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Ngola Mbandi e a possibilidade de um quadro depressivo em Angola Antiga

Ngola Mbandi and the possibility of a depressive situation in Ancient Angola

Ngola Mbandi y la posibilidad de una situación depresiva en la Antigua Angola

Sílvio Geraldo Ferreira da Silva
Universidade Federal de Lavras, Brasil
Ana Clara Prado Ferreira
Centro Universitário de Lavras - UNILAVRAS, Brasil

RAC: revista angolana de ciências

Associação Multidisciplinar de Investigação Científica, Angola

ISSN-e: 2664-259X

Periodicidade: Semestral

vol. 2, núm. 3, 2020

sousangola@gmail.com

Recepção: 01 Julho 2020

Aprovação: 30 Setembro 2020



Resumo: Ngola Mbandi foi um dos soberanos do Reino do Ndongo durante o período inicial da dominação portuguesa em Angola. O monarca teve um papel importante para a manutenção da soberania do seu reino, embora não tenha protagonizado um governo longevo. No contexto sócio-histórico em que foi regente, Mbandi acumulou algumas derrotas, fato que permitiu, em certa medida, o avanço das tropas invasoras. O presente trabalho busca, através de uma perspectiva comparada entre literatura e história, analisar a possibilidade de NgolaMbandi ter sido acometido por uma doença que ainda não era conhecida nos século XVII; a depressão. Tendo em vista o governo de perdas, este pode ter sido um gatilho para a desestabilização psicológica de Mbandi. A história e a literatura apresentam muitas versões sobre a causa da morte do soberano, como envenenamento, suicídio e tristeza. Sabe-se que a versão mais difundida é a morte por envenenamento, porém, neste trabalho, manteremos o foco na possibilidade de morte em decorrência de um quadro depressivo, uma vez que a literatura e a história também dão margem para esta versão. A possibilidade de Mbandi ter cometido suicídio também pode ser compreendida como um traço depressivo, assim como o possível isolamento dele na Ilha Kindonga após repetidas derrotas nas batalhas contra os portugueses. Esta investigação justifica-se por buscar compreender o governo e a morte de NgolaMbandi e, com isso, objetiva contribuir para a disseminação do conhecimento sobre Angola Antiga através das possibilidades proporcionadas pela literatura e pela história.

Palavras-chave: Ngola Mbandi, Angola Antiga, Depressão.

Resumen: Ngola Mbandi fue uno de los soberanos del Reino de Ndongo durante el período inicial de dominación portuguesa en Angola. El monarca desempeñó un papel importante en el mantenimiento de la soberanía de su reino, aunque no dirigió un gobierno de larga vida. En el contexto social y historico en el que era regente, Mbandi acumuló algunas derrotas, un hecho que permitió, en cierta medida, el avance de las tropas invasoras. El presente trabajo busca, a través de una perspectiva comparativa entre literatura e historia, analizar la posibilidad de que Ngola Mbandi haya sido afectada por una enfermedad que aún no se conocía en el siglo XVII; depresión. En vista de la pérdida del gobierno, esto puede haber sido un desencadenante de la desestabilización psicológica de Mbandi. La historia y la literatura presentan muchas versiones de la causa de muerte del soberano, como envenenamiento, suicidio y tristeza. Se sabe que la versión más extendida es la muerte por envenenamiento, sin embargo, en este trabajo, nos centraremos en la posibilidad de muerte debido a una condición depresiva, ya que la literatura y la historia también dan cabida a esta versión. La posibilidad de que Mbandi se haya suicidado también puede entenderse como un rasgo depresivo, así como su posible aislamiento en la isla de Kindonga después de repetidas derrotas en batallas contra los portugueses. Esta investigación se justifica buscando comprender el gobierno y la muerte de Ngola Mbandi y, con esto, tiene como objetivo contribuir a la difusión del conocimiento sobre la antigua Angola a través de las posibilidades que brinda la literatura y la historia.

Palabras clave: Ngola Mbandi, Antigua Angola, Depresión.

Abstract: Ngola Mbandi was one of the sovereigns of the Kingdom of Ndongo during the initial period of portuguese domination in Angola. The monarch played an important role in maintaining the sovereignty of his kingdom, although he did not lead a long-lived government. In the socio-historical context in which he was regent, Mbandi accumulated some defeats, a fact that allowed, to a certain extent, the advance of invading troops. The present work seeks, through a comparative perspective between literature and history, to analyze the possibility of Ngola Mbandi having been affected by a disease that was not yet known in the 17th century, depression. In the view of the lost government, this may have been a trigger for Mbandi's psychological destabilization. History and literature present many versions of the sovereign's cause of death, such as poisoning, suicide, and sadness. It is known that the most widespread version is death by poisoning, however, in this work, we will keep the focus on the possibility of death due to a depressive condition, since literature and history also give scope for this version. The possibility that Mbandi committed suicide can also be understood as a depressive trait, as well as his possible isolation on Ilha Kindonga after repeated defeats in battles against the Portuguese. This investigation is justified by seeking to understand the government and the death of Ngola Mbandi and, with this aims to contribute to the dissemination of knowledge about Ancient Angola through the possibilities provided by literature and history

Keywords: Ngola Mbandi, Ancient Angola, Depression.

IntroduçÃo

Ngola Mbandi foi um dos soberanos do Reino do Ndongo durante parte do período de invasão portuguesa em Angola. Com poucos anos de governo, a monarquia de Mbandi pode ter sido uma das menores da história do Ndongo. Quando é mencionado, o nome deste soberano está sempre atrelado às figuras de seu pai, Ngola Kiluanji Kia Samba, ou de sua irmã, a lendária Rainha Ginga Mbandi Kakombe, evidenciando que o seu desempenho político não possuiu a mesma glória que os governos anterior e posterior.

A guerra entre invasores portugueses e o povo mbundu já estava acontecendo desde a infância de Ngola Mbandi. A luta pela soberania do Ndongo perdurou desde o governo de Ngola Kiluanji até monarquias posteriores, perpassando as de Mbandi e Ginga. Talvez, o protagonismo de Mbandi no governo do Reino do Ndongo tenha sido o mais desastroso que se tem documentado, pois ele acumulou derrotas e muitos dissabores ao longo do tempo em que execeu seu papel sociopolítico.

O romance histórico A Rainha Ginga: e de como os africanos inventaram o mundo (2015), de autoria do escritor angolano José Eduardo Agualusa, será a base literária para a presente investigação comparada entre literatura e história (Remak, 1994). Sabemos que são constatadas muitas versões sobre a morte de Ngola Mbandi, insclusive mencionaremos algumas delas nesta investigação, porém manteremos o foco na possibilidade da morte do soberano ter decorrido de um quadro depressivo gerado pelo conturbado governo que exerceu.

O fato de surgirem tantas versões sobre os mesmos assuntos, principalmente no que tange a história de Angola Antiga, pode dever-se à perda de documentações históricas ou até mesmo ao silenciamento histórico ao qual as populações africanas foram submetidas ao longo dos anos. Sobre Ngola Mbandi, é necessário dizer que o romance de Agualusa (2015) contempla algumas versões sobre a sua morte, desta maneira vamos utilizar a obra para alicerçar a ideia de um quadro depressivo do antigo monarca mbundu, além de mencionar as outras possíveis causas de seu falecimento.

Esta pesquisa justifica-se pelo fato de auxiliar a compreender a história de Angola Antiga, tomando como foco a possibilidade da causa mortis do soberano Ngola Mbandi ter acontecido em decorrência de uma doença cujo nome ainda não existia no século XVII; a depressão. Buscar conhecer sobre Ngola Mbandi é também uma tentativa de se compreender Angola Antiga. Não se pode mudar o passado, entretanto tentar compreendê-lo é prestar um serviço ao progresso humano.

ngola mbandi e o cenário de governo do ndongo

Ngola Mbandi, assim como Angola Antiga, apresenta alguns pontos ainda desconhecidos. Este detalhe é bastante recorrente na história de Angola, podendo afirmar que outros chefes de estado e personagens importantes ainda são desconhecidos em demasia. O que se pode afirmar é que Ngola Mbandi possuiu um protagonismo importante para a soberania de seu povo – mbundu – apesar dos problemas que enfrentou durante o seu governo.

História Geral das Guerras Angolanas, de Antônio de Oliveira de Cadornega, traz informações pertinentes sobre o contexto da Angola do século XVII. Publicada pela primeira vez no ano de 1680, a obra de três tomos contempla não apenas os conflitos entre invasores e povos tradicionais, mas também parte da história e cultura daquele momento e lugar. Franco (2013) diz que a citada obra se tornou uma das mais importantes fontes documentais sobre a presença portuguesa, e de outros povos europeus, na região africana da costa do Oceano Atlântico.

Cadornega, no seu Terceiro Tomo, em seção intitulada “Pauta dos Reys de Angola Despois da Entrada da Nossa Conquista nestes Reinos de Angola”, menciona a cronologia dos ngolas tendo como ponto de partida o governante vigente no início da invasão portuguesa. A ordem dos reis então seria “Angola Aquiloangi. Angola Ambandi, seu filho. Angola Aquiloangi, filho de Angola Ambandi. A Raynha Ginga Dona Anna de Souza [...]” (Cadornega, 1972, p. 306). Como exposto pelo autor, Ngola Mbandi teria sido o segundo governante do Reino do Ndongo, assim, foi o segundo a resistir às investidas portuguesas na região seguindo os passos do pai, Ngola Kiluanji. Um detalhe que vale a pena ser mencionado é que, segundo Cadornega (1972), um filho de Mbandi, chamado “Angola Aquiloangi” teria sido o terceiro na linha sucessória apresentada. Este detalhe parece ser um equívoco do autor, pois entre os governos de Ngola Mbandi e da Rainha Ginga - Dona Ana de Souza - não houve nenhum monarca, de acordo com a literatura e a história.

Um importante momento do governo de Ngola Mbandi é quando tem início a vida sociopolítica de Ginga, sua irmã. Na ocasião, o soberano desejava que o governador de Luanda, João Correia de Souza, recebesse a sua embaixada “a cabeça da qual iria a irmã mais velha, Ginga, que tinha por conselheira preciosa” (AGUALUSA, 2015, p. 15). Ele queria que a embaixadora negociasse o fim das invasões portuguesas, e, principalmente “a retirada portuguesa de Ambaca [, que] passou a ser uma das maiores reivindicações do Ngola e seus representantes na década de 1620” (Fonseca, 2012, p. 107). Ginga acolheu o pedido do irmão e negociou diretamente com o governador. João Correia de Souza parecia inclinado a aceitar as exigências, porém, com a mudança constante de governadores de Luanda, o pedido acabou não sendo atendido e a presença portuguesa em Ambaca continuou.

Fonseca (2014, p. 03) argumenta que “em mais de cinco anos de lutas, o Ngola teve sua capital incendiada, súditos aprisionados, territórios invadidos; enfraquecido se exilou em uma ilha do rio Kwanza”. Aquele contexto adverso pode ter sido bastante desgastante para Ngola Mbandi, tanto física quanto psicologicamente. Como governante, aquela situação de perda da soberania pode ter sido um gatilho para a desestabilidade emocional. “Dois anos após o episódio com o governador português, o então rei do Ndongo e meio-irmão de Nzinga, Ngola Mbandi, morre sob circunstâncias duvidosas” (Camerano, 2018, 19). Glasgow (1982, p. 90) apresenta as possibilidades, tendo em pauta as duas versões mais comuns, dizendo que:

“[...] desalentado com as sucessivas derrotas militares, e com o não cumprimento dos termos do tratado pelos portugueses, Mbandi faleceu, vítima, talvez, de auto-envenenamento, ou de uma trama armada por Nzinga. O registro não é claro, a evidência é contraditória”

Para Glasgow (1982), a morte do soberano Mbandi poderia ter ocorrido por suicídio, ou por uma ação de Ginga. O próprio autor tem o cuidado de dizer que há contradições, pois há muitas lacunas na historiografia de Angola Antiga, e as várias versões sobre os mesmos acontecimentos acabam por dificultar a compreensão do que realmente aconteceu. Não se pode, portanto, afirmar com precisão o que matou Ngola Mbandi, mas apresentar as possibilidades dentro da documentação que se possui.

Na voz do narrador-personagem, Francisco José da Santa Cruz, o romance de Agualusa apresenta algumas das possíveis causas da morte de NgolaMbandi. Este diz:

Assim, segundo alguns, Ngola Mbandi morrera das mesmas febres comuns, tão frequentes no país, que me haviam prostrado a mim. Segundo outros morrera de desgosto por se sentir desrespeitado e humilhado pelos portugueses. Asseguravam terceiros, entre os quais Domingos Vaz, que o rei fora envenenado pela irmã, a qual vingara assim a morte do infeliz Quizua Quiazele (Agualusa, 2015, p. 48).

O fragmento do romance apresenta algumas das possibilidades da causa do falecimento de Mbandi, mencionando o desgosto do soberano com o rumo de seu governo, indo ao encontro do que foi defendido por Glasgow (1982). Há a versão de que Ginga teria envenenado Mbandi para vingar o assassinato do filho, e, ainda, a versão da morte por causas naturais, que, apesar de não serem o foco deste estudo, são possibilidades e merecem a menção. Costa e Silva (2011, p. 303) também ilumina o cenário de falecimento de Mbandi dizendo que:

Mal se tinham passado dois anos dessa embaixada e ela reapareceu como senhora do poder no Dongo, após — disto suspeitavam os contemporâneos — ter ministrado veneno ao irmão, se é que este não se suicidou, por decisão dos grandes chefes.

Assim como Agualusa (2015) e Glasgow (1982), Costa e Silva (2011) também fala sobre as possibilidades de um envenenamento cometido por Ginga e de um suicídio, porém, a forma deste último seria diferente das versões apresentadas pelos outros autores. Talvez este suicídio tenha sido uma penalização das autoridades do reino, possivelmente os macotas, em resposta ao governo desastroso de Mbandi. A morte do soberano, nesta versão, pode, talvez, ser comparada à morte de Sócrates que, depois da acusação dos sofistas, foi condenado a suicidar-se bebendo veneno.

A POSSIBILIDADE DE UM SOBERANO COM DEPRESSÃO

Nesta sessão, abordaremos, segundo as postulações da psicologia, o que é a depressão e como Ngola Mbandi pode ter sido acometido por ela. A depressão é uma doença que muitos já ouviram falar de sua existência, mas pouco se sabe profundamente sobre ela, sendo minimizada como uma tristeza profunda. Porto (1999, p. 06) defende que a depressão pode ser encarada também como a falta do prazer em executar tarefas que antes proporcionavam bem-estar. Este autor compreende que a depressão acontece na vida do indivíduo de três maneiras: como sintoma, como síndrome e como doença. Compreende-se por sintomas depressivos quadros clínicos como os transtornos pós-traumáticos, alcoolismo, esquizofrenia, dentre outros. Estes sintomas podem surgir também como resposta a momentos estressantes da vida, sejam questões familiares, sociais e/ou econômicas. A depressão, enquanto síndrome, pode ser entendida não apenas como alteração de humor, mas também como algo que afeta as funções cognitivas, psicomotoras e vegetativas. Compreender a depressão enquanto doença é algo que vai de acordo com os manuais psiquiátricos vigentes, o que depende do momento histórico e científico.

Dalgalarrondo (2008) aponta que existem diversos fatores causais e desencadeantes para as síndromes depressivas, sejam de cunho biológico, genético e neuroquímico. Ele comenta também que é comum que as síndromes e reações depressivas possam surgir em contexto de perda, seja essa perda de um ente querido, emprego, status social, moradia, ou algo puramente simbólico. Hofer (1996) e Del Pino (2003) reafirmam que no ponto de vista da ciência psicológica, as síndromes depressivas tem alta relação com a experiência de perda e luto.

No entendimento de Barlow e Durand (2016), a depressão é dividida em tipos e categorias, e depois é subdividida em subtipos para especificar melhor o diagnóstico do sujeito em questão. Durand (2016) comenta que o transtorno de humor mais comum é o transtorno depressivo maior, onde não há episódios de mania ou de hipomania, sendo raro existir apenas um episódio durante a vida. Se houver maior ocorrência desses episódios, com intervalo de aproximadamente dois meses, é chamado então de transtorno depressivo maior recorrente. Essa recorrência deve ser levada em consideração, pois pode vir a se tornar algo crônico, não apenas alguns episódios, tendo chance de recorrência de quarenta por cento no segundo ano após o primeiro episódio (Boland & Keller, 2009). Já a distimia tem certa semelhança com o transtorno depressivo maior, tendo dois sintomas a menos e duração de pelo menos dois anos. Em alguns casos, pode durar até mais de dez anos.

Dentro do que a academia entende por depressão, assim como o DSMV (Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais), existem diversas síndromes e transtornos, tais como: distimia, episódios depressivos, transtorno depressivo recorrente, depressão atípica, depressão tipo melancólica, depressão psicótica, estupor depressivo, depressão ansiosa, depressão orgânica, dentre outros transtornos e síndromes. Existe esta diferenciação por motivos como o tempo de duração,a severidade dos sintomas e o seu curso (crônico ou não-crônico).

Quando se trata do quadro do Ngola Mbandi, temos alguns relatos e situações que podem nos dar indícios de que ele carregou alguns sinais e sintomas depressivos. Glasgow (1982) comenta que após a derrota em um ataque mal sucedido deferido contra os portugueses, sem o conhecimento de Ginga, Ngola Mbandi procurou se isolar na Ilha Kindonga, localizada no Rio Kwanza. Neste momento da história do Ngola, temos uma perda, sendo este um fundamento da depressão. Os efeitos de sua derrota são percebidos tanto em termos físicos, quanto moral e de status social. Além disso, vemos como resposta à perda um isolamento social, como forma de esquiva e apatia da realidade, sendo esses traços depressivos evidentes. A melancolia é um especificador presente neste e em outros momentos de sua história. Para além do isolamento, é demonstrado o desinteresse nas suas atividades anteriores, assim como uma culpa excessiva e inapropriada. Pinheiro & Tamayo (1984) defendem que o isolamento e a solidão na depressão acontecem devido à falta e/ou deficiência de relacionamentos pessoais significativos.

Há indícios grandes de infelicidade, humor depressivo, anedonia, ideias de culpa, angústia, dentre outros traços e sinais depressivos em Ngola Mbandi. Temos a versão de que Mbandi teria morrido de desgosto na Ilha Kindonga (Fonseca, 2013). Relatos como este nos apontam como o contexto histórico o afetou psicologicamente e emocionalmente, tendo tamanha desesperança e tristeza decorrente do que ele passou durante anos com seu reino e seu povo. Ao relatar o período de desgosto, podemos inclusive compreender a complexidade do seu quadro, pois em níveis estatísticos, o período de dois anos com sintomas depressivos (por mais que aqui não consigamos obter todos os sintomas durante todo esse período) é algo a se levar em consideração, principalmente quando compreendemos que esses foram seus últimos anos de vida.

Fonseca (2012, p. 123) faz referência a um documento escrito pelo governador de Luanda, Fernão de Souza, no qual ele menciona a morte por suicídio em decorrência da tristeza de não ter suas exigências atendidas pelos portugueses. O texto diz:

“E vendo ElReiAngolla estas dilaçoens que eram enganos, e de paixão morreo e dizem que de peçonha que ele mesmo tomou de desesperado. Morto ele ficou em seu lugar Dona Ana de Sousa Ginga Ambande que já era cristã, e avizou o Bispo de sua morte pedindo cumprimento dos autos a que o Bispo não deu cumprimento logo[1].”

Vemos, neste trecho, que o sentimento de incapacidade de proteger seu povo e cumprir com o seu dever o toma psiquicamente. Segundo Wilson (1988), citado por Campos (2000), podemos relacionar a depressão de culpa (concepção anaclínica), que inclui o medo de perder o amor ao objeto de desejo – o seu povo e reino -, tendo para si o sentimento de autoacusação e inferioridade. Deve-se levar em consideração também a sua relação com sua irmã, trazendo-lhe ainda mais um olhar para si de inferioridade.

Conclusões

Como consta no decorrer do trabalho, a depressão é altamente relacionada com a perda e o luto, sendo que essa perda deve ser significativa e simbólica. Compreendendo isto, primeiramente, independente de diagnóstico e de aspectos estatísticos, vemos uma relação profunda do sofrimento do soberano com suas perdas, seja esta perda de batalhas, de disputas políticas e/ou de status. Sua história é permeada de um nível grande de sofrimento psíquico.

Por mais que não consigamos diagnosticar o soberano por questões éticas e por não termos contato direto com seu caso clínico, podemos tirar algumas conclusões sobre a relação de sua morte com todo esse sofrimento passado. Devido às perdas de batalha e perdas políticas, ele passou a se isolar em determinado momento, tendo uma postura negativa perante a vida. Este sofrimento todo dura pelo menos dois anos, que é um dado relevante para compreendemos o tamanho do sofrimento. Também podemos observar o quanto o quadro psicológico afetava suas funções e relações interpessoais.

Vemos um sentimento de culpa muito presente, junto com a apatia e melancolia. Quando encontramos esses traços e sinais depressivos, é muito comum percebermos uma visão de falta de sentido quanto a vida, relações e atividades que antes eram realizadas. Sendo assim, pois mais que o diagnóstico não possa ser conclusivo, podemos relacionar sua morte ao seu histórico depressivo, incluindo seus sinais e sintomas. Por mais que haja a suposição de uma morte por envenenamento (Silva, 2020), não se pode desconsiderar o estado psicológico de Ngola Mbandi.

Sabemos que as versões mais difundidas, e aceitas, sobre a causa mortis de Ngola Mbandi são aquelas que apresentam um envenenamento protagonizado por Ginga, entretanto, como a história e a literatura trazem outras possibilidades, é interessante também investigá-las e tentar compreendê-las. As brumas do desconhecimento ainda estão presentes na história e na memória de Angola, portanto, iluminar um pouco mais Ngola Mbandi é também iluminar a historicidade do país.

Agradecimentos

Agradecemos aos nossos familiares que nos deram o suporte durante o estudo que culminou neste artigo e ao corpo editorial da RAC – Revista Angolana de Ciências pela prontidão em esclarecer qualquer dúvida que viesse a surgir. Gratidão!

Referencias

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Notas

[1] O documento mencionado pode ser lido na obra Fontes para a história de Angola. Heintze. Fontes para a história de Angola.1985. Vol.I. doc.23. p.196.
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