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A MATEMÁTICA INTUITIVA NO MANUAL DE LIÇÕES DE COISAS DE CALKINS: TRADUÇÃO DE RUI BARBOSA

INTUITIVE MATHEMATICS IN THE CALKINS THINGS LESSONS MANUAL: RUI BARBOSA TRANSLATION

Rogerio dos Santos Carneiro 1
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil
Lucia Maria Aversa Villela 2
Universidade Bandeirante de São Paulo (UNIBAN), Brasil

REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática

Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil

ISSN-e: 2318-6674

Periodicidade: Frecuencia continua

vol. 7, núm. 1, 2019

revistareamec@gmail.com

Recepção: 17 Abril 2019

Aprovação: 07 Maio 2019



DOI: https://doi.org/10.26571/REAMEC.a2019.v7.n1.p245-267.i8214

Os direitos autorais são mantidos pelos autores, os quais concedem à Revista REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática - os direitos exclusivos de primeira publicação. Os autores não serão remunerados pela publicação de trabalhos neste periódico. Os autores têm autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para distribuição não exclusiva da versão do trabalho publicada neste periódico (ex.: publicar em repositório institucional, em site pessoal, publicar uma tradução, ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação inicial neste periódico. Os editores da Revista têm o direito de proceder a ajustes textuais e de adequação às normas da publicação.

Resumo: Neste texto objetivou-se investigar a conceituação do método intuitivo e a sua presença no Manual de Lições de Coisas, mais especificamente no que se refere ao ensino de matemática, de Norman Allison Calkins, presentes na tradução de Rui Barbosa de Oliveira publicada em português em 1886. Esta pesquisa desenvolveu-se no âmbito da história da educação matemática, tendo um aporte teórico-metodológico da história cultural, com base em Chartier (1990), Certeau (2007), Choppin (2004), Julia (2001), dentre outros autores/pesquisadores. Os dados foram colhidos em livros, recortes de jornais, leis, decretos, assim como outros registros. Na leitura analítica da obra citada, interligando-se as ilustrações vinculadas aos conteúdos, atividades e às organizações dos exercícios, percebe-se os contextos metodológicos utilizados pelo autor e endossadas pelo tradutor. A análise das fontes revelou a existência de “novas” práticas pedagógicas, mudanças de significado para o ensino de número e a introdução de novos conteúdos na Aritmética escolar, à medida que vinha sendo constatada a presença do ensino alicerçado pelo método intuitivo na matemática primária de Calkins (1861, 1881). Observou-se a importância desta publicação em português, e da ação de seu tradutor para os desenvolvimentos educacionais vivenciados durante o século XIX e início do século XX.

Palavras-chave: Matemática, Lições de Coisas, Método Intuitivo, História da Educação Matemática.

Abstract: In this paper we aimed to investigate the conceptualization of the intuitive method and its presence in the Lessons of Things Handbook, more specifically with reference to the teaching of mathematics, by Norman Allison Calkins, present in the translation of Rui Barbosa de Oliveira published in Portuguese in 1886. This research was developed in the context of the history of mathematical education, with a theoretical-methodological contribution of cultural history, based on Chartier (1990), Certeau (2007), Choppin (2004), Julia (2001) researchers. The data were collected from books, newspaper clippings, laws, decrees, as well as other records. In the analytical reading of the work cited, interlinking the illustrations related to the contents, activities and the organizations of the exercises, one can perceive the methodological contexts used by the author and endorsed by the translator. The analysis of the sources revealed the existence of "new" pedagogical practices, changes of meaning for number teaching and the introduction of new contents in school arithmetic, as the presence of intuitive method-based teaching in primary mathematics was Calkins (1861, 1881). It was observed the importance of this publication in Portuguese, and of the action of its translator, for the educational developments experienced during the nineteenth and early twentieth centuries.

Keywords: Mathematics, Lessons of Things, Intuitive Method, History of Mathematics Education.

1. INTRODUÇÃO

Para produzir pesquisas no âmbito da história da educação matemática é importante que se faça uma aproximação com o campo da história, tendo como finalidade atribuir sentido ao fazer historiográfico, podendo vir a pautar-se os trabalhos na base teórico-metodológica da história cultural.

O desenvolvimento de uma análise criteriosa com base na história cultural, esclarece Chartier (1990), é fundamental para identificar a forma como em distintos lugares e momentos uma prática social é construída, pensada, conhecida a ler. Então, ao voltar-se para a vida comunitária, esse campo pode adotar por instrumento as formas e as causas das suas representações, além de pensá-las como avaliação do trabalho de representação das classificações e das exclusões que respaldam as configurações sociais e conceituais de um período ou de um lugar.

A história cultural é entendida como o estudo dos processos com os quais se constrói um discernimento, uma vez que as representações são capazes de ser pensadas como “[...] esquemas intelectuais, que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado” (CHARTIER, 1990, p. 17).

Certeau (2007) aborda a história com um “novo olhar” e também com um “novo dizer” que contribuiu para a renovação da prática historiográfica, ressaltando que o gosto do historiador liga suas ideias aos lugares de onde fala. A construção dos fatos históricos parte de uma análise da realidade e se articula com a produção socioeconômica, política e cultural. O historiador produz seu trabalho a partir do presente, das preocupações de sua realidade, fazendo de seu discurso um "discurso particularizado", que tem um emissor, o historiador, e um destinatário, ao passo que este, pode ser a academia, a sociedade de forma geral ou um grupo específico. Essa discussão implicou numa constatação para Certeau (2007, p. 67) “não se pode falar de uma verdade, mas de verdades (no plural)”.

A produção dos pesquisadores que se voltam à história das disciplinas escolares, que se pautam em tal base teórico-metodológica, representam tentativas de fornecer subsídios para o estudo das culturas escolares numa perspectiva histórica. A respeito da condução da investigação da cultura escolar, Julia (2001, p. 10) indica que "[...] esta cultura escolar não pode ser estudada sem a análise das relações conflituosas ou pacíficas que ela mantém, a cada período de sua história, com o conjunto das culturas que lhes são contemporâneas”. Portanto, as práticas escolares são modificadas e inovadas conforme as alterações do público e das necessidades socioculturais, que impõem a mudança dos conteúdos a serem ensinados. Cada novo público, oriundo de culturas diversas, influencia os contextos escolares e, consequentemente, é influenciado pelos mesmos.

Marc Bloch, ainda em fins da primeira metade do século XX, procurava redefinir o que seria a história e qual é o ofício do historiador, assinalando também que este deve “saber falar, no mesmo tom, aos doutos e aos estudantes” (BLOCH, 2002, p.41). Nesse sentido, o autor enfatiza a obrigação do historiador em difundir, explicar e esclarecer, obrigação imprescindível não somente da academia, mas, sobretudo, do espaço escolar.

Ao pensarmos no livro didático como fonte de pesquisa, mantemos a fundamentação deixada por Choppin (2004, p. 554), para quem “a pesquisa histórica sobre os livros e as edições didáticas aborda aspectos extremamente diversos”.

Bittencourt (1993) afirma que essa diversidade de aspectos observados em pesquisas que envolvem estes tipos de fontes nos permite observar que “o livro didático deve ser considerado como veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura” (p. 03). Enfim, é preciso percebermos que o livro escolar vai além de um depósito de conteúdos de naturezas diversas, que servem de guia pedagógico para alunos e professores.

Segundo Valente (2011), a compreensão do estudo da história da educação matemática evidencia “a necessidade de trazer de volta, à mesa de discussão, o passado da educação matemática, em termos de sua representação, não tem caráter saudosista” (p. 02). Assim, as evidências produzidas em épocas passadas, apontam para a imprescindibilidade de entender, historicamente, como as intermitências de outros tempos históricos, produziram impressões nos hábitos pedagógicos presentes nas salas de aula na contemporaneidade.

No início da segunda metade do século XIX, com a expansão mundial do capitalismo e do liberalismo surge Rui Barbosa como defensor da instrução pública, da passagem do ensino retórico para o intuitivo e politicamente voltado aos problemas civis, como abolição da escravatura e passagem do sistema monárquico para o republicano.

É válido ressaltar, que Rui Barbosa assumia posições decisivas e era alvo de muitos questionamentos sobre seus talentos, por exemplo, a sua prodigiosa capacidade intelectual que fascinava alguns e inquietava outros. Em análise sucinta, Prada (1999, p. 40) registra que “tido durante vários decênios como figura de genialidade incontestada, mestre da língua, de espantosa erudição, ‘o homem mais inteligente do país’, sua personalidade de tal modo misturou-se à aura de mito da nacionalidade, que é possível separar o homem do político.

Com o intuito de participar da Reforma Pedagógica no Brasil, Rui Barbosa tomou a iniciativa de traduzir e transcrever as ideias do Manual de Calkins[3], que prometia “modernizar” a Pedagogia, sobretudo nos Estados Unidos e nos países europeus. Foi neste contexto geopolítico, que a obra “Lições de Coisas” passou a ser conhecida no Brasil. Na perspectiva de conhecer esse pioneiro da educação intuitiva em solo brasileiro que delimitamos seus atos tanto políticos quanto educacionais.

No Brasil, Rui Barbosa não foi o primeiro a citar a aplicação do método intuitivo. Como já mencionamos, vê-se referência a esta maneira de conceber o ensino em fontes como o relatório de 1870[4] do Diretor do Instituto de Surdos-Mudos, Dr. Tobias Rabello Leite ou no anúncio do Collegio Menezes Vieira, publicado em 1875. No entanto, ao que tudo indica, Rui Barbosa foi o autor mais significativo sobre o pensamento pedagógico intuitivo no Brasil.

A partir dessa exposição teórico-metodológica e breve contextualização, formulamos a seguinte questão para nortear o presente estudo: o ensino de matemática proposto no Manual de Lições de Coisas, de Norman Allison Calkins, tradução de Rui Barbosa de Oliveira, traz características das orientações que fundamentam o método intuitivo?

Partindo do problema inicial, a presente pesquisa objetiva investigar a conceituação do método intuitivo e a sua presença no Manual de Lições de Coisas, mais especificamente no que se refere ao ensino de matemática, de Norman Allison Calkins, tradução de Rui Barbosa de Oliveira.

2. RUI BARBOSA DE OLIVEIRA E A EDUCAÇÃO

Rui Barbosa (1849-1923) atuou como jurista, diplomata, jornalista, escritor, político e orador. Durante o período monárquico esteve ligado à política e à educação. Possuía uma biblioteca com cerca de 35.000 volumes, iniciada em 1871, sendo que atualmente ela integra o acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa[5], no Rio de Janeiro.

Para melhor compreensão, é necessário remeter-nos a uma breve parte da sua história. Rui Barbosa nasceu em 05 de novembro de 1849, em Salvador, Bahia. Tendo recebido grande influência do pai, médico e secretário de ensino da província da Bahia, desde cedo envolveu-se com os estudos. Aprendeu alemão e inglês. Rui iniciou seu curso de direito na Faculdade de Direito de Recife, em 1866, mas dois anos depois providenciou sua transferência para São Paulo, onde concluiu esses estudos, tendo como colegas Joaquim Nabuco, Castro Alvez, Afonso Pena e o futuro Barão do Rio Branco.

Em 1868 iniciou-se na imprensa, colaborando com “O Ipiranga” e a “Imprensa Acadêmica”. Pronunciou seu primeiro discurso político em admiração a José Bonifácio. Entre os anos de 1869 e 1873, Rui começou a advogar, colaborando com as edições no Diário da Bahia[6], mas acabou tendo que viajar à Europa para tratamento de saúde.

Entre os anos de 1875 e 1876 defendeu a abolição, desmembrando discussões entre o Estado e a Igreja[7]. Casou-se neste mesmo período. Reconhecido como defensor do país foi eleito deputado e protegeu o Gabinete, atuando contra os inúmeros ataques de oradores. Como político, formulou o projeto de eleição direta, conhecido como Lei Saraiva.

Em 1881 foi nomeado membro do Conselho Superior de Instrução Pública e defendeu a Reforma no Ensino, defendia que a base da industrialização estava no aprendizado do desenho no ensino técnico. Abolicionista pela sua própria condição étnica, Rui participou de várias conferências referentes à libertação dos escravos, além de redigir a Lei dos Sexagenários, que lhe rendeu o título de Conselheiro, concedido pelo próprio Imperador do Brasil.

Preocupado com a questão da Instrução no Império, no ano de 1886, Rui publicou a tradução do livro “Lições de Coisas” de Norman Calkins. Esta obra estava voltada aos primeiros anos da escolarização, embora em seus preceitos estivessem explicitadas as preocupações com o ensino superior.

Rui se dedicou particularmente à política, com o Marechal Deodoro da Fonseca proclamaram a República, foi nomeado Ministro da Fazenda de um Governo Provisório recém-instalado em novembro de 1889. Em 1892 foi eleito senador da Bahia, mas em 24 de novembro de 1893 foi exilado no Chile, devido ao seu comportamento durante a Revolta da Armada. Retornou em junho de 1895, seguindo a sua vida como senador, até 1924.

No ano de 1905 foi candidato à Presidência da República, mas não obteve êxito. Dois anos depois, participou da II Conferência da Paz, em Haia, representando o Brasil. Sua participação na referida Conferência lhe deu notoriedade, não apenas no Brasil, mas mundialmente. Desta forma, em 03 de outubro de 1908 foi eleito Presidente da Academia Brasileira de Letras, porém sem abandonar a sua vida de homem público, chegando a concorrer pela quarta vez à Presidência da República.

No ano de 1921 recebeu o convite para ser paraninfo da turma de 1920 da Faculdade de Direito de São Paulo. Impossibilitado de comparecer por conta da doença que o consumia, Rui redigiu um discurso e pediu para que um de seus colegas realizasse a leitura na referida solenidade. Esse discurso recebeu o título “Oração aos Moços”, tornando-se uma das suas obras mais conhecidas. Passados dois anos, Rui Barbosa faleceu, mas suas ideias, como constam em registros históricos, se tornaram imortais.

3. O MÉTODO INTUITIVO NA LIÇÕES DE COISAS DE CALKINS

Como citado anteriormente, em 1886 foi publicada no Rio de Janeiro a tradução que Rui Barbosa fizera com base na quadragésima edição[8] da obra de Alisson Norman Calkins, intitulada “Primary Object Lesson”. Em “Primeiras Lições de Coisas”, Barbosa adaptou à linguagem nacional as ideias de Calkins com intuito de propagar o método intuitivo, que concebia como eficaz na formação geral dos indivíduos, sobretudo na preparação para a vida em sociedade.

Na traducção fugi, onde convinha, a subserviencia litteral, para ser fiel ao pensamento do texto. Muitas vezes, quando a reflexão me deparava um equivalente preferivel, não duvidei adopta-lo, sempre com as devidas precauções, para evitar uma dissonancia em relação ao espirita ou à lettra do original. (BARBOSA, in CALKINS, 1886, p. XIV).

Como exemplo, Rui cita nessas notas da tradução que houve necessidade de fazê-lo no que “trata do ensino das medidas”, pois nos Estados Unidos não se seguia o sistema métrico decimal[9].

Ainda neste “Preambulo do Traductor”, Rui Barbosa criticou os métodos de ensino anteriormente existentes, entendendo-os como empecilhos à formação dos alunos, por se caracterizarem como métodos mecânicos que apenas tornavam os alunos hábeis decoradores no desenvolvimento de uma memória “servilizada” a conceitos impostos. No preâmbulo da obra de Calkins, Rui escreveu:

De feito, o que até hoje se distribui em nossas escolas de primeiras letras, mal merece o nome de ensino. Tudo nelas é mecânico e estéril; a criança, em vez de ser o mais ativo colaborador na sua própria instrução, como exigem os cânones racionais e científicos do ensino elementar, representa o papel de um recipiente passivo de fórmulas, definições e sentenças, embutidas na infância a poder de meios mais ou menos compressivos. O mestre e o compedio afirmam, o aluno repete com a fidelidade do autômato; e o que hoje aprendeu, sem lhe deixar mossa mais que memória, amanhã desabara, sem vestígios, na inteligência, ou no caráter, da mínima impressão educativa (BARBOSA, in CALKINS, 1886, p. VI).

A obra “Primeiras Lições de Coisas” consistia, nos anos finais do Império, em um manual de ensino elementar destinado à utilidade de professores e pais na educação das crianças. Foi uma obra aprovada, por unanimidade, pelo Conselho Superior da Instrução Pública da Bahia e pelo Conselho Diretor da Corte, sendo adotada pelo Governo Imperial para o uso dos educadores nas escolas primárias.

Segundo Lourenço Filho, autor do prefácio da edição brasileira de 1950, a descoberta da obra de Calkins, por Rui Barbosa, teria acontecido a partir dos contatos que este manteve com a professora norte-americana Eleanor Leslie, diretora do Colégio Progresso, no Rio de Janeiro, no período em que ele buscava subsídios para os seus pareceres sobre educação. O interesse em traduzi-la teria surgido, ainda segundo Lourenço Filho, do elogio feito por Ferdinand Buisson a essa obra, no seu relatório sobre a seção de educação, da Exposição Internacional da Filadélfia, realizada em 1876. Buisson afirmava que o manual constituía-se na “melhor coleção de coisas de que há notícia”[10], frase utilizada por Rui Barbosa, como epígrafe, no preâmbulo do tradutor na primeira edição brasileira, em 1886.

Rui Barbosa dedicou a tradução do livro ao seu pai, Dr. João José Barbosa de Oliveira, apresentando as palavras “convosco aprendi a amar e compreender a santa causa do ensino” (BARBOSA, in CALKINS, 1886, p. XI). A obra influenciou decisivamente a pedagogia brasileira, repercutiu efeitos sobre a área educacional e a própria atividade de Rui Barbosa, sendo ele considerado como um dos maiores defensores do método intuitivo no país.

A obra traduzida por Rui Barbosa veio atender a área educacional brasileira no momento em que esta encontrava-se tomada por ares de renovação. O livro de Calkins estava sendo discutido em muitos países como uma significativa obra a ser aderida pelos educadores e a ideia de traduzir a obra em diversas línguas foi essencial, sendo imprescindível propagar o conhecimento sobre o método intuitivo às diversas localidades. O referido livro já circulava pelas exposições pedagógicas, nesta oportunidade lembramos que participavam dessas exposições pessoas das mais diferentes formações, como políticos, médicos, militares, professores, religiosos, engenheiros e outros, possibilitando a circulação dos novos saberes pedagógicos, que eram considerados de derradeira importância para o desenvolvimento das nações. Segundo Valdemarin (2004),

o manual de Calkins foi apresentado na Exposição Universal da Filadélfia, realizada em 1876, recomendado por Ferdinand E. Buisson, em seu relatório ao governo francês como a melhor coleção de lições de coisas já elaborada, motivando numerosas traduções, além da língua portuguesa, destacando-se uma versão japonesa em 1877 duas versões para o espanhol em 1872 e 1879. A primeira edição americana desse manual é de 1861, sendo refundida e ampliada em 1870, recebendo o título de Primeiras lições de coisas e atingindo, em 1884, sua 40ª edição (p. 118).

No Brasil, pregavam-se mudanças no ensino de modo a atender às reformas almejadas pelo governo através do Decreto nº. 7.247 de 1879, conhecido como Reforma Leôncio de Carvalho. Este regulamento estabeleceu oficialmente pela primeira vez no ensino primário do país as “noções de coisas”, mas é importante frisar que antes deste momento já se percebia nas discussões de alguns intelectuais o assunto “método intuitivo”, onde debatiam-se questões relacionadas à educação na proposta de mudanças no ensino e renovação educacional.

As lições de coisas, forma pela qual também foi vulgarizado o método intuitivo, forma preconizada, pela primeira vez na legislação brasileira através da reforma liberal Leôncio de Carvalho, em 1879. No entanto, é importante salientar que o método já havia sido anunciado em algumas iniciativas educacionais, trazendo à tona os intelectuais vinculados a elas e evidenciando o seu papel de destaque no movimento de renovação pedagógica que se instaura no país a partir da década de 1870 (SCHELBAUER, 2003, p. 83).

Na segunda metade do século XIX, o método intuitivo foi concebido como o mais adequado à instrução das classes populares, tendo sido propagado na realidade do Brasil por muitos intelectuais ilustrados, por homens públicos, juristas, reformadores, diretores, professores e proprietários de escolas.

Rui Barbosa recorria ao método intuitivo como o ideal a substituir os métodos de ensino existentes no momento, informava que mudanças nos métodos utilizados por educadores ocorriam em todo o mundo. Citava que diversos países estavam por descartar métodos como tradicionais na implantação de uma nova metodologia que valorizasse o indivíduo em seu processo de aprendizagem, a formação reflexiva do aluno e não somente o desenvolvimento de sua habilidade de memória.

O método intuitivo era caracterizado a partir da introdução diversificada de novos conteúdos através de situações ilustrativas. Os autores afirmam que diversificar não significa sobrecarregar, desde que os procedimentos utilizados sejam variados e alternados para prevenir o cansaço e o tédio. Para esses propositores, a superioridade do método intuitivo consistiu na colocação de fatos e objetos para serem observados pelos alunos, criando situações de aprendizagem em que o conhecimento não era meramente transmitido e memorizado, mas emergia do conhecimento da criança a partir dos dados inerentes ao próprio objeto. Valdemarim (2004) afirma que:

[...] O diferencial caracterizador das lições de coisas residiria, portanto, no procedimento didático de ‘colocar as idéias frente à necessidade de nascer’[...]. É o estudo da natureza, ciência considerada particularmente interessante para as crianças, que assume, com método intuitivo, a posição de conteúdo escolar central pelo fato de possibilitar o conhecimento da forma, da força e do movimento, elementos presentes em vários aspectos da vida, sejam eles concretos ou abstratos. E para essa aprendizagem, a observação é o atributo humano que proporciona a percepção e a compreensão das forças naturais, por meio da constatação das propriedades da matéria, da aquisição de noções sobre as rochas, a vida das plantas e os hábitos dos animais, gerando assim um conhecimento, ainda que sumário, da própria organização humana (p. 108-110).

As lições de coisas foram enfatizadas por Rui Barbosa como o método apropriado ao ensino dos conteúdos escolares, sendo um conjunto de assuntos indispensáveis ao conhecimento do educador para o exercício da profissão docente. Rui Barbosa afirmava que as “lições de coisas” não deveriam ser concebidas como disciplina específica, como trouxe o Decreto nº 7247, de 19 de abril de 1879 citado anteriormente, mas tratava-se de um significativo fundamento teórico-metodológico no ensino de todas as disciplinas nas diversas áreas do conhecimento. As lições de coisas, portanto, deveriam perpassar por todas as disciplinas, por todos os conteúdos, sobretudo na transmissão dos conteúdos científicos úteis à vida do indivíduo em sociedade.

Era o método que atendia aos anseios humanos de “curiosidade” de aprender. Os métodos existentes até então consistiam em métodos repetitivos, que apresentavam um ensino mecânico de conteúdos não contribuindo para a formação reflexiva do indivíduo. Segundo Rui Barbosa, era preciso considerar que, ao nascer, a criança possuía a habilidade e a capacidade de aprender. A curiosidade era, portanto, algo natural que deveria ser estimulada em benefício ao desenvolvimento da capacidade de assimilação da criança, indivíduo sempre em disposição a assimilar informações novas, adicionando-as aos conceitos que já possuía. O educador devia, portanto, “aproveitar” a predisposição da criança em aprender, tornar proveitoso o momento de aprendizagem em relação ao conhecimento de assuntos novos, estimulando-a a apreender conteúdos úteis à vida em sociedade oportunizando o contato com conhecimentos científicos.

A referida obra trazia os exercícios para que a educação doméstica dos sentidos se constituísse em meios para explorar a percepção de semelhanças e diferenças, distinguindo formas, tamanho, sons, sabores, cheiros e contatos, apreendendo sua variedade e quantidade por meio da experiência e não dos vocábulos.

O ensino escolar, conforme proposto nesse manual, tem início com atividades preambulares destinadas ao cultivo da observação e do uso da palavra, com colóquios orientados sobre temas conhecidos pelos alunos, intentando perscrutar idéias já existentes sobre seus brinquedos, o trajeto para escola, os nomes e o material de objetos triviais e das partes do corpo, o tempo, as roupas em sua diversidade e utilidade, os nomes próprios, a localização espacial e temporal. Os colóquios sobre os objetos incidem também sobra sua utilidade, onde são guardados, suas semelhança como outros no que se refere ao tamanho, ao uso e à variedade de tipos existentes (VALDEMARIM, 2004, p. 121).

O método intuitivo busca fazer com que o aluno trabalhe com objetos ao seu redor e que seja acostumado, procurando explorar as ideias. Não obstante, apresenta-se como ponto de partida o conhecimento adquirido fora da escola, mas sua eficácia reside no fato de despertar e manter o interesse das crianças, motivo pelo qual o manual de Calkins tendeu a servir tanto para os pais dos alunos, como aos professores.

No prefácio da primeira edição, Calkins citava as influências advindas das concepções educacionais de John Amos Comenius (1592-1670), para quem “a observação é a base absoluta do conhecimento” (CALKINS, 1861, p. III) e de Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), que também acreditava na importância da observação realizada com precisão, a fim de que a criança chegasse a “expressar com exatidão o resultado de suas observações” (CALKINS, 1870, p. III)[11]. A proposta de Calkins valorizava a aprendizagem através dos sentidos:

A importância de um apropriado cultivo dos sentidos por meio da educação no seio da família e superior a todo encarecimento. E' exclusivamente pelos sentidos que a creança tem accesso ao mundo material. Por essas portas e janellas do seu espirita e que ha-de prover-se de todas as noções relativas ao mundo. Mas os sentidos carecem cultivados, mediante exercícios que industriem o espirita em utílisar-se delles com perspicacia e celeridade (CALKINS, 1886, p. 14)

Os manuais escolares de lições de coisas eram dispositivos privilegiados para organizar toda a prática escolar, segundo os pressupostos do ensino renovado e secularizado mais condizente com as necessidades postas pelo regime republicano brasileiro e, portanto, constituía-se num instrumento privilegiado para transmitir aos modernos cidadãos os valores com que se queria configurar a cidadania.

Por seu intermédio, o professor da escola elementar dominaria a mecânica do método de ensino intuitivo, o qual, pela própria natureza dos seus procedimentos, lhe asseguraria a competência necessária para a sua nova “missão”. Ao fornecer um itinerário seguro ao professor, tornava-se, pois, um instrumento imprescindível para controlar a escola e a sua influência sobre a sociedade, num momento histórico de profundas transformações e em que a educação elementar era considerada um veículo de socialização obrigatório, capaz de contribuir para recriar o imaginário popular com base em novos valores, instaurando uma nova sociabilidade.

O manual de Calkins continha passos que se apresentavam organizados por segmentos que são descritos por Valdemarim (2004) da seguinte forma:

[...] O programa de ensino contido no manual prescreve exercícios para a educação dos sentidos por meio da observação de formas, cores, números, tamanho, desenho, tempo e sons, até chegar à leitura e às qualidades das coisas, abrangendo, educação física e moral [...] A obra “Lições de Coisas” permite identificar ou aplicar conhecimento de modo rigoroso por meio de sua representação falada, numa seqüência de passos que culmina com a abstração ou generalização obtida a partir das sensações individuais e particulares [...] Familiarizados os meninos com a maior parte das formas que vimos expor nas lições precedentes releva habituá-los aplicarem praticamente as noções adquiridas, descrevendo formas de objetos. Esses exercícios serviram de recapitular as lições de forma, e torna-las mais prestadias aos alunos, para depois que deixarem à escola, e se forem entregar às lidas ordinárias da vida. Importa não desluzir da mente que, no correr destas lições, o alvo do professor não há de ser ensinar as crianças a referirem tudo o que acerca desses objetos se lhes ofereça aos olhos: os nomes das suas partes, a cor, a matéria de que se compõem sua serventia, etc. Não; nessas lições tudo o que dos alunos se requererá, é que exprimam simplesmente a forma de objetos familiares (VALDEMARIM, 2004, p. 122-125).

Percebe-se assim que os objetos familiares às crianças são o ponto de partida e o ponto de chegada do conhecimento, embora a distância entre eles consista, juntamente, no processo de formalização do saber e interpretação do mundo, primeiro passo para intervenção na natureza.

Os objetos de ensino devem estar presentes no cotidiano das crianças, surgindo então a construção dos significados assimiláveis. Estes dão-se pelo uso permanente da razão, do raciocínio e da organização do conhecimento em uma sequência compreensível. Esta deverá estar pautada em exercícios que visassem estimular e fixar a aprendizagem, tendo por objetivo a manutenção da cultura e da sociedade, onde a escola seria o local ideal para a apresentação de objetos, formas, palavras e números.

Para Calkins (1861, 1881, 1886, 1950), na aplicabilidade do método intuitivo à aprendizagem, deve-se partir primeiro do concreto para depois se chegar ao abstrato, ir do simples ao complexo. Aprender primeiro o todo, depois as partes. Ao iniciar os estudos pelos caminhos tradicionais as crianças conhecem palavras, mas não as definem e isso é insatisfatório, dos fatos às regras.

4. A MATEMÁTICA NO MANUAL DE ENSINO ELEMENTAR DE CALKINS

Tendo em vista que o que outrora fora mencionado, no Brasil a tradução do manual do autor norte-americano Norman Alisson Calkins foi publicada pela primeira vez em 1886, sendo nesse mesmo ano aprovado pela Congregação da Escola Normal e Conselho Superior do Ensino da Bahia, pelo Conselho de Instrução do Rio de Janeiro, na época capital da República, e pela Província de São Paulo, que:

[...] adquiriu 500 exemplares para distribuição pelas escolas. A partir daí disseminou-se país afora, sendo recomendado até cerca de 1920, como guia para o preparo das lições pelos/as alunos/as das Escolas Normais de todo o país, inclusive pela Escola Normal Catarinense. Talvez a forte penetração que a sua obra alcançou na sociedade brasileira esteja em parte relacionada ao fato de ter sido traduzida e adaptada para o português por Rui Barbosa (AURAS, 2005, p. 163).

A tabela seguinte mostra como se deu a distribuição de temas no ‘Manual de Lições de Coisas’, de Calkins, na tradução de Rui Barbosa, que passou a ser intitulada “Obras completas de Rui Barbosa”. Nesta edição constavam 563 páginas, das quais 186 abordavam temas matemáticos que envolviam geometria e aritmética.

Tabela 1
Distribuição dos temas geradores da obra “Lições de Coisas” de Rui Barbosa[12]
Tema gerador Paginação Total de páginas Porcentagem (%)
Primeiras lições de coisas 29 a 57 29 5,5
Ensino Escolar: Lições para cultivar as faculdades de observação e o uso da palavra. 59 a 70 12 2,3
Da Forma (Geometria) 71 a 175 105 19,8
Da Cor 177 a 244 68 12,9
Do Numero 245 a 325 81 15,3
Do Tamanho 327 a 358 32 6,0
Desenho 359 a 365 7 1,3
Do escrever 366 a 366 1 0,2
Tempo 367 a 370 4 0,8
Do som 371 a 407 37 7,0
Leitura elementar 409 a 442 34 6,4
Qualidade das coisas 443 a 444 2 0,4
Lições de qualidades 445 a 465 21 4,0
Lições de coisas: sua natureza e plano 467 a 518 52 9,8
Do corpo humano 519 a 551 33 6,2
Educação moral 553 a 563 11 2,1
Total 529 100,0
Fonte: Carneiro (2014, p. 68)

Como podemos observar, 19,8% dos temas abordam a geometria, que estão intitulados como “Da forma”, e 15,3% tratam de temas referentes à aritmética, que estão intitulados como “Do numero”. Assim, a obra reservava 35,1% do manual ao ensino de Matemática.

Calkins começou o capítulo “Do numero” dizendo que, a partir do momento em que os meninos estivessem habilitados a identificar um objeto através de seu formato e de sua cor, eles deveriam começar a quantificá-lo e daí a necessidade do estudo da aritmética.

As verdadeiras ideias de numero, como as de forma e cor, pertencem aos fatos cuja concepção devemos principalmente ao sentido da vista. O bom êxito do ensino elementar, neste assunto, depende da exibição real dos objetos. Não há teoria de numeros, nem decorar e reproduzir regras abstratas, que infundam jamais à puerícia ideias justas do numero, e a preparam por meio de bases seguras para o conhecimento prático da aritmética (CALKINS, 1886, p. 245; 1881, p. 171).

No início da abordagem do tema observamos a existência da construção do conhecimento através da observação das coisas, pois a intenção teórica não era que os alunos aprendessem de forma abstrata e sim que visualizassem o contexto da aritmética no seu dia-a-dia, através de elementos simples como a pedra. O aluno era estimulado a compreender o que lhe era ensinado de uma forma intuitiva.

Após levantar alguns questionamentos sobre a importância do ensino fundamental da aritmética, começaram as lições para desenvolver as ideias elementares dos números, que foram divididas em três passos para a aprendizagem do saber contar. O primeiro deles era o grupo de números de 1 a 9, sempre associados a quantidades de objetos de fácil acesso que deveriam estar enfileirados em uma sucessão aritmética.

Sempre haveria uma interligação do teórico com o prático, pois de acordo com a obra “[...] comece então a contar, dizendo um, e indicando, ao mesmo tempo, o primeiro objeto. Passando, depois à segunda linha, e os dois encarreirados, conte, dizendo: um, dois. Em seguida, apontando a fileira três, diga: um, dois, três” (CALKINS, 1886, p. 248; 1881, p. 194).

Recomendava-se a repetição quantas vezes fossem necessárias para que ocorresse a compreensão e associação da contagem até o último algarismo, sem que houvesse tropeços no processo. Depois, aleatoriamente questionava-se a quantidade de objetos existentes em cada fileira, fazendo-se variações de objetos e até mesmo utilizando partes do corpo humano, como os dedos. Após esta etapa, realizava-se a comparação entre algarismos de modo que, mesmo quando estes não estivessem dispostos em ordem, os discentes saberiam compreendê-los por seus valores.

No segundo e terceiro passos os alunos passariam a contar até 99 realizando sempre uma analogia do “nada” (indicador de não existência de elementos), que era representada pelo zero, com os algarismos aprendidos no passo anterior. Ou seja, passava-se a grupos do dez, do vinte, do trinta e assim sucessivamente.

No subtítulo “Lições para desenvolver as primeiras ideias de algarismos”, trabalhava-se a existência de algarismos e os números formados a partir de suas combinações, o que acontecia por meio de práticas que os correlacionassem, como em “jogos” de retiradas de pedras ou outros objetos, com a retirada ou alteração da quantidade de objetos fazia-se a correlação com a quantidade.

Introdução aos
algarismos
Figura 1
Introdução aos algarismos
Fonte: Calkins (1886, p. 258; 1881, p. 203).

Originando a leitura de nenhum algarismo, algarismo um, algarismo dois, algarismo três, algarismo quatro, até simplesmente fazer a associação com a contagem um, dois, três, quatro, cinco. A novidade foi que a quantidade “nada” passou a ser o algarismo zero.

O segundo passo desse subtítulo trouxe o reconhecimento dos algarismos como símbolos, que se realizava segundo a compreensão dos símbolos até o nove, criando-se uma comparação intuitiva e análoga, pois utilizava-se objetos do cotidiano, mas com uma base da comparação sequencial no quadro-negro.

Sequenciação
intuitiva dos algarismos
Figura 2
Sequenciação intuitiva dos algarismos
Fonte: Calkins (1886, p. 260; 1881, p. 205)

De acordo com o autor, começava-se a realizar a combinação intuitivamente dos algarismos que representavam números superiores a nove, começando-os sequencialmente a partir da primeira linha. Repete-se o primeiro algarismo em ordem sequencial na primeira coluna, assim indo do 1 (um) ao 9 (nove), e o mesmo acontecia com os algarismos da segunda coluna só que agora indo de 0 (zero) a 9 (nove).

 Noção intuitiva da
primeira centena dos algarismos
Figura 3
Noção intuitiva da primeira centena dos algarismos
Fonte: Calkins (1886, p. 264; 1881, p. 206)

Neste momento do manual os alunos eram levados a conhecer os símbolos ou as combinações de algarismos, que representavam os números até o 99. Posteriormente, vinha o de ensinamento das centenas, que era o quarto passo dessa lição, onde o professor associava uma pedra a unidades, dezenas e centenas, dispondo-as em colunas como demonstrado na Figura 4.

Representação das
dezenas e centenas
Figura 4
Representação das dezenas e centenas
Fonte: Calkins (1886, p. 265; 1881, p. 210)

Podemos observar que a junção de algarismos representavam as dezenas e as centenas, sendo que o primeiro algarismo iria de um a nove, enquanto os demais compostos com zeros. Sequencialmente, sabendo que quando houvesse um zero, o número formado pertenceria à classe das dezenas, e se o número fosse composto com dois zeros estaria na ordem das centenas, fazendo com que os alunos percebessem que as dezenas eram compostas com dois algarismos, e as centenas com três.

Neste ponto, o manual afirmava que os alunos estariam familiarizados com a construção dos algarismos que representavam os números, que teriam maior facilidade em concebê-los com valores superiores a 999, e principalmente fora de ordem.

A próxima lição era “Para ensinar a somar”, onde pela visão de Calkins, traduzida por Barbosa, devia-se começar a adicionar objetos, como quando se tem um lápis sobre a mesa e coloca-se mais um, se ficaria com quantos lápis? Assim, sucessivamente, quando os discentes tivessem esta visão intuitiva da forma de acrescentar as coisas, objetos, iniciava-se a noção de ‘soma’ através dos algarismos. Logo, era a ocasião em que o professor passaria a armar as adições no quadro-negro e desenvolvê-las comparando ao que fizera anteriormente com os objetos, sendo o momento da armação convencional, por meio do algoritmo, que vem sendo utilizada por muitas gerações de docentes.

O autor, no decorrer de suas ‘lições de somar’, pregava que nos primeiros passos do ensino primário deveria se explanar inicialmente a ideia, seguida dos fatos, que traziam as suas dificuldades específicas em solucioná-los naturalmente. Do mesmo modo, como ocorria nas lições anteriores, as “Lições para Ensinar a Diminuir” traziam uma abordagem em que inicialmente os alunos deveriam visualizar as operações a serem realizadas, com o auxílio de objetos e figuras do seu cotidiano.

Os primeiros exercícios que os mestres[13] deveriam trabalhar com os seus discípulos eram os que envolviam a retirada de objetos de um determinado grupo, por exemplo, se tivessem dez lápis e retirassem um desses dez, quantos restariam no grupo? O aluno estaria visualizando esta ‘diminuição’, e associando-a intuitivamente à nova operação.

 Exemplo de
exercício com a utilização de objetos do cotidiano dos alunos
Figura 5
Exemplo de exercício com a utilização de objetos do cotidiano dos alunos
Fonte: Calkins (1886, p. 276; 1881, p. 205)

Da mesma forma que ocorria com as lições de somar, aplicavam-se as lições de diminuir. Iniciava-se com a diminuição por contagem, onde os alunos iriam contando quantos objetos tinham em cada grupo, quantos estavam sendo retirados a cada momento e quantos sobrariam a cada retirada. Tudo também era abordado de uma forma gradativa, ou seja, começava-se trabalhando com grupos e poucos objetos, consequentemente retiravam-se poucos objetos. A cada momento iriam ampliando essa quantidade, tanto as que compunham os grupos, assim como as que seriam retiradas.

Considerando que os alunos estariam adestrados[14], poderiam começar a utilizar uma dinâmica mais mecânica e direta, pois a observação das “coisas” havia lhes fornecido um primeiro conceito do processo da subtração. Posterior a este passo o autor coloca que havia necessidade de desenvolver as ideias acerca do conhecimento da existência da ordem. Para isso, recomendava que os alunos trabalhassem esse conteúdo quando estivessem andando, “contando os passos, deste modo: primeiro passo, segundo passo, terceiro passo, etc” (CALKINS, 1886, p. 280; 1881, p. 215).

Podemos observar que entre as páginas 281 e 297, o autor abordou as operações sem a utilização da contagem. Esse era um passo importante, por exemplo, para que as crianças deixassem de desenvolver uma adição através da contagem de seus dedos. Entretanto, para obter êxito nessa nova etapa do ensino, o professor deveria ensinar o aluno a observar os números a serem adicionados, em especial os algarismos que iriam de um a nove, além de comparar suas combinações. Este processo é o início para a nova fase que o autor denominava de “Somar por décadas, ou dezenas”.

Entre as páginas 299 e 309, o autor expôs as “Lições para desenvolver as ideias de numeração e notação dos numeros”. Este capítulo do manual era dividido em: “numeração”, onde as crianças iriam aprender a ler os números, isso poderia ser trabalhado com a existência de objetos; “notação”, onde os alunos que saberiam falar os números com certa facilidade, deveriam aprender a escrevê-los através da fala do professor.

Para finalizar o “Manual de Lições de Coisas” às lições de adição e subtração (diminuir), seguiam-se as de multiplicação e divisão, lições estas que, assim como as anteriores, abordavam inicialmente o ensino com inclusão de algum objeto do cotidiano dos alunos, como podem verificar no primeiro passo de somar.

Após esta primeira abordagem, o professor trabalharia com questões mais mecânicas, sem a inserção de algo do cotidiano dos alunos, visando apenas a operação a ser desenvolvida. Esta sequência no ensino também era abordada no aprendizado das outras três operações.

5. CONSIDERAÇÕES

Com o decorrer desta pesquisa, apresentamos uma breve conceituação do método intuitivo. Esta metodologia recomendava que o ensino deveria partir do simples para o complexo, do conhecido para o desconhecido, do concreto para o abstrato. À vista de alguns registros analisados e contidos no corpo deste artigo, a inserção dessa metodologia se deu em diversos Estados do Brasil, e até em tempo anterior à chamada Reforma Leôncio de Carvalho (Decreto nº 7.247, de 19 de abril de 1879) e à experiência vivenciada pela Escola Americana, de São Paulo.

O manual “Primary Object Lessons” (“Primeiras Lições das Coisas”), de Norman Allison Calkins, teve sua primeira edição em inglês publicada em 1861 e a primeira versão traduzida para o português saiu em 1886, graças a Rui Barbosa. Ao que tudo indica tornou-se o primeiro manual de orientação dos professores, pais e alunos, a ser amplamente divulgado nas escolas normais e primárias brasileiras, evocando a prática do exercício da observação, da imaginação, das ideias e do raciocínio. Com relação a existência da matemática, mais especificamente da aritmética, atemos à presença de figuras e/ou de relatos que remetessem a um grupo de elementos, dos quais os alunos poderiam visualizar e desenvolver algum raciocínio algébrico, muitas vezes antes mesmo de ter conhecimento de termos teóricos.

Em diversas oportunidades, o autor apresentava orientações aos professores para que usassem objetos, por exemplo esferas, para que pudessem levar os alunos a desenvolverem a ideia de adição. Continuamente, os docentes eram orientados a trabalhar a adição com algarismos e isso também ocorreu com as demais operações fundamentais da aritmética. Para o desenvolvimento de cada uma das “noções de coisas” sugeridas pelo manual, o autor indicou que o professor partiria de onde o aluno se encontrasse, ou seja, das coisas que lhe eram familiares, levando-o a utilizar-se dos conhecimentos adquiridos para obter novas ideias.

A obra em questão se propôs a auxiliar pais e mestres nessa tarefa, buscando despertar o interesse da criança por meio de perguntas que propiciassem oportunidades para o exercício do julgamento, instruindo pelas próprias coisas e não acerca das coisas. O trabalho desenvolvido pelos professores deveria discorrer a partir de objetos conhecidos pelas crianças como bolas, cadeiras, mesas, laranjas, anéis e outros, de onde o professor deveria partir progredindo para a sua forma geométrica, suas propriedades, comparação de formas semelhantes e diferentes, até atividades mais complexas, relacionadas às abstrações. Por isso, as lições propostas neste manual, partiam sempre do simples para o complexo, do concreto para o abstrato, do particular para o geral, da síntese para a análise, das coisas para as palavras, numa nítida valorização do saber vinculado aos resultados práticos e concretos, que tornaram-se marcas do ensino intuitivo.

REFERÊNCIAS

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BLOCH, M. Apologia da História ou o ofício do historiador. Tradução: André Telles, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

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VALDEMARIM, V. T. Estudando Lições de Coisas. Campinas: Autores Associados, 2004.

Notas

[3] Norman Alisson Calkins (1822 – 1895) foi professor primário e diretor de escola em sua cidade natal, Gainsville, no interior do Estado de Nova York. Posteriormente foi professor de ciência e metodologia do ensino da Escola Normal do Estado de Nova York e diretor da escola primária que lhe era anexa. Ficou mundialmente conhecido por seus trabalhos e conferências sobre as lições de coisas e, evidentemente, pela publicação do seu manual: “Primeiras lições de coisas: manual para uso de paes e professores da escola elementar”. Percebendo as dificuldades que os seus colegas professores encontravam para adaptar as ideias de Pestalozzi às suas práticas de sala de aula resolveu, segundo Rui Barbosa, organizar um formulário de lições, ao qual deu o nome de “primary object lessons for a graduated course of development”. O sucesso desta publicação o estimulou a aperfeiçoá-lo, ampliá-lo e republicá-lo, em 1870, com o título abreviado de “Primary Object Lessons”. Essa segunda versão do seu manual foi considerada por Ferdinand Buisson, em seu famoso relatório, como “a melhor coleção de coisas de que há notícia”, fato que, certamente, impulsionou a sua tradução para vários idiomas e quarenta reedições, num período de vinte anos. (AURAS, 2005, p. 85 e 86)
[4] Relatorio apresentado a Assemblea Geral na Segunda Sessão da Decima Quarta Legislatura pelo Ministro e Secretario dos Negocios do Imperio, Paulino José Soares de Souza, 1870.
[5] A Fundação oferece um espaço reservado ao trabalho intelectual, à consulta de livros e documentos e à preservação da memória nacional. Conheça suas atividades relacionadas à preservação e divulgação do legado de Rui Barbosa e à formação, conservação e difusão de acervos bibliográficos, documentais e arquitetônicos, com o apoio de laboratórios técnicos. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/. Acesso em: 02/02/2019.
[6] Segundo Bastos (2000, p. 84), publicou neste jornal, de 8 de outubro a 24 de dezembro de 1873, 16 artigos sobre a Reforma da Instrução Pública que tratavam sobre a Reforma João Alfredo (1871).
[7] Publicou traduções como “O Papa e o Concílio”, de Janus, em 1877.
[8] Sobre o possível uso dessa edição como base da publicação de Rui em 1886, Lourenço Filho (in CALKINS, 1950, p. XII) coloca que “na realidade não foi feita à vista dessa 40ª edição, só impressa em 1884, mas, sim, da 18ª, tirada quatro anos antes”
[9] “[...] adoptado no Brazil pela lei de 26 de junho de 1872, em Portugal pela de 13 de dezembro de 1852, e em vigor neste paiz desde 1862 e no nosso desde 1872” (BARBOSA, in CALKINS, 1886, p. XIV).
[10[ Sobre a recepção da pedagogia pestalozziana nas sociedades latinas, consultar a obra organizada por Ruiz Berrio, J. et all: La recepción de la pedagogia pestalozziana en las sociedades latinas. Madrid: Endymion, 1997, especialmente o artigo de Gabriela Ossenbach, páginas 353 a 366.
[11] Na tradução de Rui Barbosa, iniciada em 1881 e publicada em 1886, este prefácio está na página XVII.
[12] Apesar de citado anteriormente que esta obra possui 563 páginas, as primeiras 28 se referem à introdução e prefácio, dentre outros. Teoricamente teria 535 páginas com os temas geradores, mas 6 números não constam nas páginas, talvez por um erro de paginação e formatação.
[13] Como eram tratados os professores no período de idealização, elaboração e utilização deste manual.
[14] Linguagem utilizada no livro, na décima terceira e na décima quarta linha (CALKINS, 1886, p. 277). No original em inglês, de 1881, vê-se “When the pupils have been throughly trained in the exercises...” (p. 215), isto é, arduamente treinados.

Autor notes

1 Doutorando em Educação em Ciências e Matemática, Programa de Doutorado em Educação em Ciências e Matemática (PPGECEM), Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professor da Licenciatura em Matemática, Universidade Federal do Tocantins (UFT), Câmpus de Araguaína.
2 Doutora em Educação Matemática, pela Universidade Bandeirante de São Paulo (UNIBAN).. Pesquisadora do GHEMAT - Brasil.

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