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POLÍTICAS DO OPARÁ: PARTICIPAÇÃO INDÍGENA NO COMITÊ DE BACIA HIDROGRÁFICA DO SÃO FRANCISCO
Antônio Fernandes de Jesus Vieira; Gustavo Moreira Ramos
Antônio Fernandes de Jesus Vieira; Gustavo Moreira Ramos
POLÍTICAS DO OPARÁ: PARTICIPAÇÃO INDÍGENA NO COMITÊ DE BACIA HIDROGRÁFICA DO SÃO FRANCISCO
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol. 15, núm. 2, 2018
Universidade Estadual de Montes Claros
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Resumo: Desde o início dos anos 2000, lideranças indígenas têm vivenciado uma participação importante no Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF), que vem se consolidando, em conjunção com aquela que ocorre em outros órgãos, como um dos principais meios de manifestação das pautas reivindicatórias dos povos indígenas no nordeste brasileiro, especialmente no que concerne à questão das águas do Opará, nomeação indígena para as águas que os brancos denominam rio São Francisco. Atualmente, essa participação no CBHSF se dá em maior número pelas lideranças Tuxá, povo esse cuja história recente explicita um caso de remoção compulsória em consequência da construção da hidrelétrica de Itaparica m 1988, bem como a não demarcação de suas terras ainda trinta anos depois. A pesquisa na qual se baseia o texto aqui apresentado procura verificar como se dá a participação dessas lideranças indígenas no âmbito do comitê a partir da crítica indígena e dos movimentos que compõem certas ?políticas indígenas da água?. Essa crítica indígena é utilizada no sentido que Stuart Kirsch (2006) utiliza a expressão ,a saber, como uma avaliação que os próprios indígenas realizam de suas relações com o Estado e com os brancos e a partir da qual produzem suas estratégias de ação na relação com esses. A partir de minha pesquisa de campo pude notar que essa constante crítica indígena tem produzido uma diferença entre as antigas e as novas lideranças, e que uma das principais características das últimas, reforçada a todo o momento por elas mesmas, é uma busca saber no que diz respeito aos procedimentos técnico-burocráticos pelos quais funciona um órgão como, por exemplo, o CBHSF, bem como um esforço em apropriar-se do código científico dos brancos enquanto ferramenta estratégica de luta. Nesse texto pretendo tratar dois pontos cruciais em minha pesquisa. O primeiro, a forma como se manifesta um embate, no âmbito do comitê e com enfoque na experiência do povo Tuxá, entre noções distintas de territorialidade, uma a das lideranças indígenas e dos povos representados por essas e a outra aquela patenteada pelo comitê enquanto órgão estatal. O segundo, a priorização do campo de atuação das lideranças indígenas nas seções de caráter técnico na estrutura do comitê em detrimento daquelas de caráter consultivo, para verificar nesse, que é um movimento estratégico de luta, a forma como têm adentrado esse campo do saber técnico-científico, que inclui a lida com documentos, projetos e possibilidades de acionar, por meio dessa participação nas seções técnicas, práticas científicas que fortaleçam suas lutas.

Palavras-chave: antropologia,etnografia,comitê de bacia,lideranças indígenas,práticas científicas.

Resumen: Desde principios de los años 2000, líderes indígenas han vivido una participación importante en el Comité de la Cuenca Hidrográfica del San Francisco (CBHSF), que se viene consolidando, en conjunción con la que ocurre en otros órganos, como uno de los principales medios de manifestación de las pautas reivindicaciones de los pueblos indígenas en el nordeste brasileño, especialmente en lo que concierne a la cuestión de las aguas del Opará, nombramiento indígena para las aguas que los blancos denominan río San Francisco. En la actualidad, esta participación en el CBHSF se da en mayor número por los liderazgos Tuxá, pueblo aquel cuya historia reciente explicita un caso de remoción obligatoria como consecuencia de la construcción de la hidroeléctrica de Itaparica en 1988, así como la no demarcación de sus tierras aún treinta años después. La investigación en la que se basa el texto aquí presentado busca verificar cómo se da la participación de esos líderes indígenas en el ámbito del comité a partir de la crítica indígena y de los movimientos que componen ciertas "políticas indígenas del agua". Esta crítica indígena es utilizada en el sentido que Stuart Kirsch (2006) utiliza la expresión, a saber, como una evaluación que los propios indígenas realizan de sus relaciones con el Estado y con los blancos ya partir de la cual producen sus estrategias de acción en la relación con ellos. A partir de mi investigación de campo pude notar que esa constante crítica indígena ha producido una diferencia entre las antiguas y los nuevos líderes, y que una de las principales características de las últimas, reforzada a todo momento por ellas mismas, es una búsqueda saber en lo que se refiere a los procedimientos técnico-burocráticos por los que funciona un órgano como, por ejemplo, el CBHSF, así como un esfuerzo en apropiarse del código científico de los blancos como herramienta estratégica de lucha. En este texto pretendo tratar dos puntos cruciales en mi investigación. El primero, la forma como se manifiesta un embate, en el ámbito del comité y con enfoque en la experiencia del pueblo Tuxá, entre nociones distintas de territorialidad, una a la de los liderazgos indígenas y de los pueblos representados por éstas y la otra aquella patentada por el comité como órgano estado. El segundo, la priorización del campo de actuación de los líderes indígenas en las secciones de carácter técnico en la estructura del comité en detrimento de aquellas de carácter consultivo, para verificar en ese, que es un movimiento estratégico de lucha, la forma como han adentrado ese campo del saber técnico que incluye la lectura con documentos, proyectos y posibilidades de accionar, por medio de esa participación en las secciones técnicas, prácticas científicas que fortalezcan sus luchas.

Palabras clave: antropología, etnografia, comité de cuenca, líderes indígenas, prácticas científicas.

Abstract: Since the beginning of the 2000s, indigenous leaderships have experienced an important participation in the São Francisco River Basin Committee (CBHSF), which has been consolidating as one of the principal means of manifestation of the struggle guidelines indigenous peoples in northeastern Brazil, especially with regard to the question of the waters of Opará, the indigenous name for the waters that the whites call the São Francisco River. Nowadays, this participation in the CBHSF is performed by a greater number of Tuxá leaders, whose recent history makes explicit a case of compulsory displacement as a consequence of the construction of the Itaparica hydroelectric plant in 1988, as well as the non-demarcation of their lands still thirty years later. The present text is a results of my mastership degree research, which seeks to describe ethnographically the work of indigenous leaders in this Committee - from the point of view of an indigenous critique in the relationship with the state powers represented in the CBHSF - and the movements that make up a specific "indigenous water politics". This indigenous critique is used in this sense by Stuart Kirsch (2006), when he uses the expression, as an evaluation that the natives themselves perform their relations with the state and whites and from which they produce their strategies of action in relation with these. From my field research I have been able to note that this constant indigenous critique has produced a difference between the old and new leaderships, and that one of the main characteristics of the latter, reinforced at all times by themselves, it is a quest for a knowledge with regard to the technicalbureaucratic procedures by which an organ such as CBHSF works, as well as an effort to appropriate the white?s scientifics code as a strategic tool of struggle. In this text I intend to address two crucial points. The first is the way in which a conflict occurs within the committee and focuses on the experience of the Tuxá people, between distinct notions of territoriality, on one side of the indigenous leaderships and the peoples represented by them, on the other side that manifested by the committee as a body state-owned. The second, is the prioritization of the field of action of indigenous leaders in the technical sections of the committee structure to the detriment of those of an advisory nature, to verify this, which is a strategic movement of struggle, the way in which they have penetrated this field of technical scientific knowledge, which includes dealing with documents, projects and possibilities to trigger, through this participation in the technical sections, scientific practices that strengthen their struggles. Keywords:anthropology, ethnography, basin committee, indigenous leaderships, scientific practices.

Carátula del artículo

Dossiê

POLÍTICAS DO OPARÁ: PARTICIPAÇÃO INDÍGENA NO COMITÊ DE BACIA HIDROGRÁFICA DO SÃO FRANCISCO

Antônio Fernandes de Jesus Vieira
Universidade de Brasília, Brasil
Gustavo Moreira Ramos
Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), Brasil
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 15, núm. 2, 2018

Recepção: 28 Novembro 2017

Aprovação: 03 Dezembro 2017


Introdução

A pesquisa que venho desenvolvendo no âmbito do mestrado é uma etnografia da participação de lideranças indígenas no Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF). Para isso, tenho acompanhado os trabalhos de duas dessas lideranças, as quais, não por acaso, são do povo Tuxá de Rodelas, cuja história recente demonstra a profunda relação com questões discutidas no CBHSF e que serão aqui apresentadas. Opará, nomeação indígena para as águas que os brancos denominam rio São Francisco.

Para apresentar essas questões, o texto está dividido da seguinte forma: primeiro uma breve apresentação do CBHSF, a fim de expor sua abrangência, objetivos, estrutura organizacional e a forma como realiza suas ações, bem como seu caráter técnico-burocrático. Em um segundo momento busco trazer à narrativa um pouco da história recente do povo Tuxá de Rodelas, por dois motivos: o fato de que as lideranças indígenas atuantes no CBHSF são também lideranças Tuxá; e que a atual situação do povo Tuxá é exemplo importantíssimo para compreender a forma como foi tratada pelos órgãos estatais a questão das águas (e seus usos) ao longo da extensão do São Francisco, em especial no sertão nordestino, no que diz respeito às populações indígenas viventes na região. Essa apresentação da situação Tuxá tem também como objetivo pensar como certos acontecimentos, especialmente na relação entre povo Tuxá e poder estatal, fizeram emergir um novo tipo de liderança indígena com outras preocupações e estratégias de lutas, as quais são apresentadas em um terceiro momento do texto. Para finalizar procuro discutir, ainda timidamente, algumas questões que me surgiram em campo a partir do acompanhamento dos trabalhos de meus interlocutores de pesquisa. Dessas destaco dois pontos, a saber, um empenho para fazer convergir as lutas relacionadas à questão da demarcação da terra e do uso das águas, que para essas lideranças são uma única luta, tratando, portanto, de uma questão que envolve a noção de territorialidade; e uma mudança de estratégia por parte das lideranças indígenas na atuação no comitê, que passam a privilegiar a ação nas câmaras técnicas em detrimento daquela nas câmaras consultivas pela possibilidade que as primeiras propiciam de um certo uso de práticas científicas como instrumento de luta.

Apresentação do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco

O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) é um órgão colegiado instituído por decreto presidencial de 2001 (Brasil, 2001), abrange os Estados de Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e o Distrito Federal. Segundo informações no próprio site, tem a missão de ?descentralizar o poder de decisão, integrar as ações públicas e privadas e promover a participação de todos os setores da sociedade nas questões referentes à gestão das águas da bacia do São Francisco?.

O Comitê é subdividido em quatro Câmaras Consultivas Regionais (CCRs), a saber, Alto, Médio, Submédio e Baixo. Esta pesquisa é focada na CCR da região do Submédio, que corresponde a 17% do território da bacia do São Francisco, abrangendo 25 municípios da Bahia e 59 municípios de Pernambuco. Determinei a pesquisa nessa subdivisão primeiramente porque é aquela da bacia com maior número de populações indígenas, mas principalmente porque atualmente todas as lideranças indígenas com cadeira de representação no comitê são de povos dessa região.

A estrutura organizacional do CBHSF compreende: Plenário, Diretoria Colegiada, Diretoria Executiva, Câmaras Consultivas Regionais e Câmaras Técnicas. No comitê há representação de diversos segmentos da sociedade, de indígenas e quilombolas aos representantes do agronegócio. Há no comitê também cinco membros permanentes com cadeiras cativas endereçadas a órgãos públicos: Ministério da Integração, do Meio Ambiente, da Justiça ? representado pela FUNAI ? de Minas e Energia e a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF).

O comitê realiza suas ações por meio de projetos apresentados pelos diversos segmentos que o compõem. Atualmente há uma chamada para projetos, os quais devem ser apresentados em datas estipuladas para serem discutidos e votados em plenárias trimestrais nas CCRs e em reuniões gerais semestrais, em que todos os membros da estrutura organizacional do comitê participam. Dessa forma, os projetos que atendem especificamente as causas dos povos indígenas concorrem com aqueles apresentados por outros segmentos do comitê, fazendo-se necessária uma articulação com outros segmentos para que determinados projetos sejam aprovados ou até mesmo meramente discutidos.

Um caso especial dentro do CBHSF são as Câmaras Técnicas (CTs), que têm atuação mais presente, tanto em suas discussões internas, na organização e viabilização de projetos, quanto na sua relação com outros setores do comitê, como, por exemplo, as CCRs, cujas reuniões demandam a presença das CTs para certas discussões e apresentações de projetos exatamente por seu caráter técnico-científico, como foi possível presenciar nas reuniões que acompanhei. Assim, as Câmaras Técnicas perpassam todas as atividades realizadas pelo CBHSF, pois são requeridas sempre que o enunciado técnico-científico é demandado, seja para legitimar projetos em fase de implantação, seja na solicitação de pesquisas, por exemplo, com objetivo de mapear a situação de determinada área. Como veremos, por ser a subdivisão legitimadora, baseada no enunciado científico, e exatamente por isso, as CTs vêm se tornado cada vez mais um espaço de luta que as lideranças indígenas se esforçam para ocupar.

Desde 2010, há também uma Entidade Delegatária, a AGB Peixe Vivo, que é responsável por administrar todos os recursos do Comitê, que advêm do repasse da Agência Nacional das Águas (ANA). Além de prestar o apoio técnico-operativo à gestão de recursos hídricos, mediante planejamento, execução e acompanhamento de programas, ações, projetos e pesquisas deliberadas pelo Comitê, a AGB Peixe Vivo apresenta objetivos específicos como: exercer a função de secretaria para o CBHSF; auxiliar o CBHSF no processo de decisão e gerenciamento da Bacia Hidrográfica, com avaliação de projetos e obras a partir de pareceres técnicos, realizando convênios e contratando serviços para execução de suas atribuições; auxiliar a implementação dos instrumentos de gestão de recursos hídricos na sua área de atuação, como, por exemplo, a cobrança pelo uso da água, plano de recursos hídricos e sistemas de informação.

Entendo como importante destacar aqui a presença da AGB Peixe Vivo, pois, segundo as lideranças indígenas com quem faço minha pesquisa, a delegação da administração do comitê para essa entidade trouxe novos entraves para as questões indígenas e demais populações tradicionais, já que sendo uma associação composta majoritariamente por empresas usuárias dos recursos hídricos da bacia e tendo o poder de emitir pareceres técnicos, tem hoje mais poder que muitos segmentos do próprio comitê. Já houve projetos de populações tradicionais impedidos de serem realizados por pareceres técnicos emitidos pela própria AGB Peixe Vivo, o que demonstra não apenas a força legitimadora do enunciado técnico-científico como também seu potencial de ação, que o transforma em instrumento de interesse entre os vários segmentos que compõem o CBHSF.

Apresentação dos Tuxá e alguns conflitos que fazem parte da vida desse povo

Os Tuxá ocupam atualmente quatro áreas: uma no Estado de Minas Gerais em Pirapora, uma no estado de Pernambuco, à margem direita do rio Moxotó, e duas no estado da Bahia, sendo uma no município de Ibotirama e outra no município de Rodelas. Essa separação é consequência direta da construção da hidrelétrica de Itaparica, realizada pela Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF) em 1988, que causou a inundação de grande parte do território Tuxá, incluindo as 30 ilhas que dele faziam parte, e aquela que era considerada a principal, a Ilha da Viúva, onde ocorriam os rituais, bem como a maior parte do plantio[3]. Após a inundação da Ilha da Viúva, os Tuxá foram removidos compulsoriamente para a nova cidade de Rodelas, construída para abrigar uma parcela dos ex-moradores das cidades inundadas. Por conta de desentendimentos entre os Tuxá em torno de questões da demarcação territorial envolvendo a CHESF e a FUNAI, houve essa separação indicada e apenas o grupo denominado Tuxá de Rodelas permaneceu próximo ao seu território tradicional, vivendo nos limites da nova cidade de Rodelas, onde está localizada a aldeia mãe, o maior dentre os aldeamentos Tuxá com cerca de 1500 indígenas.

Para se chegar a Rodelas (BA) é necessário pegar uma van particular na cidade de Petrolina (PE). A viagem se inicia por volta das 4 horas da manhã, há então uma peregrinação por todos os locais em que há passageiros a serem apanhados[4], após todos esses estarem na van, essa ruma para Belém do São Francisco, cidade pernambucana onde às 11 horas da manhã parte a única condução coletiva que chega à cidade de Rodelas. A viagem até Belém do São Francisco é toda realizada margeando o rio São Francisco, mas ainda do lado de Pernambuco. A van chega quase no horário de saída da condução, há tempo apenas para tirar as malas da mesma e subir no micro-ônibus que leva os passageiros para Rodelas. O estado de conservação do micro-ônibus que faz o trajeto Belém do São Francisco/Rodelas é precário, a situação da estrada de terra a ser percorrida torna-o mais evidente. Um cartaz escrito à mão com os preços a serem pagos pelos passageiros no caso de transporte de eletrodomésticos reforça aquela condução como única maneira de acesso a Rodelas na falta de um veículo próprio. O percurso é todo feito em estrada de terra, a primeira etapa deste segundo momento da viagem é também ainda em território pernambucano até chegar à balsa que atravessa o microônibus por sobre o rio São Francisco para terras baianas. Na travessia da balsa o assunto principal de todos os passageiros é o próprio rio, histórias de afogamentos, as condições das águas em outras travessias ou mesmo comentários sobre seus perigos e suas belezas. Após a travessia da balsa segue-se por mais umas três horas à jusante e, então, após aproximadamente doze horas da partida em Petrolina, chega-se em Rodelas. Essa dificuldade de transpor territórios a fim de se chegar a Rodelas me remete a certas questões apontadas por Cruz (2017) sobre aquilo que denomina ?levar a luz ao sertão?, ou seja, como os órgãos estatais construíram seus saberes sobre o sertão[5], e sobre os povos que nele vivem, a partir de um discurso cujos enunciados primordiais eram os de ?desenvolvimento?, ?civilização? e ?progresso?, em que ?levar a luz? remete tanto ao modelo energético do país quanto ao caráter colonizador dessa conquista dos sertões. As águas do rio acompanham todo o trajeto da viagem, é sempre o margeando que se avança na viagem sobre a terra seca.[6]

A aldeia mãe Tuxá de Rodelas fica em uma das extremidades do pequeno município de menos de oito mil habitantes. O único apartamento entre a aldeia e o restante da cidade é um extenso muro com três portões, que se encontram sempre abertos. Como me disse uma das lideranças indígenas com quem realizo a pesquisa, ?a aldeia mãe mais parece um condomínio fechado, sem lugar nenhum para plantar?, essa impressão se fez presente em mim desde então. Algumas coisas a amenizavam, como, por exemplo, a oca na praça central, utilizada para rituais como o Toré e outras festividades, o Centro Cultural do Povo Tuxá Aldeia Mãe, local de ?manutenção da cultura Tuxá?, segundo uma das lideranças, e também o Colégio Estadual Indígena Capitão Francisco Rodelas, cujo currículo escolar inclui tópicos relacionados à história e costumes indígenas, especialmente os Tuxá. Porém, se não se avistasse nenhum desses locais e não houvesse ninguém transitando, a aldeia em nada se diferenciaria do restante da cidade, seja na arquitetura e configuração das casas, seja nos paralelepípedos que formavam as ruas, sendo que a rua principal da aldeia é apenas a continuação da rua principal da cidade interrompida pelo muro.

Esse deslocamento compulsório dos Tuxá para esse novo território, causado pela construção da hidroelétrica, trouxe óbvias alterações nos modos de vida desse povo. Por exemplo, o plantio e a pesca, que antes garantiam a autossuficiência dos Tuxá não são mais possíveis na nova aldeia urbana, tanto por falta de terras para plantar, e mesmo pelas técnicas de plantio antes utilizadas pelos Tuxá, agora inviabilizadas[7], como também pela poluição do rio na área em que foram reassentados[8]. Mas não apenas isso, o fato da aldeia mãe Tuxá ser agora uma aldeia urbana transformou também as relações sociais desse povo. A proximidade da cidade trouxe, entre outras coisas, o capital para as relações Tuxá, sendo que muitos substituíram a pesca e o plantio que antes os faziam autossuficientes pela compra de alimentos e produtos na cidade.

Todas essas transformações na vida Tuxá tiveram como base enunciados como ?desenvolvimento?, ?progresso?, ?civilização?, conforme apontado acima. Sobre esse ponto, Felipe Tuxá, indígena nascido já na nova cidade de Rodelas e que concluiu em 2017 seu mestrado em antropologia, faz em sua dissertação uma ótima análise de como essa retórica desenvolvimentista serviu de base não apenas nas relações do Estado com as populações indígenas, mas com o próprio sertão enquanto categoria. A CHESF, companhia estatal responsável pela construção da hidroelétrica de Itaparica, se utilizou também dessa estratégia retórica no trato com os Tuxá quando das primeiras abordagens a esses até a remoção compulsória da Ilha da Viúva e demais territórios tradicionais. Reproduzo agora uma fala de Dinaman Tuxá, uma das lideranças indígenas junto a quem faço minha pesquisa.

Meu avô falava que o discurso deles [CHESF] era que nós íamos mudar para uma terra sem males, nós íamos ter tudo, ia ter terra, ia ter água, nossos animais garantidos. Tudo o que você imaginar de notícia boa ela disse que a gente ia ter. Que íamos ter uma vida muito melhor do que a que tínhamos lá. Mas de tudo que ela prometeu, ela fez tudo ao contrário, terra não deu, não demarcou a terra, não deu escola, não deu saúde, não trouxe nada, não trouxe casa de farinha, não trouxe nosso memorial, nem nossas peças tradicionais que tavam aterradas. Todo o acervo histórico que foi tirado daí (Ilha da Viúva) está em Pernambuco e em Salvador, até nossa tradição foi usurpada, foi roubada, nosso direito de permanecer com urnas funerárias, ossos nossos tão rodando por aí em museu, nossos indígenas tão sem sossego até hoje porque tão servindo de imagem de visitação pra branco ver [Referência à doação feita pela CHESF para museus] (Comunicação pessoal, 2018).

Outra estratégia utilizada pela CHESF após a remoção compulsória para a aldeia urbana em Rodelas foi a oferta de dinheiro para famílias Tuxá de forma separada, a fim de minguar a luta indígena, enfraquecendo-a pela inserção de rachas, separações no seio do próprio povo indígena, é daí que surgem os demais aldeamentos já citados.

Algumas famílias aceitaram receber terras em locais muito distantes e muito inferiores ao que teriam por direito. Assim, podemos considerar esse movimento de separação dos Tuxá por parte do poder estatal representado pela CHESF como um dispositivo de poder que dá suporte ao enunciado do ?desenvolvimento?. Há aqui um exemplo de como se dá historicamente a relação entre povos indígenas e companhias estatais.

Nessa situação surge também uma questão que é cerne de diversos problemas até hoje ao povo Tuxá. A CHESF, a fim de se eximir das responsabilidades, ofereceu uma quantia bem abaixo do valor necessário para a aquisição de terras que seriam por direito do povo Tuxá. A FUNAI em conjunto com as lideranças Tuxá da época resolveram aceitar o valor, que ficaria sob responsabilidade da própria FUNAI, bem como a aquisição das terras, porém, como aponta Uilton Tuxá, uma das lideranças indígenas, a FUNAI não tinha a expertise de trabalhar com aquisição de terras, apenas com a demarcação, o que causou atrasos e fez com que aquele valor que já era menor que o devido se desvalorizasse, tornando-se hoje, 30 anos depois, um quinto do valor necessário para a compra das terras, fazendo não só com que os Tuxá estejam ainda sem terras demarcadas, mas também eximindo a CHESF de qualquer responsabilidade legal.

Nesse ponto Uilton Tuxá destaca a necessidade de se fazer uma ?mea culpa?, que também pode ser aqui uma ?meia culpa?, posto que a FUNAI foi também parte das negociações. Segundo Uílton, a FUNAI se omitiu da negociação e as lideranças indígenas da época não tinham ?conhecimento político ou mesmo escolaridade suficiente? para discutir questões com órgãos estatais como a CHESF, que se valia dessas características para impor suas vontades.

Assim, estou tomando essa ?mea culpa? como uma crítica indígena, no sentido que Stuart Kirsch (2006) utiliza a expressão, ou seja, como uma avaliação que os próprios indígenas realizam de suas relações com o Estado e com os brancos e a partir da qual produzem suas estratégias de ação na relação com estes. Dessa crítica indígena surge então a noção de resistência, muito acionada pelas lideranças com quem faço minha pesquisa, e nesse ponto concordo novamente com Felipe Tuxá, quando esse diz:

Considero o termo resistência como crucial para a compreensão dos cotidianos indígenas [...] Falar em resistência é importante, mas não mais sob uma chave culturalista, a partir da qual resistir significaria uma luta por fazer as coisas como elas sempre foram feitas. A resistência tem que ser associada não à cultura como algo que se adquire ou perde, mas sim como um esforço de se manter vivo quando por séculos tentaram nos apagar e extinguir nossa existência (CRUZ, 2017, p. 32).

É nesse cenário que se inserem as novas lideranças indígenas dessa região.

Apresentação das lideranças

As duas lideranças indígenas com quem tenho me comunicado prioritariamente na pesquisa são Uílton Tuxá e Dinaman Tuxá, ambos atuam como representantes indígenas no Comitê de Bacia do São Francisco.

Uílton é, desde 2013, representante indígena na Câmara Consultiva Regional do Submédio, sendo esse seu segundo mandato, em que foi reeleito em votação ocorrida entre os povos indígenas que vivem no território da bacia. Chegou também a ser, de 2013 a 2016, coordenador geral da CCR submédio, se tornando o primeiro indígena a assumir essa função e, portanto, a fazer parte da Diretoria Colegiada, que abrange a Diretoria Executiva (Presidente, Vice-Presidente e o Secretário do Comitê) e os coordenadores de cada uma das quatro subdivisões indicadas. Uilton é também coordenador da Câmara Técnica de Comunidades Tradicionais (CTCT), responsável por planejar e organizar eventos voltados para as comunidades tradicionais, como o Seminário Indígena e o Seminário Quilombola. Esses encontros proporcionam aos representantes dos povos tradicionais formularem e apresentar reivindicações concretas aos representantes dos órgãos públicos ? federais ou estaduais ? presentes nesses seminários, bem como formular denúncias de atentados contra os direitos dessas comunidades e elaborar plataformas comuns de reivindicações.

Já Dinaman é doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e representante indígena em uma câmara técnica de caráter jurídico no CBHSF, a Câmara Técnica Institucional e Legal (CTIL), cuja função é elaborar estudos e formular propostas relativas a assuntos legais e jurídicos, bem como examinar as matérias encaminhadas por outras Câmaras Técnicas do CBHSF e coordenar a elaboração e alterações do regimento interno.

Ambos são representantes indígenas também em outros órgãos, como na FUNAI, na APOINME (Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do NE, MG e ES) e no CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente), no qual Dinaman, inclusive, é representante de todos os povos indígenas do Brasil por meio da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).

Tenho acompanhado a participação dessas lideranças no comitê, tanto em suas relações com os demais povos indígenas, a fim de definir as demandas a serem apresentadas, e suas articulações com outros segmentos do comitê como lideranças quilombolas, pequenos pescadores e pequenos agricultores, quanto em sua atuação propriamente dita, por meio do acompanhamento das reuniões do CCR submédio e das CTs das quais fazem parte, bem como analisando projetos por eles apresentados ou apoiados. A partir disso, passo para aqueles dois pontos de discussão já adiantados na introdução deste texto e que pretendo tratar como questões a serem pensadas em minha pesquisa.

A convergência das lutas: outras territorialidades

Por mais de duas décadas os Tuxá estiveram diretamente em negociação com a CHESF em uma tentativa de resolver o problema da compensação referente à Ilha da Viúva.[9] Por anos a negociação se arrastou e em 1998, por fim, a responsabilidade pela aquisição das terras Tuxá passou da CHESF para a FUNAI, que não o fez, conforme já destaquei anteriormente. No sentido de resolver a questão da terra Tuxá, o presidente

Lula emitiu em 2009 um decreto presidencial voltado à desapropriação de uma área de 4.328 hectares para o reassentamento Tuxá. Novamente nada foi feito e o decreto caducou. Em 2014, a então presidenta Dilma emitiu um novo decreto de desapropriação de uma área conhecida como ?Baixa do Penedo? para o reassentamento Tuxá, a FUNAI então criou um grupo de trabalho e designou técnicos responsáveis pelo levantamento em campo e a apresentação do relatório. Com o relatório e levantamento concluídos, tudo parecia se encaminhar para a demarcação, porém, como destacam Uitlon e

Dinaman, ?para nossa infelicidade?, o trâmite caiu nas mãos de Gilmar Mendes, ministro do STF, que emitiu uma liminar suspendendo os efeitos do decreto presidencial, acatando o Mandado de Segurança impetrado por vinte e um agricultores da região da área a ser ocupada pelos Tuxá. O decreto continua impugnado pela liminar e corre o risco de caducar caso não seja efetivado em breve.

Devido a essa ociosidade por parte do Estado que já dura trinta anos em demarcar as terras Tuxá, esses deliberaram um processo de retomada de suas terras tradicionais, sendo essa retomada uma auto-demarcação realizada nas terras de Surubabé, a aproximadamente dez quilômetros de distância da cidade de Rodelas, e, portanto, da atual aldeia urbana, e às margens do Opará. Tal retomada vem sofrendo represálias e exemplifica um dos mecanismos que as forças anti-indígenas mais se utilizam, a criminalização do movimento indígena, sendo esses acusados de formação de quadrilha, de dilapidação do patrimônio público e de organização criminosa contra o Estado.

Segundo os Tuxá com quem tive a oportunidade de conversar na ?aldeia da retomada?, como está sendo por eles chamada, a retomada de Surubabé é também uma retomada dos modos de vida deixados para trás após a inundação e a remoção compulsória para a nova aldeia, na cidade de Rodelas. Há tanto aquela busca pela autossuficiência Tuxá que existia antes da hidroelétrica, quanto uma retomada na forma de se relacionar com o rio e a terra. Após sete meses de retomada a revitalização da área é claramente visível, basta uma caminhada atenta por todo o território da retomada comparando-o às áreas que o circundam. Ainda que não seja o objeto central desta pesquisa, a demarcação das terras Tuxá auxilia a compreender melhor a questão que pretendo abordar agora, a saber, a convergência das lutas, que diz respeito à(s) certa(s) territorialidade(s).

Segundo Uilton Tuxá, ?o Estado não reconhece todos os povos indígenas porque o reconhecimento acarreta imediatamente a demarcação do território, que é declaradamente a principal pauta indígena?[10]. Assim, há um esforço por parte das lideranças para inserir a discussão da demarcação em todos os órgãos em que há representantes indígenas, inclusive no Comitê de Bacia do São Francisco, que é hoje o maior comitê de bacia do país e tem visibilidade internacional. Mas a questão indígena[11] é: de que forma inserir tal tema no comitê, posto que esse não tem legalidade para realizar demarcação?

A pauta da demarcação vem sendo inserida pelos representantes indígenas através principalmente da participação nas Câmaras Técnicas, as quais permitem, por sua atuação baseada em pesquisas, especializações e em procedimentos técnicocientíficos, que as lideranças indígenas desenvolvam, por exemplo, projetos de solicitações de pesquisas sobre questões referentes às suas próprias pautas. Um exemplo crucial foi uma pesquisa solicitada por Uilton, da CTCT, em conjunto com Dinaman, da CTIL, cujo objetivo era verificar quais as áreas de maior preservação ao longo de toda a bacia hidrográfica do São Francisco. O resultado da pesquisa técnica foi a constatação científica (e aqui uso a expressão ?científica? deliberadamente) de que as terras indígenas são as áreas de maior preservação e responsáveis pela maior revitalização ao longo de toda a bacia, superando inclusive as próprias Unidades de Conservação de responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente. Sendo que um exemplo é a própria retomada de Surubabé pelos Tuxá de Rodelas.

As Câmaras Técnicas que compõem o comitê vêm se mostrando, então, como mais um espaço de resistência, mas ela só pode se tornar esse espaço através da convergência dessas lutas, pela terra e pela água. Entendo que o esforço por parte das lideranças indígenas a fim de convergi-las é reflexo de (e resistência a) um processo deliberado de apartamento das possibilidades de engajamento nessas lutas empreendido pelos mecanismos e órgãos de poder estatais por meio dos e nos quais os indígenas podem realizar suas lutas no âmbito governamental, ou seja, novamente a separação como dispositivo de poder para enfraquecer a luta indígena, não mais a separação no seio do próprio povo apenas, mas a separação das possibilidades de atuação, a (possibilidade da) luta pela terra afastada da (possibilidade da) luta pela água. Diferentemente dessa concepção apartatória por parte do poder estatal, para os povos indígenas viventes nas calhas do Opará elas são uma única e indivisível luta, aquela pela sua forma de viver e que depende desse território, entendido aqui como o todo que propicia a efetuação de seu mundo, com todos os seres e elementos que o compõem. Pois o que pude começar a captar, a partir dessa ainda pequena vivência com as lideranças indígenas e outros Tuxá durante meu período na aldeia da retomada, é que terra e água são elementos, mas também meios nos quais habita um elevado número de seres[12] (pedras, plantas, peixes, encantados d?água, encantados da terra, entre outros) que compõem o mundo Tuxá, meios esses com limites não tão bem definidos assim entre si e cuja relação produz a maior parte da forma de viver Tuxá[13]. Assim, quando os povos indígenas são obrigados a prestar contas aos órgãos estatais, entre eles o próprio CBHSF, é com a lógica do contabilizável, do compartimentável, que eles têm que lidar: ?O comitê é para se discutir questões relacionadas à água, não questões de território, a não ser que seja de mata ciliar?[14]. Isso fica evidente logo na nomeação atribuída ao personagem principal do comitê, sendo que apenas uma delas forma o nome do órgão, evidenciando de qual perspectiva esse procede. São Francisco e Opará não são apenas nomeações distintas para o fluxo de águas que nasce no estado de Minas Gerais, corta o sertão nordestino e deságua no Oceano Atlântico, tais vocábulos manifestam diferentes territorialidades. Dessarte, entendo que uma das questões dessa pesquisa deve ser averiguar quais estratégias os viventes do Opará têm produzido em suas relações com os representantes do São Francisco para que esse mesmo Opará siga existindo.

Políticas indígenas da água: movimentos estratégicos

Começo esse ponto com um pequeno trecho da conversa que tive com Dinaman:

Há uma instância dentro do Ministério do Meio Ambiente que discute a revitalização do rio, mas não há representação indígena. Como é que se vai discutir revitalização do rio se os saberes dos povos tradicionais que poderiam estar contribuindo com isso não fazem parte do processo? Não há espaço para a participação dos indígenas nas estâncias de deliberação, apenas nos espaços consultivos. A gente luta, luta, luta e na hora de decidir não fazemos parte porque nos enxergam como entrave.

Conforme já dito, o CBHSF é o maior comitê de bacia do Brasil, e segundo Uilton, as câmaras de caráter consultivo, as CCRs, que o compõem são hoje muito menos um espaço de discussão do que uma vitrine política que vem servindo até mesmo para enriquecimento de empresas, pois muitas das terceirizadas que prestam serviços ao comitê hoje em dia são de ex-membros das CCRs, que conhecem de dentro a maneira como o comitê funciona, bem como as cifras que esse faz girar. Pelo fato das CCRs serem o ponto de ligação mais direto entre os segmentos da sociedade e os setores de atuação propriamente ditos do comitê, há nelas muito espaço para articulações políticas que, segundo Uilton, nem sempre, ou quase nunca, visam à melhoria de condições do Opará. A própria AGB Peixe Vivo, Entidade Delegatária responsável pela administração dos recursos do comitê foi formada por antigos membros das CCRs. Há também um processo de verticalização das decisões no espaço das CCRs, sobre o qual pude presenciar certas acusações nas próprias reuniões por parte dos representantes indígenas, quilombolas e dos pequenos pescadores.[15]

Com essa verticalização das CCRs e de sua transformação em vitrine política e de negócios, as lideranças indígenas começaram a perceber que poderiam realizar outros tipos de atuação nas denominadas Câmaras Técnicas, conforme já adiantado na questão da convergência das lutas, com aquelas passando a ter importância crucial na criação de novas condições de possibilidades de luta. Em consequência dessa nova possibilidade, Uilton desistiu de um cargo de secretário da CCR Submédio para concorrer à coordenação da Câmara Técnica de Comunidades Tradicionais (CTCT), em que foi eleito por maioria absoluta. Já Dinaman conseguiu cadeira na Câmara Técnica Institucional e Legal (CTIL). Essa movimentação estratégica em direção à atuação nas Câmaras Técnicas é deliberada e, portanto, compreendo-a também como fazendo parte da crítica indígena, que apontei anteriormente.

Foi, então, através da atuação nas Câmaras Técnicas, com sua linguagem, seus discursos e suas discussões todas embasadas em saberes científicos, que as lideranças indígenas conseguiram solicitar a pesquisa mencionada acima, que comprovou a maior preservação das áreas indígenas em relação a qualquer outra na bacia do São Francisco, constatação (científica) que está sendo utilizada como instrumento de luta pela demarcação de terras indígenas nas margens do São Francisco em diversos outros órgãos de atuação. Então, pretendo pensar como a luta por território[16], ou melhor, por uma territorialidade vêm utilizando saberes e práticas científicas, a partir de uma crítica indígena de suas próprias relações com os brancos e com o poder estatal. Nesse ponto entendo como essencial as questões colocadas por Stengers (2003) de abordar a Ciência não como entidade autônoma e transcendente, mas sim as práticas científicas, o próprio fazer da ciência. Pois foram também práticas científicas que embasaram, por exemplo, a expulsão dos Tuxá de suas terras tradicionais, penso aqui naquelas práticas científicas relacionadas ao modelo energético do país, em que as hidroelétricas são o carro chefe, e que embasaram os enunciados de ?progresso? e ?desenvolvimento?, responsáveis pela expulsão de inúmeras populações, não apenas indígenas, de seus territórios tradicionais. O trabalho de mestrado[17] de Dinaman Tuxá, por exemplo, leva o título Os índios Tuxá na rota do desenvolvimento: violações de direitos, no qual faz uma petição direcionada à OEA e à ONU apontando todos os direitos violados quando da construção da hidroelétrica de Itaparica. Pensando então no movimento apontado por Stengers (2018), de colocar as ?ciências na política?, é no mínimo curioso que essas lideranças indígenas do nordeste brasileiro venham realizando esse movimento deliberadamente.

Como fica claro nessa passagem do trabalho de Dinaman Tuxá:

Especialmente nos últimos anos, inúmeros indígenas Tuxá, das mais diversas áreas, adentraram nas universidades, no intuito de atuar diretamente nas problemáticas geradas pelo modelo hegemônico, caracterizado pela expropriação de terras indígenas. [...] Com várias estratégias para continuar existindo como grupo indígena e se autodeterminar como donos de nosso destino, a geração de indíos Tuxá da qual faço parte (nascidos na nova cidade), se lançou atualmente em um projeto de busca pela educação formal, pelo acesso às universidades e ao domínio dos códigos do conhecimento científico dos brancos. Na verdade, reputo que esse projeto é um movimento geral entre os povos indígenas. É fruto de algo que nós povos indígenas percebemos no contato interétnico com a sociedade ocidental: o poder do papel e a eficácia dos discursos científicos. (VIEIRA, 2016, p. 9)

É essencial notar que há a entrada indígena na universidade por questões de interesses individuais, de oportunidade de trabalho ou por outros motivos que correspondem a questões que não dizem respeito diretamente ao que estou tentando pensar neste caso, mas há também a entrada na universidade com objetivos que são deliberadamente políticos, como próprio Dinaman indica um pouco mais a frente: ?Diante de tamanho sofrimento, fui designado pelas lideranças de meu povo a prestar vestibular para o curso de Direito? (Vieira, 2016, p. 9, grifo meu). Hoje, como já apontado acima, Dinaman faz parte da câmara técnica jurídica, a CTIL, do CBHSF e é também o representante jurídico do povo Tuxá.[18]

Há, portanto, na crítica indígena uma estratégia de apreender, como disse Dinaman, ?o domínio dos códigos do conhecimento científico dos brancos?, mas a questão principal, penso eu, é não tratar essa estratégia como uma forma de cooptação dos indígenas pela Ciência, modo de saber basilar do Ocidente, mas sim de verificar como essas lideranças indígenas vêm se utilizando de certas práticas científicas para que seus povos continuem existindo, ou pelo menos continuem existindo como indígenas e não se transformando em brancos de classe baixa[19]. Será que essas práticas científicas estão sendo utilizadas da mesma forma como, por exemplo, os órgãos estatais do setor energético do país as utilizam? Creio que não, e ainda, o próprio uso que se faz dos saberes científicos é inerente à prática científica, como Foucault (2014) já demonstrou, logo, esse uso é que precisa ser analisado. No CBHSF isso fica evidente quando grande parte das discussões se dão no âmbito do discurso científico, e mesmo os projetos encaminhados pelas lideranças indígenas precisam desse embasamento para serem considerados realizáveis. Há sim uma hegemonia do saberes científicos, mas me interessa mais os usos que se fazem desses, pois trazendo novamente a noção de colocar as ?ciências na política? (Stengers, 2018), a questão aqui é saber quais as micropolíticas entremeadas nas práticas científicas, nesse caso a partir do uso que é feito por essas lideranças indígenas, que vêm procurando se reintroduzir de outras maneiras nas relações de saber/poder, ou ainda, rearticulando seus saberes e práticas a fim de criar para si novas ?condições de possibilidades?. Assim, colocando a ?ciência na política?, e tendo como base a convergência das lutas, ou da luta indígena, a partir dessa crítica indígena, como procurei demonstrar, procuro verificar como essa participação no comitê de bacia, que é um órgão específico para se tratar a questão das águas do São Francisco, vem se tornando uma maneira de produzir e efetuar o que estou tratando como ?políticas indígenas da água?, ou ainda, ?políticas do Opará?, pois para as lideranças indígenas, me parece, trata-se de produzir estratégias para que as políticas efetuadas no comitê para o São Francisco não prejudiquem e, se possível, convirjam com aquelas para o Opará. Mas essas políticas referidas entre aspas acima poderiam mesmo ser tratadas como políticas indígenas da vida, pois extrapola a questão de território para se tornar uma questão de territorialidade, para se tornar uma questão de vida, pois conforme Dinaman frisou tantas vezes: ?Se o Opará morrer, os povos indígenas também morrem?.

Material suplementar
Bibliografia
ALMEIDA, M. W. B. Caipora e outros conflitos ontológicos. Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.7-28, 2013.
BRASIL. Lei nº 9.605 de 1998: Dispões sobre as sanções penais e administrativas derivadas de leis de crimes ambientais, condutas e atividades lesivas ao meio ambiente (Lei dos Crimes Ambientais). 1998.
BRASIL. Decreto n. 9.433, de 5 de junho de 2001. Institui o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, localizada nos Estados de Minas Gerais, Goiás, Bahia,
Pernambuco, Alagoas, Sergipe e no Distrito Federal, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, DF, 6 jun. 2001. Seção 1, p.1
CRUZ, F. S. M. ?Quando a terra sair?: os índios tuxá de rodelas e a barragem de Itaparica: memórias do desterro, memórias da resistência. 2017. 143 f., il. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade de Brasília, Brasília, 2017.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder.Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2014.
KIRSCH, S. Reverse anthropology: indigenous analysis of social and environmental relations in New Guinea. Stanford: Stanford University Press, 2006.
MORAWSKA, C. V. Os Enleios da Tarrafa: etnografia de uma relação transnacional entre ONGs. São Paulo: Edufscar, 2014.
STENGERS, I. Cosmopolitiques I. Paris: Éditions La Découverte, 2003.
STENGERS, I. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros,n. 68, p. 442-464, 2018.VIEIRA, A. F. J. Os índios Tuxá na rota do desenvolvimento: violações de direitos. Exame de qualificação (Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT)) - Universidade de Brasília, Brasília, 2016.
VIVEIROS DE CASTRO, E. Etnologia brasileira. In O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). (Org.). MICELI, S., São Paulo: ed. SUMARÉ/ANPOCS, p. 109-223, 1999.
Notas
Notas
[1] Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília. Antônio Fernandes de Jesus Vieira é Dinamam Tuxá, uma das lideranças interlocutoras da pesquisa que está sendo realizada pelo coautor, Gustavo Ramos, com vistas a elaboração de sua dissertação de mestrado. As normas de publicação científica (não só da revista ARGUMENTOS) provocaram uma situação/oportunidade instigante no sentido de refletir com sinceridade como é o ?fazer da ciência?, visto que a situação de mestrando impediria a publicação do mesmo, posto que a revista aceita apenas textos de autores com o título mínimo de mestre, a saída encontrada foi o convite a Dinamam a participar como autor principal do texto. A relação entre os autores é também abordada em outra nota de rodapé do texto (nota 17). O ponto principal que esse fato deve manifestar é a legitimação da pesquisa e dos argumentos apresentados aqui, posto que Dinamam, um indígena-autor ou autor-indígena, a depender da situação, realizou a leitura do texto e concordou com todos os pontos apresentados. É preciso ainda enfatizar que a impossibilidade de contar com a mão de Dinamam na feitura do texto se explica pelo assunto principal que o permeia, a luta das lideranças indígenas, o tempo despendido por Dinamam para sua atuação como lideranças, não apenas do povo Tuxá, mas de inúmeras populações indígenas, tendo em vista sua atuação na APIB, por exemplo, o impossibilitou de colocar suas contribuições na forma escrita, o que alimentaria incomensuravelmente a qualidade do texto que aqui está. De toda forma, o aval de Dinamam, legitimado pela sua aceitação em participar como primeiro autor, representa que a antropologia pode sim compor lutas conjuntas com os atores para os quais se volta em sua pesquisa. Para mim, Gustavo Ramos, é uma honra o aceite de Dinamam, demonstrando que estou seguindo por um caminho interessante em minha pesquisa. Aproveito, então, para agradecer a Dinamam, como interlocutor na posição de lideranças e pela parceira na autoria.
[2] Mestrando em Antropologia Social no PPGAS/UFSCAR. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
[3] É importante salientar que na época da construção da hidroelétrica os Tuxá já habitavam apenas a Ilha da Viúva, sendo que as demais ilhas que faziam parte de seu território haviam sido tomadas por grandes agricultores, que os expulsaram via violência armada.
[4] É necessário combinar com o motorista, o que é feito normalmente por telefone, determinando o local exato em que cada passageiro deve ser apanhado.
[5] O próprio termo ?sertão? e sua carga semântica são discutidos por Cruz (2017).
[6] É importante notar que este trajeto, só que no vetor contrário, de Rodelas a Petrolina, é realizado pelas lideranças indígenas todas as vezes que há reuniões ou trabalhos a serem feitos na CCR Submédio, cuja sede está fixada em Petrolina.
[7] Como é o caso do modo de plantio de vazantes, praticado anteriormente nas ilhas em que viviam. A vazão no lago formado quando da construção da hidroelétrica é de controle da própria CHESF, que é, por isso, referida pelos Tuxás como um monstro que pensa que é Deus, posto que controla o nível das águas do Opará como bem entende, impossibilitando suas práticas de plantio e privando-os da possibilidade de uma autossuficiência, como ocorria até então.
[8] O que impossibilita outra atividade essencial para a autossuficiência Tuxá, a pesca. Sobre essa prática, o povo Tuxá, bem como os demais povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas que vivem nas ?calhas? do São Francisco, sofrem com a falta de peixes causada pelo tipo de pesca empreendida pelos grandes pescadores, que envolve a pesca com grandes redes, as quais muitas vezes tomam quase toda a largura do rio, tornando escassas muitas espécies e infringindo a legislação regulatória da atividade pesqueira, ao realizá-la na época da piracema (Brasil, 1998).
[9] Importante destacar, durante toda a negociação nunca se discutiu a respeito da perda de todas as ilhas que compunham o território tradicional, apenas aquele referente à ilha citada.
[10] Comunicação pessoal, 2018.
[11] No sentido de uma questão por eles próprios, os indígenas, formulada. Há uma abismal diferença entre a questão indígena formulada pelo Estado e as questões indígenas formuladas pelos próprios (Viveiros de Castro, 1999).
[12] Sendo o próprio Opará um tipo de ser.
[13] É fundamental destacar que o território Tuxá anterior ao contato com o homem branco era composto por aproximadamente 30 ilhas ao longo de um extenso trecho do Opará, o que exacerba a relação terra/água na composição de mundo Tuxá.
[14] Frase proferida após a fala de Uilton Tuxá em uma das reuniões do CCR Submédio. Não foi possível identificar o segmento ao qual o locutor pertence, porém pelo teor da fala é possível identificar com certa clareza a quais segmentos ele não pertence.
[15] Mesmo apontando tais problemas, Uilton destaca algumas conquistas de sua gestão quando coordenador da CCR, entre elas os Planos de Saneamento, totalizando doze planos em sete cidades da Bahia e cinco do Pernambuco, planos esses que influenciam diretamente na revitalização das águas do rio. Outra conquista de Uílton, apesar da contrariedade de diversos segmentos do comitê e até da própria AGB, que chegou a emitir parecer técnico contrário ao projeto, foi a adutora para captação de água para o povo indígena Pankará de Itacuruba (PE). Uilton indica que perdeu muito tempo resgatando projetos que haviam sido aprovados na gestão anterior, mas estavam sendo boicotados por segmentos do comitê e pela própria AGB, em sua esmagadora maioria projetos referentes às populações tradicionais, que eram negligenciados em favor de projetos que atendiam aos interesses de segmentos como os grandes agricultores, grandes pescadores e a própria CHESF.
[16] Que não é genérico, mas deve ser compreendido como abarcando os inúmeros elementos e seres que produzem as ?composições de mundo? (Morawska, 2014) dos povos indígenas da região.
[17] Faz-se essencial destacar que uma das lideranças indígenas com quem realizo a pesquisa, Dinaman, é também produtor de saber no âmbito acadêmico e cuja dissertação de mestrado é fonte de pesquisa para o trabalho que aqui empreendo, e também que outra dissertação de mestrado que utilizo nesse diálogo é de um antropólogo Tuxá, ou um Tuxá antropólogo. Essa questão deverá ser trabalhada em minha dissertação, mas não entendo aqui como o momento para aprofundar a questão para além do que está aqui colocado.
[18] Muito embora nessa última função tenha sido muitas vezes impedido de atuar como tal pelo Estado, que entende que os povos indígenas devem ser sempre representados pela FUNAI, mesmo após a garantia da autorrepresentação jurídica aplicada na constituição de 1988.
[19] ?Existir deixa aqui de ser um pressuposto dado para um coletivo, mas passa a ter o caráter de resultado de uma interação problemática? (Almeida, 2013).
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