadora autônoma, que organiza e gerencia a formação continuada dos próprios professores, preferivelmente na escola, para constituir seu corpo docente, sem vínculo contratual precário, com formação adequada e comprometido com a qualidade da educação.

Palavras-chave: Educação básica, Educação de Jovens e Adultos, Formação continuada.

Abstract: The first continuing education experience of education professionals on a national scale began in 1950. The training campaign did not last two decades. With its demise, continuing education was restricted to discrete activities, geographically sprayed. In 2011, the federal government created the national training system of continuing education, in collaboration with states and municipalities. The retaking of continuing education for basic education teachers included specific programs for youth and adult education teachers. However, studies of continuing education in general and on EJA teachers, in particular, are incipient and dispersed. This article analyzes the process of formation induced by the federal government as ambience for the account of a pioneering experience in Mato Grosso: the realization of a lato sensu post-graduation course for adult education teachers. With mediation of exploratory research and documentary narration, both – contextualization and reporting experience – undergird critical appreciation of the experience carried out and the program that made it possible. The criticism highlights limits of collaborative scheme, of UFMT as executor of continuing education activities and of course participants themselves. The study concludes that continuing education is a positivity unquestioned. But, overcome the current shrinking for alleged lack of resources, it needs to be re-qualified, mainly by the constitution of each education system as an autonomous training organization, which organizes and manages the continuous formation of teachers, preferably in the school, to constitute its faculty without precarious contractual relationship, with proper training and committed to the quality of education.

Keywords: Basic education, Youth and Adult Education, Continuing education.

1. INTRODUÇÃO

Em Mato Grosso, a cada dia letivo de 2013, ano de início do curso de pós-graduação lato sensu de Educação de Jovens e Adultos e Economia Solidária (EjaEcoSol), 5.621 professores concluíram a jornada de ensino para 97.321 alunos de Educação de Jovens e Adultos (EJA), em 559 escolas (INEP, 2014). Em 2015, ao enceramento do curso, eram 6.155 formadores e 76.890 estudantes na mesma modalidade, porém em 549 escolas (INEP, 2016). Pequena diminuição das escolas de EJA, decréscimo de 21% do alunado e incremento do professorado em 10%.

Duas sinopses de censos da educação básica, produzidas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), em 2013 e 2015, permitem delinear algumas características dos docentes da EJA, em Mato Grosso. Professores com “até 24 anos” eram, em 2013, 4,4% dos docentes de EJA e, em 2015, 4,7%; no primeiro ano, “professores com mais de 50 anos” constituíam 11,9% e em 2015, 15,8% do total. Em 2013, professoras: 68% e professores, 32%; em 2015, similarmente, esses grupos fracionavam-se, respectivamente, em 69% e 31%.

O censo de 2013 revela que esses docentes, eram, majoritariamente, profissionais entre 25 e 50 anos (83,8%), com educação superior (93%), porém, apenas 64% com licenciatura. Conforme o censo de 2015, 53% havia feito uma pós-graduação lato sensu e, 2%, o mestrado. Ainda com dados de 2013, 97% trabalhava em uma única escola, contudo, 68% com duas a cinco ou mais turmas de alunos. Em relação ao vínculo trabalhista, com informações de 2015, mesmo em escolas públicas, 46% tinham contrato temporário (INEP, 2014; INEP, 2016).

Para a LDB, a formação mínima para o magistério na educação básica é a licenciatura. Mas, em Mato Grosso, um em cada três professores da EJA não atendia à norma; situação agravada por haver licenciados trabalhando em áreas curriculares diversas das áreas de formação. Em adição à titulação inadequada, outras variáveis obscureciam a qualidade docente na EJA. Entre elas, a pequena presença, nas licenciaturas em Mato Grosso, da EJA como objeto de ensino. Em instituições privadas, reduz-se a componente curricular único e a poucas horas de estágio; nas públicas, usualmente, é componente optativo e, apenas por decisões pessoais de docentes ou acadêmicos, campo de estágio. A tênue competência profissional do professorado da América Latina e, portanto, também dos professores de EJA, deriva, ainda, da fraca relação entre titulação e profissionalização. Conforme Bruns e Luque (2015, p. 7), os professores apresentam,

Altos níveis de educação formal, mas habilidades cognitivas precárias. [...] Há poucos estudos diretos sobre o quanto os professores latino-americanos conhecem as matérias que lecionam, mas os que estão disponíveis mostram uma desconexão perturbadora entre as credenciais formais de professores e suas habilidades cognitivas.

Essencialmente, essa mesma constatação é convalidada por pesquisa sobre a formação do professor no Brasil, ilustrada por Abrucio (2016, p. 41) com o seguinte depoimento:

O fato é que, mesmo tendo sido um enorme avanço aumentar a escolaridade dos professores que já estavam nas redes, não soubemos traduzir a formação de nível médio, que o Normal dava, em uma formação, na universidade, adequada ao ofício de professor. Essa visão que separa a reflexão pedagógica dos instrumentos de ensino, dizendo que a didática é mera tecnicalidade, levou a concentrar a formação em teorias tão gerais que não ajudam a profissionalizar o docente.

Este estado de coisas é de conhecimento das instâncias públicas que gerem a educação. Não raro, cada novo governo, nas instâncias federadas, engendra soluções, supostamente eficazes, para resolver problemas que se perpetuam. Por exemplo, no Ministério da Educação e suas autarquias, de acordo com a atual diretora do INEP, professora Maria Inês Fini (2016), “Temos disponível mais de 20 programas de formação de professor [...].”.

Abrucio (2016) caracteriza a literatura nacional sobre formação de professores como incipiente, em comparação com os estudos de outros temas da pedagogia ou com a literatura internacional sobre o tema. Embora admita a existência de um conjunto razoável de estudos, afirma que por serem fragmentados quanto ao referencial de análise, dificultam a realização de um debate sistemático e a constituição de um processo contínuo de estudos. Essas afirmações gerais aplicam-se com maior intensidade ao estudo da formação continuada de professores da EJA, como pode ser constado em buscas no portal de periódicos CAPES/MEC.

Do exposto, observa-se que a deficitária formação do professor de EJA é acompanhada pela insuficiência de estudos sobre a questão. Este artigo objetiva sumariar os processos de formação continuada de professores da educação básica, como contexto à sintética documentação de uma intervenção dessa formação para professores de EJA, no âmbito de programa induzido pelo governo federal, a fim de proceder à apreciação crítica da ação relatada e do programa que a tornou possível. As reflexões alicerçam-se, em decorrência, em duas escolhas metodológicas: a narrativa documental e a pesquisa exploratória, na perspectiva de Gray (2012, p. 36): “Como o nome indica, os estudos exploratórios buscam explorar o que está acontecendo e fazer perguntas a respeito. São especialmente úteis quando não se sabe o suficiente sobre um fenômeno.”.

Os autores participaram, como educadores, da experiência relatada. Convém, pois, considerar a advertência de Maturana (1995): corremos o risco de não ver que não vemos. Acreditamos que as zonas sombreadas, ocultas ao olhar participante, podem ser diminuídas pelo olhar intersubjetivo, tornado possível pela diversidade de perspectivas dos diferentes artigos desta revista. Assim, a objetivação, em texto, de diferentes pontos de vista, ao desvelar o que não vimos, pode revelar, a imperiosidade de revisão do pensar e quefazeres educativos que nos comprometem.

2. PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM EJA E ECONOMIA SOLIDÁRIA

A baixa qualidade da educação básica talvez seja a dívida mais perversa do Estado para com a sociedade brasileira. Múltiplos fatores podem ser aduzidos à compreensão desse passivo secular; o crônico déficit de bons professores é o de maior relevo. Ao menos, esse é o diagnóstico de Abreu (1955, p. 72), exposto em seminário realizado em Santiago do Chile, em 1955:

O ponto mais fraco da escola secundária brasileira está no seu professorado. Pelo súbito incremento do aparelho, tornou-se necessário organizar um magistério de emergência, aliciado nas sobras, lazeres e desempregos de outras profissões, ou entre outros candidatos sem profissão nenhuma.

Para facear esse e outros problemas, foi instituída a Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (Cades), ativa de 1953 a 1968 (PINTO, 2000). Das 14 atribuições da Cades, a primeira equivaleria, hoje, à formação continuada. É o que consta no art. 3º, alínea “a” do Decreto nº 34.638/1953: a Campanha devia “promover a realização de cursos e estágios de especialização e aperfeiçoamento para professores, técnicos e administradores de estabelecimentos de ensino secundário”. Depoimento de Alceu de Amoroso Lima (Apud PINTO, 2000, p. 10), que dirigiu a Diretoria de Ensino Secundário do MEC, convalida a interpretação:

[...] milhares de professores, mais de 20 mil, exerciam o magistério sem nenhuma habilitação legal, o ponto que pareceu à CADES mais urgente foi ajudar a estes professores a obterem seus registros e, por meio disto, tentar prepará-los, tecnicamente, para o exercício do magistério. (Grifo nosso).

A Cades configurou-se como a primeira experiência de formação continuada, em escala nacional. No entanto, seis décadas após sua criação, professores sem formação e titulação adequadas ainda adentram salas de aula da EJA. Após a extinção da Cades, com outros nomes, a formação continuada pontilhou ações do MEC, sem resolver o problema. O Decreto nº 5.159/2004, ao reestruturar o Ministério, passou a incluir uma nova unidade administrativa:

A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD). Talvez um indicador da disposição de converter “atividades” em política de formação. Mas, apesar da expressão “Secretaria de Educação Continuada” no título, sua estrutura contava com departamentos de educação de jovens e adultos, de educação para a diversidade e cidadania, mas não de educação continuada. Sintomaticamente, o Relatório de Gestão da SECAD-2004 (MEC, 2005), no balanço de atividades e resultados, lista dez atividades; nenhuma especificamente de formação continuada de professores.

A leitura do Relatório de Gestão, 2004, sob outro ângulo, possibilita um achado interessante “Do ponto de vista temático, a área de atuação da SECAD se subdivide em dois grandes campos: (a) alfabetização e educação continuada de jovens e adultos [...]” (MEC, 2005, p. 24). Ou seja, o alvo da formação continuada eram os alunos de EJA, não seus professores. A “formação continuada de professores” não era programa, mas uma atividade entre outras, um subproduto de programas específicos. Com efeito, a expressão consta apenas três vezes no relatório, sempre como atividade dos Programas de Identidade Étnica e Patrimônio Cultural dos Povos Indígenas, de Educação para a Diversidade e Cidadania e de Cultura Afro-brasileira. Em síntese, formação continuada de professores era, ainda, pouco mais que uma locução no nome da secretaria. Essa situação não se altera, significativamente, com a reestruturação da SECAD pelo Decreto nº 7.480/2007.

Com a criação da SECADI, pelo Decreto nº 7.480/2011, iniciou-se uma inflexão positiva. Como na SECAD, a formação continuada não se constituiu em diretoria, mas passou a integrar as finalidades da nova secretaria: “Art. 22. À Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão compete: [...] IV - coordenar ações de educação continuada, [...]”. Dois eventos subsequentes indicam que os profissionais da educação passaram a ser o alvo da “educação continuada”: instituição, pela Portaria ME nº 1.087/2011, do Comitê Gestor da Política Nacional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais da Educação Básica (COMFOR/Nacional), seguida da criação, pela Portaria ME nº 1.328/2011, da Rede Nacional de Formação Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica Pública (RENAFORM).

O COMFOR/Nacional estabeleceu no art. 1º da Resolução nº 1/2011:

As Instituições de Educação Superior [...] que receberem apoio financeiro [...] destinado a ações de formação inicial e continuada de profissionais do magistério da educação básica, deverão instituir no âmbito de sua Pró-reitoria de Ensino de Graduação ou equivalente, um Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais do Magistério da Educação Básica. (COMFOR/Nacional, 2011).

Em conformidade com as normas da RENAFORM e COMFOR/Nacional, a UFMT criou o Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais do Magistério da Educação Básica (COMFOR/UFMT).

A mudança de concepção refletiu-se no relatório de gestão de 211, o primeiro da SECADI (MEC, 2012), no qual a expressão “formação continuada” se faz presente 44 vezes, 21 das quais explicitamente vinculadas à formação de professores, de profissionais da educação, de educadores ou de técnicos e gestores. No relatório de 2013 (MEC, 2014), a expressão consta 102 vezes, com 26 referindo-se, aproximadamente, aos mesmos sujeitos.

Em síntese, a partir de 2012, para a oferta de formação continuada no âmbito do Sistema Nacional de Formação (SINAFOR), o país passou a dispor da RENAFORM, cujas ações são organizadas pelo COMFOR/Nacional, descentralizadas para execução por instituições públicas parceiras, com mediação e supervisão dos COMFOR/Institucionais. Ou seja, o curso de pós-graduação lato sensu EjaEcoSol foi ofertado pelo COMFOR/UFMT em consonância com a política nacional de formação continuada, estruturada pelo COMFOR/Nacional.

Compreendido o contexto de realização da formação continuada, impõe-se a questão: que profissional da educação pública pode realizá-la, de forma a: respeitar a autonomia dos entes federados, atender às necessidades de formação das redes públicas de educação e garantir o direito de “Igualdade de condições de acesso [...]” à formação financiada com recursos públicos (CF1988, art. 206, I)? Em seminário realizado em Brasília, em junho de 2012, a Diretoria de Apoio à Gestão Educacional da Secretaria de Educação Básica (DAGE/SEB/MEC, 2012, p. 4) relaciona as etapas pelas quais o SINAFOR procura garantir transparência às dimensões da questão formulada: 1) Escola – fevereiro a abril – elaboração do plano de formação no PDE interativo; 2) Secretarias – abril a junho – análise e validação dos planos das escolas; 3) Fórum Estadual de Apoio à Formação Docente – elaboração do plano estratégico estadual – julho; 4) Comitê Gestor Nacional – análise dos planos estratégicos e alocação de recursos – agosto.

Diferentes sistemas online, com informações geradas pelas escolas, proveem suporte às etapas do processo. Com assento nos fóruns estaduais, as instituições formadoras constroem visões bastante próximas do que poderá ser-lhes demandado em termos de cursos de atualização (até 80 horas), cursos de aperfeiçoamento (180 horas ou mais), cursos de especialização lato sensu ou atividades/cursos de extensão.

Em acordo com esse fluxo, o curso EjaEcoSol foi idealizado na Coordenadoria de Educação de Jovens e Adultos (CJA) da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso (SEDUC), proposto ao Fórum Estadual de Educação (FEE/MT) que o aprovou, com a decorrente inclusão no rol de cursos financiados pela SECADI. Nas duas primeiras proposições, o curso não se viabilizou. Em 2013, os Departamentos de Ensino e Organização Escolar e de Teoria e Fundamentos da Educação, do Instituto de Educação da UFMT, assumiram sua realização. Para tal, a SECADI havia alocado R$ 172.849,52 para custeio e R$ 208.400,00 para bolsas aos professores pesquisadores, formadores e tutores. Do montante, R$ 45.575,00 não foram utilizados.

A SEDUC e a Secretaria Municipal de Educação de Cuiabá (SME) incumbiram se de selecionar candidatos, dentre profissionais do magistério de seus quadros. A cada Secretaria coube o preenchimento de 50 vagas e, adicionalmente, um cadastro de reserva com 20 pessoas para substituição de desistentes. Com a organização modular, 120 professores iniciaram o curso. O Instituto de Educação cedeu o espaço para a realização das aulas e as Secretarias providenciaram transporte para as aulas de campo. A aula inaugural aconteceu no dia 18 de outubro de 2013 e, o encerramento, inicialmente previsto para 17 de maio de 2015, foi postergado para o dia 31 de agosto do mesmo ano, devido a intercorrência no calendário, motivadas pela Copa FIFA 2014.

Além de se constituir no primeiro curso em nível de pós-graduação destinado à formação de professores da EJA, no estado, foi inovadora a articulação de dois campos de saberes e práticas, relevantes às lutas populares: a educação de jovens e adultos e a economia solidária. Este contexto foi explicitamente assumido pelo Projeto Pedagógico (2013, p. 4):

Este vínculo entre educação e mundo do trabalho, explicitado na LDB, subentende uma visão ontologizante do trabalho, através da qual o mesmo é tomado como constituinte do sujeito em sua totalidade e, em decorrência, não se reduz à perspectiva exclusiva do emprego ou do treinamento profissional aligeirado

Com frequência, a necessidade de trabalhar é justificativa dos adolescentes, jovens e adultos das classes populares para abandonar a escola, inclusive na EJA. Como contraposição, o curso objetivou possibilitar ao educador dessa modalidade, o desenvolvimento de “instrumentos teórico-práticos que contribuíssem para articular saberes e ações da EJA e de Economia Solidária, capazes de engendrar novas relações entre educação e trabalho, com vistas à construção de uma sociedade justa, igualitária e solidária.”. (PROJETO, 2013, p. 5).

Para facilitar a implementação do objetivo geral, vários cuidados estratégicos foram tomados. Citamos os mais relevantes; Equipe docente interinstitucional, vinculada à educação popular ou economia solidária. Dos nove docentes, quatro eram da UFMT; dois, da SEDUC; um, da UNEMAT e dois, mestrandos da Pós-Graduação em Educação da UFMT, com pesquisa na área de educação popular. Desses docentes, dois eram atuantes em Economia Solidária e dois em EJA; os quatro, há mais de dez anos. Uma estratégia metodológica estabeleceu que os Projetos de Pesquisa e Intervenção deveriam ocorrer em empreendimentos de economia solidária próximos à escola de atuação do cursista, com o objetivo de interrelacionar os conhecimentos gerados no curso com as práticas/conhecimentos/saberes de economia solidária existentes ou latentes nesses empreendimentos, a fim contribuir para o cursista/professor integrar essas realidades aos conteúdos curriculares e às práticas da EJA. E, terceira estratégia, a monografia, individual, deveria investigar ou propor articulações entre EJA e Economia Solidária, no local de trabalho do cursista.

Coube aos gestores providências diversas para garantir a realização do curso. Ao início, como os cursistas não deixaram a docência para realizá-lo, foi necessário alterar o calendário. Com encontros a cada final de semana, as 360 horas de aula ocupariam os nove primeiros meses, com os nove restantes destinados à pesquisa e redação de artigo. Para professores residentes em municípios distantes, a vinda a Cuiabá, quatro vezes ao mês, seria inviável. As aulas foram, então, agendadas novamente para encontros quinzenais, ocupando 16 meses, coincidindo, por setes meses, com a produção de artigo. Isso gerou dificuldades e motivou, com outras intercorrências, a prorrogação do curso.

Considerando os 120 iniciantes, a desistência foi de 25,8%. Múltiplas situações profissionais e familiares, além da sobrecarga da conjunção estudo/trabalho, geraram numerosas situações de faltas. Em cursos modulares, faltar a um ou dois encontros pode comprometer o limite de assiduidade mínima de 75% da carga horária do módulo. Para minimizar o problema, apenas professores experientes foram admitidos como monitores. De posse do planejamento e sob orientação do docente formador, assistiam integralmente às aulas, identificavam os ausentes e lhes faziam o convite para a reposição de aula no final de semana seguinte, que eram ministradas pelos tutores. A duas estratégias – adoção de “sobrevagas” e tutoria ativa – possibilitaram a realização de 89% da meta de titulação assumida no projeto do curso. Em razão de um cursista surdo e ante a impossibilidade de prover intérprete de Libras, pelos canais oficiais, uma tutora, fluente em Libras, recebeu a função de intérprete, o que, além de garantir um direito do professor, possibilitou reflexões sobre a escola inclusiva e impediu uma desistência adicional.

Ao término do curso, além da titulação de 88 professores, como especialistas, 63 artigos defendidos como trabalho de conclusão de curso, totalizando 1.070 páginas, foram selecionados para a publicação de dois e-books, Educação de Jovens e Adultos e Economia Solidária: perspectivas múltiplas I e II. De certa forma, um prolongamento do curso, na perspectiva de criar possibilidades aos egressos, mas também a outros educadores, de colocar a EJA em questão a fim de examinar a possibilidade de que seja diferente do que sempre foi e, talvez, melhor.

3. CONCLUSÃO: CONTINUAR É PRECISO

Organizamos a apreciação crítica em relação à formação continuada de professores da EJA em três núcleos: o regime de colaboração entre entes federados, a UFMT como executora do curso e o próprio curso com seus agentes.

Núcleo regime de colaboração. A descentralização de recursos, pelo governo central, como forma de indução para que estados e municípios realizem a manutenção e desenvolvimento da educação básica está prevista na Constituição Federal, na LDB e no PNE. O curso EjaEcoSol efetivou-se no âmbito desse regime. Esse modelo de formação continuada, sumariado neste artigo, contém diversos equívocos. Destacamos três, mas não são os únicos.

O regime de colaboração desconcentra recursos, mas centraliza a decisão. Os órgãos centrais se reservam a prerrogativa de decidir quais, quando, onde e como as atividades de formação continuada serão realizadas. Essa organização tem efeitos perversos. Gera dependência dos sistemas municipais e estadual de ensino em relação ao poder central. Desresponsabiliza os entes subnacionais quanto ao papel institucional de prover a formação continuada dos próprios profissionais de educação; ou seja, essa formação só ocorre se houver recursos federais. Não é um acaso que a necessidade de formação continuada tenha sido diagnosticada há mais de meio século e, na prática, ainda inexistam programas consistentes e permanentes nos níveis municipal e estadual. O modus operandi do programa, que confere à Universidade o papel de executora, desconsidera dois achados da literatura internacional sobre formação de professores: a escola como lugar de profissionalização e, portanto, lugar central da formação continuada e, segundo, o tempo de indução profissional – ou seja, os quatro ou cinco primeiros anos de exercício profissional – que devem receber atenção especial quanto à formação.

O segundo efeito deletério reside na descontinuidade e descuido quanto à formação continuada na educação básica. A primeira foi denunciada por Saviani (1994, p. 266): “Parece que cada governo, cada secretário de educação ou cada ministro quer imprimir sua própria marca, deixando de lado os programas implementados nas gestões anteriores”. O problema persiste. Com a extinção da Cades, a formação continuada ficou restrita a atividades pontuais, no tempo e no espaço, até o programa iniciado pela SECADI, em 2011, o qual se vê, atualmente, minimizado com a alegação de falta de recursos. O descuido com a formação continuada na educação básica está, emblematicamente, figurado na extinção da Cades e existência, ainda hoje, da Capes. Esta foi criada em 1951 como Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), dois anos antes da Cades. O desaparecimento de uma e a permanência de outra não deixa dúvidas quanto ao que é prioritário no campo da formação continuada.

A terceira restrição: o programa de formação continuada forma sem melhorar. A descontinuidade dos programas e a pulverização dos formados em diferentes escolas gera um efeito contraditório: professores titulados, mas coletivo de professores desmobilizados. O professor é fundamental para a gênese da educação com qualidade; não o professor simulacro do herói solitário e, sim, o coletivo docente comprometido com a escola. Processos de formação que atendem um ou dois professores em cada escola, não contribuem para a constituição de coletivo de professores, com formação adequada e compromisso com a qualidade da educação, socialmente referenciada.

Núcleo UFMT como executora. A escolha política que atribui a realização da formação continuada a universidades, mesmo em consonância com planos estratégicos dos fóruns estaduais de educação, desconsidera a lógica captada por Bruns e Luque (2105, p. 34): “Uma vez que os professores tenham sido contratados, é tarefa do sistema escolar torná-los o mais eficazes possível.”. Excetuando cursos de pós-graduação, opinamos que a formação continuada deve ser organizada e gerida pelos sistemas de educação, municipais ou estadual, e, preferivelmente, na escola

Segunda restrição: agregar docentes para ofertas eventuais de cursos de pósgraduação impossibilita a formação de um corpo docente, no sentido de coletivo de formadores, comprometido com um programa de pós-graduação lato sensu. O que se tem é um ajuntamento de professores que, atendida determinada demanda, se desfaz; isto dificulta a capitalização da experiência para um salto qualitativo em curso subsequente. Para exemplificar, o grupo de docentes que realizou o curso EjaEcoSol desmobilizou-se e, com a descontinuidade de oferta da especialização, não tem motivação institucional para continuar estudando e pesquisando a temática com que trabalhou. Sob outro aspecto, a “lógica UAB”, presente na atribuição de bolsas, que distingue o professor pesquisador do professor formador pereniza a fragmentação do trabalho, reservando a alguns o pensar e, a outros, o executar. Mais radicalmente, embora não seja o caso da EjaEcoSol, em diversas situações a Universidade é apenas a “aplicadora” de material didático concebido por “professores pesquisadores” em trabalho isolado e distanciado quanto à concepção e realidade do curso.

Efeito colateral da inexistência, na Universidade, de corpo docente com encargos didáticos para cuidar da especialização é o desconhecimento dos trâmites e prazos que regulam a oferta das atividades de formação. Em decorrência, projetos pedagógicos são elaborados às pressas, por um ou dois docentes, o que é inconsistente com a concepção de um programa de formação. E mais, ante a premência de prazos, é usual que a avaliação dos projetos, pelos órgãos colegiados, seja mera formalidade. A breve existência do COMFOR/UFMT ainda não possibilita afirmações quanto à sua efetividade como instância organizadora e formadora de formadores para a formação continuada de profissionais da educação básica. A inconstância do governo central, no que tange ao tema, não permite otimismo a respeito. No curto prazo, prevalecerá o ajuntamento apressado de docentes para atender demandas específicas. Ou seja, a urgência e não a necessidade continuará presidindo a oferta de formação.

Terceira observação, a UFMT não dispõe de Sistema Informatizado de Gerenciamento Acadêmico para a pós-graduação lato sensu. Os dados acadêmicos, nesse nível, ficam sob a guarda das unidades acadêmicas; ao longo do tempo, os riscos quanto à preservação dos mesmos não são pequenos. Durante o curso, a ausência de Registro de Aluno (RA) gerou, entre os cursistas, a sensação de serem “alunos de segundo classe”. A inexistência de RA privou-os de direitos estudantis, como: acesso subsidiado ao Restaurante Universitário, passe estudante, empréstimo de livros na biblioteca, acesso à Wi-fi no campus e utilização do Ambiente Virtual de Aprendizagem.

Núcleo curso com seus agentes. É estranho que metade dos docentes de EJA sejam temporários. Essa situação profissional é equivalente à do indivíduo que garantiu o almoço, mas deve lutar pelo jantar. Isto é, professor com contrato temporário, em escola pública, é profissional com futuro incerto. Urge solucionar essa precariedade, como ambiência para superar uma outra: a baixa habilidade cognitiva, pois, como investir na formação continuada se não se tem o mínimo de segurança em relação ao futuro na profissão?

Quanto aos docentes formadores, se o vínculo a três diferentes instituições trouxe inegável oxigenação quanto a referenciais teóricos e extensa gama de práticas em EJA e Economia Solidária, também dificultou a constituição do corpo docente como coletivo de formadores, efetivamente comprometidos com o desenvolvimento do curso, durante toda a sua realização e não apenas na temporalidade de módulos ou orientações que, a cada um, coube realizar.

Enfim, para dirimir dúvidas, reafirmamos que a formação continuada com todas as suas limitações é uma positividade insofismável e é a partir da sua existência significativa que pudemos colocá-la em questão, na expectativa de contribuirmos ao desequilíbrio majorante em, ao menos, duas dimensões: a superação da precariedade contratual e responsabilização dos sistemas de ensino pela formação continuada dos próprios professores de EJA e, segunda dimensão, contribuição efetiva da União à autonomia formadora de cada ente federado, no que diz respeito à competência e continuidade ininterrupta de programas de formação continuada que representem ganho não apenas ao docente, mas, também, à qualidade da educação construída em cada escola.

REFERÊNCIAS

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