Artigos

A MORALIDADE DO PATRIARCADO RURAL ENRAIZADA NO BRASIL: UMA LEITURA DE GILBERTO FREYRE E SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

THE MORALITY OF RURAL PATRIARCHY ROOTED IN BRAZIL: A READING BY GILBERTO FREYRE AND SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

Eduardo Barbuto BICALHO
UFF, Brasil

Revista Augustus

Centro Universitário Augusto Motta, Brasil

ISSN-e: 1981-1986

Periodicidade: Trimestral

vol. 25, núm. 50, 2020

revistaaugustus@unisuam.edu.br

Recepção: 18 Fevereiro 2020

Aprovação: 28 Fevereiro 2020



DOI: https://doi.org/10.15202/1981896.2020v25n50p173

Resumo: Desde a Antiguidade, as relações familiares basearam-se na superioridade do homem face à mulher e os filhos, o que foi acentuado pela cultura cristã que prevaleceu nas civilizações ocidentais durante toda a Idade Média. Tais valores foram estabelecidos no Brasil desde o início do período colonial. Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda analisam a formação da identidade nacional brasileira e descrevem a instituição da família patriarcal rural e cristã como base econômica e social da ordenação social brasileira, demonstrando o enraizamento da moralidade proveniente desse núcleo familiar e a permanência desses valores na contemporaneidade. O presente trabalho, mediante análise bibliográfica das principais obras dos referidos autores, bem como de textos de outros autores e comentadores, pretende explorar possíveis reflexos e desdobramentos dessa moralidade enraizada na cultura brasileira.

Palavras-chave: Patriarcado brasileiro, Conservadorismo, Padrões Morais, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda.

Abstract: Since antiquity, family relationships have been based on the superiority of man towards his wife and children,which was accentuated by Christian culture that prevailed in Western civilizations throughout the Middle Ages.These values have been established in Brazil since the beginning of the colonial period.Gilberto Freyre and SérgioBuarque de Holanda analyze the formation of Brazilian national identity, demonstrating the rooting of morality from this family nucleus and the permanence of these values in contemporaneity.The present work, through bibliographic analysis of the main works of these authors, as well as texts by other authors and commentators,aims to explore possible reflections and unfolding of this morality rooted in Brazilian culture.

Keywords: Brazilian patriarchy, Conservatism, Moral Standards, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo analisar a descrição do patriarcado brasileiro realizada por dois autores do pensamento social do Brasil: Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, de modo a verificar como tais autores percebem a formação e o desenvolvimento do patriarcalismo no país, bem como possíveis desdobramentos e consequências deste modo de organização social nos dias atuais.

Com efeito, as obras “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre e “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, pretendem trazer informações acerca da formação da identidade nacional e cultural brasileiras. Ainda que não possamos tratar como verdadeiras todas as proposições dos referidos autores, uma vez que as obras consistem em leituras individuais sobre a realidade brasileira, fato é que são análises relevantes para a estruturação do pensamento social brasileiro. Isso porqueas obras mencionadas tornaram-seclássicos da literatura sociológica brasileira, estudadas por diversos outros pesquisadores até os dias atuais, tendo, inclusive, contribuído com a própria ideia de Brasil que permeia o imaginário coletivo dos brasileiros.

O presente trabalho se desenvolverá a partir da análise da cultura europeia ocidental, católica e patriarcal, que desembarca no Brasil no ano de 1500, passando pelafase inicial da colonização brasileira e, em seguida, pela estruturação da economia colonial sobre os pilares da monocultura de exportação, tendo a família patriarcal rural como unidade básica da sociedade em formação, conforme as descrições de Gilberto Freyre.

Após, será analisada a visão de Sérgio Buarque de Holanda a respeito da transição do poder das propriedades rurais para as cidades decorrente do processo de industrialização, dos novos setores urbanos que cresciam, marcadamente em decorrência da transferência da Corte Real Portuguesa para o Brasil em 1808 e do fim do tráfico negreiro. Verificar-se-á que Holanda demonstra a continuidade dos padrões morais desenvolvido na família patriarcal rural e a transferência dos mesmos valores para a vida urbana na virada do século XIX para o XX.

Por fim, far-se-á uma relação entre tais padrões morais enraizados na estrutura social brasileira e seus reflexos e desdobramentos ao longo século XX e até os dias atuais, de modo a demonstrar que, mesmo no Brasil pós Constituição de 1988, que deveria pautar-se pela dignidade humana como principal valor a ser concretizado pelo Estado, o conservadorismo enraizado culturalmente, no que se refere à comportamental, impede ou dificulta as discussões e efetivações de inúmeras pautas de políticas identitárias que vêm se intensificando ao longo das últimas décadas.

2 A IMPORTAÇÃO DO PATRIARCADO PARA O BRASIL COLONIAL

O patriarcalismo não se iniciou no latifúndio colonial brasileiro, pelo contrário, as culturas ocidentais, de forma geral, desde os tempos greco-romanos, construíram suas sociedades tendo figura do homem como o centro da família e ditador das regras a serem seguidas pelos outros componentes do grupo familiar.

Ressalta-se que, mesmo na democracia grega, a mulher não participava da política, não era sequer cidadã da polis, sendo considerada inferior ao homem e sujeita a seus comandos. Conforme vemos pela transcrição a seguir, a estrutura familiar já era patriarcal naquela época:

“Vimos que o governo doméstico divide-se em três partes ou poderes: o do senhor, do qual acabamos de tratar, o do pai e o do marido. O chefe da casa governa sua mulher e seus filhos como a seres livres, mas não da mesma maneira: relativamente à sua mulher, o poder é político, e relativamente a seus filhos, o poder é o de um rei. Pois, embora haja exceções antinaturais, na ordem natural o macho é mais talhado para o comando que a fêmea, do mesmo modo que o mais velho, que atingiu o seu desenvolvimento completo, é superior ao mais jovem e imaturo. (...) A relação de superioridade do macho para com a fêmea é permanente, independentemente da idade da mulher; enquanto o poder dos pais sobre os filhos é um tipo de realeza, em que se juntam a autoridade afetuosa e a da idade.” (ARISTÓTELES, 2006, p. 74).

Após o advento do Cristianismo, a mulher deixa de ser considerada mero objeto, de propriedade do homem, mas ainda se situa em posição inferior, tendo como função quase que exclusiva a reprodução e a criação dos filhos. Cabe ressaltar, nesse ponto, a visão cristã do sexo unicamente como forma de procriação, multiplicação da espécie. Nesse sentido, Russell nos informa sobre a situação de superioridade masculina nas antigas sociedades agrícolas na era cristã:

“Nas antigas sociedades agrícolas e pastoris, tanto as esposas como as crianças representavam um ativo econômico para os homens. As esposas trabalhavam para ele, e as crianças, após os 5 ou 6 anos de idade, começavam a ser úteis no campo ou no trato dos animais. Em consequência, o objetivo dos homens mais poderosos era ter a maior quantidade possível de esposas. (...) Assim, a função principal da esposa vem a ser de um lucrativo animal doméstico, e sua função sexual se torna secundária.

(...)

Com a chegada do cristianismo, essa visão mudou. O elemento religioso do casamento ganhou um enorme projeção, e as violações da legislação matrimonial passaram a ser denunciadas com base no tabu e não na propriedade. (...) Embora sob certos aspectos o cristianismo tenha piorado a situação da mulher, sobretudo nas classes abastadas, ele ao menos reconheceu sua igualdade teológica com os homens, recusando-se a considerá-las como propriedade absoluta dos maridos.” (RUSSELL, 2015, p. 102-104).

Apesar de não ser mais considerada propriedade do homem, contudo, os papéis sociais continuaram sendo exercidos de forma bastante definida, sendo imposto às mulheres apenas os trabalhos domésticos e de criação dos filhos, não podendo atuar politicamente, votar, liderar etc. Basta lembrar que, mesmo nos regimes liberais democráticos, o voto feminino somente foi conquistado após muitas lutas, sendo conquistado, no Brasil, somente em 1932, pelo Decreto 21.076/1932. (BRASIL, 1932).

Assim, consolidou-se no mundo ocidental o modelo de família preconizado pela Igreja Católica e também pelas vertentes protestantes: a família heterossexual com filhos, tendo o sexo finalidade unicamente reprodutiva e o homem assumindo o papel de “chefe” do lar, provedor e senhor dos destinos de sua mulher e seus filhos.

Entre os portugueses não era diferente. Portugal era um país extremamente católico, conservador em matéria comportamental. Gilberto Freyre aponta que, na colonização do Brasil, ser católico era mais importante que ser português, europeu ou de raça branca, como vemos na seguinte transcrição:

“O Brasil formou-se, despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza de raça. Durante quase todo o século XVI a colônia esteve escancarada a estrangeiros, só importando às autoridades coloniais que fosse de fé ou religião católica. Handelmann notou que para ser admitido como colono do Brasil no século XVI a principal exigência era professar a religião cristã: ‘somente cristãos’ – e em Portugal isso queria dizer católicos – ‘podiam adquirir sesmarias’. ‘Ainda não se opunha todavia’, continua o historiador alemão, ‘restrição alguma no que diz respeito à nacionalidade: assim é que católicos estrangeiros podiam emigrar para o Brasil e aí estabelecer-se f...].’ (...) O perigo não estava no estrangeiro nem no indivíduo disgênico ou cacogênico, mas no herege.” (FREYRE, 2003, p. 91).

Nesse sentido, Gilberto Freyre salienta que a situação do colonizador no Brasil, por mais que houvesse uma variedade aparente de etnias e crenças, havia uma unidade, que se baseava na organização política e jurídica do Estado unido à Igreja Católica (FREYRE, 2003, p. 45). No tocante ao aspecto jurídico, era possível verificar que o ordenamento vigente em Portugal era quase que inteiramente baseado nas ordenações Manoelinas, com base no Direito Canônico. Os delitos mais graves eram aqueles que atentavam contra a fé católica, muito em consequência das guerras travadas contra os mouros. Gilberto Freyre esclarece que:

“A lei de 7 de janeiro de 1453, de D. Dinis, diz-nos o general Morais Sarmento, que ‘mandava tirar a língua pelo pescoço e queimar vivos os que descriam de Deus ou dirigiam doestos a Deus ou aos Santos”; e por usar de feitiçarias “per que uma pessoa queira bem ou mal a outra...”, como por outros crimes místicos ou imaginários, era o português nos séculos XVI e XVII ‘degredado para sempre para o Brasil’. Em um país de formação antes religiosa do que etnocêntrica, eram esses os grandes crimes bem diversa da moderna, ou da dos países de formação menos religiosa, a perspectiva criminal.” (FREYRE, 2003, p. 82).

Assim, podemos concluir que foi este o pensamento que desembarcou no Brasil no ano de 1500: católico, patriarcal, conservador, que já predominava na cultura europeia ocidental, segundo o qual a mulher estava em posição subordinada ao homem e que o papel deste era o de formar uma família para procriar, comandar, proteger e prover.

Nas próximas linhas, iremos visitar o pensamento de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, analisando suas descrições sobre a forma como família patriarcal rural católica prosperou no Brasil colonial e mesmo após a independência, tendo em vista que a se tornou a unidade básica da estrutura social brasileira.

3 GILBERTO FREYRE E A IMPORTÂNCIA DA FAMÍLIA PATRIARCAL RURAL NO PERÍODO COLONIAL

Antes de se iniciar a análise de Casa-Grande & Senzala, vale ressaltar a descrição de Paulo Prado sobre os primeiros tempos da colonização. Segundo ele, não havia instituições em solo brasileiro, nem mesmo a instituição familiar havia se consolidado. Era um período de experimentações dos portugueses que chegavam ao Brasil, bem como de interações com a cultura indígena que aqui se encontrava.

Era essa a sociedade informe e tumultuaria que povoava o vasto território cem anos depois de descoberto. Do Pará até Cananéia poucos estabelecimentos se desenvolviam, em meio de desertos desolados. Habitavam-no cinco condições de gente, informa o autor dos Diálogos, testemunha de vista: os marítimos, os mercadores, os oficiais mecânicos, os salariados, os proprietários rurais, — uns, simples lavradores de mantimentos ou criadores de gado, e outros, ricos, senhores de engenho. A camada inferior da população era formada por escravos, indígenas, africanos ou seus descendentes. Caracterizava o europeu o desamor à terra, aquilo que o nosso historiador chamou de transoceanismo: o desejo de ganhar fortuna o mais depressa possível para a desfrutar no além-mar.

(...)

Eram certamente os que constituíram a estrutura básica racial, os primeiros colonos — degredados, desertores, náufragos — gente da Renascença, que o crime, a ambição ou o espírito aventureiro fizera abandonar a Europa civilizada. Apresentavam um produto humano fisicamente selecionado, tendo resistido aos perigos, tribulações e sofrimentos da longa e incerta travessia.

(...)

Por outro lado, nenhum obstáculo encontravam para a satisfação dos vícios e desmandos que na Europa reprimiam uma lei mais severa, uma moral mais estrita e um poder mais forte. Entregavam-se com a violência dos tempos à saciedade das paixões de suas almas rudes. (PRADO, 1981, p. 43-44).

Interessante ressaltar a descrição de Paulo Prado sobre a mulher nesse período inicial, marcadamente pela subordinação feminina tanto na cultura europeia quanto na cultura indígena e como tal característica se manteve no período colonial, mesmo após a consolidação da família rural.

De fato, só o macho contava. A mulher, acessório de valor relativo, era a besta de carga, sem direitos nem proveitos, ou o fator incidental na vida doméstica. Fenômeno androcêntrico, de origem portuguesa e indígena, que por tanto tempo perdurou na evolução étnica e social do país. (PRADO, 1981, p. 45).

Após esse período, as mulheres portuguesas começaram a vir para o Brasil e com o advento da economia baseada na cana-de-açúcar, formaram-se os engenhos, que eram comandados pelo senhor de engenho. Assim, durante muitos anos o Brasil vivenciou certa continuidade no tocante à sua estrutura social, qual seja: o estabelecimento da família patriarcal rural, com a economia baseada no latifúndio, na monocultura e no escravismo.

Gilberto Freyre, na obra Casa-grande & Senzala, descreve a sociedade patriarcal rural como a base da organização social e econômica do Brasil colonial. As cidades eram secundárias em importância e poder. A grande propriedade rural ditava as ordens, centralizando na figura do grande proprietário de terras o poder sobre todos os que se encontravam em seus domínios, incluindo mulher, filhos, familiares agregados, empregados livres, escravos, animais, a produção rural e a própria terra.

Segundo ele, assemelhava-se a um regime feudal. O latifundiário possuía o poder sobre a vida e morte das pessoas. Atuava como legislador, julgador e executor de seus comandos. Ditava as ordens, o comportamento e os destinos de todos. Não havia poder, nem do governo central da metrópole nem da Igreja, que suplantasse o dos senhores.

“A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América. Sobre ela o rei de Portugal quase reina sem governar. Os Senados de Câmara, expressões desse familismo político, cedo limitam o poder dos reis e mais tarde o próprio imperialismo ou, antes, parasitismo econômico, que procura estender do reino às colônias os seus tentáculos absorventes.” (FREYRE, 2003, p. 40).

Assim, tudo se desenvolvia sob as ordens do patriarca. A propriedade produzia seus próprios bens de consumo, havia um comércio interno, havia seu próprio capelão e igreja, empregados livres, agregados de todo tipo e escravos. Sérgio Buarque de Holanda também descreve esse período:

Nos domínios rurais, a autoridade do proprietário de terras não sofria réplica. Tudo se fazia consoante sua vontade, muitas vezes caprichosa e despótica. O engenho constituía um organismos completo e que, tanto quanto possível, se bastava a si mesmo. Tinha capela onde se rezavam as missas. Tinha escola de primeiras letras, onde o padre-mestre desasnava meninos. A alimentação diária dos moradores, e aquela com que se recebiam os hóspedes, frequentemente agasalhados, procedia das plantações, das criações, da caça, da pesa proporcionadas no próprio lugar. Também no lugar montavam-se as serrarias, de onde saíam acabados o mobiliário, os apetrechos do engenho, além da madeira para as casas: (...) (HOLANDA, 2014, p. 94).

Ricardo Benzaquen, ao estudar a obra de Gilberto Freyre, também nos traz importantes informações acerca da visão, contida em Casa-Grande & Senzala, sobre essa constituição feudal das propriedades rurais brasileiras.

É interessante notar que, nesta citação, reaparece um tema discutido em CGS, o do caráter feudal de que se revestiu a colonização portuguesa no Brasil. Este feudalismo, porém, precisa ser duplamente qualificado: primeiro porque, como já foi examinado, ele privilegiava a autarquia em detrimento da vassalagem, adquirindo um aspecto singularmente anárquico; além disso, como Gilberto indica na página 38 de SM, aquela independência dos “senhores rurais” não parece ter se originado única e exclusivamente da hybris e conseqüentemente da indisciplina que distinguiam o português, visto que “nisso os favoreceu por longo tempo a Coroa, interessada nos lucros dos grandes proprietários e necessitando deles e de seus cabras e índios de arco e flecha, para a segurança da colônia, contra as tentativas de invasão de estrangeiros” (idem, p. 38). (ARAÚJO, 1994, p. 110-111).

Outra questão importante da colonização do Brasil é a influência do catolicismo, principalmente por meio da Companhia de Jesus. De fato, a unidade territorial e cultural do Brasil talvez não tivesse êxito não fosse pelos jesuítas, os quais foram capazes de percorrer e se estabelecer pelo vasto território e formar uma conformação no aprendizado e na difusão da fé católica. Nesse sentido, esclarece Freyre:

“Os jesuítas foram outros que pela influência do seu sistema uniforme de educação e de moral sobre um organismo ainda tão mole, plástico, quase sem ossos, como o da nossa sociedade colonial nos séculos XVI e XVII, contribuíram para articular como educadores o que eles próprios dispersavam como catequistas e missionários. Estavam os padres da S. J. em toda parte; moviam-se de um extremo ao outro do vasto território colonial; estabeleciam permanente contato entre os focos esporádicos de colonização, através da ‘língua-geral’, entre os vários grupos de aborígenes. Sua mobilidade, como a dos paulistas, se por um lado chegou a ser perigosamente dispersiva, por outro lado foi salutar e construtora, tendendo para aquele ‘unionismo’ em que o professor João Ribeiro surpreendeu um das grandes forças sociais da nossa história.” (FREYRE, 2003, p. 45).

A fé católica, portanto, atuou como elemento integrador do país, principalmente em termos culturais, consolidando em terras brasileiras os padrões morais católicos como regras de conduta a serem observadas por todos. Nas palavras de Gilberto Freyre: “Daí ser tão difícil, na verdade, separar o brasileiro do católico: o catolicismo foi realmente o cimento da nossa unidade.” (FREYRE, 2003, p. 45-46).

Citando Sílvio Romero, Freyre ressalta que foram o catecismo dos jesuítas e as Ordenações do Reino que “garantiram desde os primórdios a unidade religiosa e a do direito.” (FREYRE, 2003, p. 46).

Sobre a participação dos jesuítas na colonização, vale também mencionar a contribuição de Paulo Prado:

Aqueles, pelo derivativo da fé missioneira, em que no desenfreamento das paixões do Novo-Mundo o jesuíta representou o poder moderador, o elemento de cultura moral, de exaltado misticismo com que aqui chegaram os primitivos missionários de Coimbra e Évora. Não cabe nas considerações resumidas deste ensaio indagar melhor da influência do jesuíta na formação da nossa nacionalidade. Passados os tempos primitivos e apostólicos em que desembarcaram com Tomé de Sousa os primeiros padres, a ação da Companhia, amoldando-se à forma da sociedade, à rebeldia dos insubmissos, foi sempre ativa, direta, constante, exercendo-se em cada família e cada indivíduo para ser eficaz sobre a coletividade. Pregavam pela palavra e pelo exemplo: a abnegação, o desprendimento de si foram entre eles qualidades nunca desmentidas. (PRADO, 1981, p. 62).

Dessa forma, verifica-se que Gilberto Freyre atribui enorme importância à família patriarcal rural na formação da nacionalidade brasileira, tendo em vista o seu protagonismo durante séculos de período colonial. Esse protagonismo começa a decair no início do século XIX, e principalmente, no período da virada para o século XX, em decorrência da rápida industrialização experimentada no Brasil, tendo como consequência a transição do poder das fazendas para as cidades. Este ponto será tratado no próximo item.

4 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E A TRANSIÇÃO DOS VALORES DO PATRIARCADO PARA A SOCIEDADE URBANA

Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda explora os reflexos que a família tradicional patriarcal rural causou na vida urbana que se formava na transição para o século XX no Brasil. De início, convém ressaltar a importância dada pelo referido autor à estrutura rural em que se desenvolveu o Brasil durante todos os primeiros séculos.

Toda a estrutura de nossa sociedade colonial teve sua base fora dos meios urbanos. É preciso considerar esse fato para se compreender exatamente as condições que, por via, direta ou indireta, nos governaram até muito depois de proclamada nossa independência política e cujos reflexos não se apagam ainda hoje.

(...)

É efetivamente nas propriedades rústicas que toda a via da colônia se concentra durante os séculos iniciais da ocupação européia: as cidades são virtualmente, se não de fato, simples dependências delas. (HOLANDA, 2014, p. 85).

Buarque de Holanda também demonstra que, no período monárquico brasileiro, o domínio do setor rural preponderava no exercício do poder político:

Na Monarquia eram ainda os fazendeiros escravocratas e eram filhos de fazendeiros, educados nas profissões liberais, quem monopolizava a política, elegendo-se ou fazendo eleger seus candidatos, dominando os parlamentos, os ministérios, em geral todas as posições de mando, e fundando a estabilidade das instituições nesse incontestado domínio. (HOLANDA, 2014, p. 85-86).

Contudo, com as diversas transformações ocorridas no século XIX (industrialização, modernização dos transportes, outras atividades comerciais), as cidades começam a crescer em importância política. Holanda aponta, porém, o fim do tráfico negreiro como o grande fator de transformação das sociedade brasileira:

Não é por simples coincidência cronológica que um período de excepcional vitalidade nos negócios e que se desenvolve sob a direção e em proveito de especuladores geralmente sem raízes rurais tenha ocorrido nos anos que se seguem imediatamente ao primeiro passo dado para a abolição da escravidão, ou seja, a supressão do tráfico negreiro. (HOLANDA, 2014, p. 87).

Nesse contexto, este autor ainda nos mostra a incompatibilidade entre as tradições rurais e a nova forma de vida urbana e industrial que se impunha na sociedade brasileira naquele período:

De certo modo, o malogro comercial de um Mauá também é indício eloqüente da radical incompatibilidade entre as formas de vida copiadas de nações socialmente mais avançadas, de um lado, e o patriarcalismo e personalismo fixados entre nós por uma tradição de origens seculares. (HOLANDA, 2014, p. 88).

Ricardo Benzaquen de Araújo, ao analisar a obra de Freyre, também expõe essa contradição, apontando como causa da decadência do patriarcalismo a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil, o crescimento dos novos setores urbanos e sua aliança com a Coroa, a saber:

O estudo da decadência do patriarcalismo em SM começa, na verdade, com a avaliação do impacto causado pela transferência de Dom João VI e da Corte portuguesa para o Brasil. Com efeito, “a simples presença de um monarca em terra tão antimonárquica nas suas tendências para autonomias regionais e até feudais, veio modificar a fisionomia da sociedade colonial: alterá-la nos seus traços mais característicos” (SM, p. 30), fazendo inclusive com que “o patriciado rural que se consolidara nas casas-grandes de engenho e de fazenda [...] começa[sse] a perder a majestade dos tempos coloniais” (idem, p. 29). (ARAÚJO, 1994, p. 110).

Uma alteração dessa envergadura, entretanto — e é aqui que se juntam as duas pontas do raciocínio de Gilberto sobre a origem da derrocada do patriarcalismo entre nós —, só foi possível graças ao estabelecimento de uma aliança entre a Coroa portuguesa e estes novos setores urbanos, uma “aliança com a plebe das cidades contra os magnatas rurais, com os mascates, contra os nobres; com os negociantes de sobrado do litoral, contra os senhores das casas-grandes do interior; com os mulatos, até, contra os brancos d’água doce” (idem, p. 47). (ARAÚJO, 1994, p. 114).

Todavia, além dessa dicotomia rural x urbano, Holanda também destaca a questão da família, ou seja, que o núcleo familiar patriarcal foi o centro de toda a organização colonial. Um tipo de família organizado conforme o direito romano-canônico, que se reproduziu por gerações na Península Ibérica até chegar ao Brasil. (HOLANDA, 2014, p. 95). Informa também que esse núcleo era construído como os modelos da Antiguidade, “em que a própria palavra ‘família’, derivada de famulus, se acha estreitamente vinculada à ideia de escravidão, e em que mesmo os filhos são apenas os membros livres do vasto corpo, inteiramente subordinado ao patriarca.” (HOLANDA, 2014, p. 96).

Ou seja, mesmo com a decadência das propriedades rurais, os valores e padrões morais permaneceram e foram transpostos para a vida urbana. Benzaquen de Araújo faz uma crítica a Gilberto Freyre nessa questão, ressaltando que a decadência do patriarcado, registrada em Casa-Grande e Senzada e em Sobrados e Mucambos, não eliminou muitas tradições do patriarcado rural, que permanecer amarraigados na sociedade.

Entretanto, é preciso uma certa dose de cautela diante dessa pilha de evidências do declínio senhorial que Gilberto se apressa em acumular diante dos nossos olhos. Não é que devamos desconfiar da extensão e da profundidade das transformações recém--presentadas, capazes de estabelecer o predomínio do sobrado, do comércio, da monarquia e até de alguma civilidade burguesa no Brasil do século XIX. Sucede apenas que, pouco a pouco, ao longo da sua argumentação, nosso autor vai chamando a atenção para a persistência de determinados componentes da tradição colonial, os quais obviamente relativizam aquelas alterações e exigem que a sua discussão seja — brevemente — prolongada.

Entre esses componentes, o primeiro que talvez possa ser apontado diz respeito ao fato de que, apesar de toda a sua decadência,

“a nobreza rural conservaria, entretanto, [...] o elemento decorativo, da sua grandeza, até os fins do século XIX. Esse elemento, como todo o ritual, toda a liturgia social, sabe-se que tem uma extraordinária capacidade para prolongar a grandeza ou pelo menos a aparência de grandeza [...] de instituições já feridas de morte nas suas raízes” (idem, p. 36). (ARAÚJO, 1994, p. 115-116).

No tocante a essa transição, Sérgio Buarque de Holanda é mais explícito quanto à continuidade dos valores familiares, sustentando que eles foram transportados das grandes lavouras para a vida das cidades.

Com o declínio da velha lavoura e a quase concomitante ascensão dos centros urbanos, precipitada grandemente pela vinda, em 1808, da Corte portuguesa e depois pela Independência, os senhorios rurais, principiam a perder muito de sua posição privilegiada e singular. Outras ocupações reclamam agora igual eminência, ocupações nitidamente citadinas, como a atividade política, a burocracia, as profissões liberais.

É bem compreensível que semelhantes ocupações venham a caber, em primeiro lugar, à gente principal do país, toda ela constituída de lavradores e donos de engenhos. E que, transportada de súbito para as cidades, essa gente carregue consigo a mentalidade, os preconceitos, e tanto quanto possível, o teor de vida que tinham sido atributos específicos de sua primitiva condição. (HOLANDA, 2014, p. 97).

Nota-se, portanto, que, segundo o autor, houve o deslocamento dos centros de poder para as cidades, mas os padrões de comportamentos das lavouras foram transplantados para essa nova realidade, pois os filhos dos coronéis, agora profissionais liberais, passaram a comandar o cenário político da nação.

Na ausência de uma burguesia urbana independente, os candidatos às funções novamente criadas recrutam-se, por força, entre indivíduos da mesma massa dos antigos senhores rurais, portadores de mentalidade e tendência características dessa classe. Toda a ordem administrativa do país, durante o Império e mesmo depois, já no regime republicano, há de comportar, por isso, elementos estreitamente vinculados ao velho sistema senhorial. (HOLANDA, 2014, p. 105).

Em outra passagem de Raízes do Brasil, podemos verificar que, pela rapidez do processo industrial ou pela impossibilidade de se adaptar à realidade das nações liberais mais desenvolvidas a um país rural como o Brasil, as cidades foram formadas com bases nos mesmos valores que dominavam as grandes propriedades rurais. Assim descreve Holanda:

Um dos efeitos da improvisação quase forçada de uma espécie de burguesia urbana no Brasil está em que certas atitudes peculiares, até então, ao patriciado rural logo se tornaram comuns a todas as classes como norma ideal de conduta. Estereotipada por longos anos de vida rural, a mentalidade de casa-grande invadiu assim as cidades e conquistou todas as profissões, sem exclusão das mais humildes. (HOLANDA, 2014, p. 103).

Nesse mesmo sentido:

Deve-se reter, todavia, este fato significativo, de que, naquele período, os centros urbanos brasileiros nunca deixaram de se ressentir fortemente da ditadura dos domínios rurais. É importante assinalar-se tal fato, porque ajuda a discriminar o caráter próprio das nossas cidades coloniais. As funções mais elevadas cabiam nelas, em realidade, aos senhores de terras. (HOLANDA, 2014, p. 104).

Diante do exposto, podemos verificar que a cultura patriarcal, desenvolvida e sistematizada no campo, era tão importante e marcante, que foi transferida para a vida urbana no Brasil. A mentalidade, os privilégios, o poder centrado no patriarca, as relações afetivas permaneceram arraigados na sociedade brasileira, mesmo depois da transição do centro de poder para as cidades.

Nesse mesmo sentido aponta Sérgio Costa que, analisando Holanda, ressalta a importância do patriarcado rural brasileiro na sociedade brasileira:

A convivência entre brancos e negros, senhores e escravos, é detalhada no capítulo 3 por meio da discussão do patriarcado rural. Aqui, as propriedades rurais são descritas como um sistema fechado no qual fazendeiros dispõem de um poder decisório ilimitado. Dentro das fronteiras de um latifúndio, reinava de fato – e muitas vezes também de jure – apenas a vontade do senhor rural, que decidia livremente sobre a vida de seus familiares, seus escravos e eventualmente também sobre a vida dos trabalhadores “livres” que viviam n a fazenda. Buarque de Holanda mostra que o patriarcado rural marcou o período colonial no Brasil como nenhuma outra instituição social e foi levado ao paroxismo no Nordeste brasileiro, durante os séculos XVI e XVII, nos engenhos de cana-de-açúcar. (COSTA, 2014, p. 833-834).

Sérgio Costa ainda compara a abordagem de Raízes do Brasil com Casa-grande & Senzala, apontando que o primeiro tem uma perspectiva crítica ao poder, pois é em meio ao patriarcado que se forma o “homem cordial”, aquele que busca “personaliza todas as interações interpessoais: em primeiro plano deve estar os sentimentos, não o anonimato da ordem legalizada que promete tratar a todos como iguais.” (COSTA, 2014, p. 834). Deste modo, as relações de poder no seio familiar permaneceu focada na superioridade do homem, na figura do patriarca, durante a primeira metade do século XX.

Na próxima seção serão discutidos os reflexos e desdobramentos da cultura patriarcal arraigada na sociedade brasileira face às novas mudanças sociais ocorridas a partir da década de 1960 e, principalmente, após a promulgação da Constituição Federal de 1988.

5 REFLEXOS E DESDOBRAMENTOS DA CULTURA PATRIARCAL

Em geral, identificamos os valores o patriarcalismo com o pensamento conservador. Contudo, o conservadorismo, em sua origem, está ligado à busca pelo passado, pelo modo de vida e de produção medieval. Nesses termos, segundo Ferreira e Botelho:

(...) Estruturado como reação ao Iluminismo e às grandes transformações impostas pela Revolução Francesa, o conservadorismo valoriza formas de vida e de organização social passadas, cujas raízes se situam na Idade Média. É comum entre os conservadores a importância dada à religião; a valorização das associações intermediárias situadas entre o Estado e os indivíduos (família, aldeia tradicional, corporação) e a correlata crítica à centralização estatal e ao individualismo moderno; o apreço às hierarquias e a aversão ao igualitarismo em suas várias manifestações; o espectro da desorganização social visto como consequência das mudanças vividas pela sociedade ocidental. (FERREIRA; BOTELHO, 2010, p. 12).

No Brasil, principalmente no século XIX, a divergência entre conservadores e liberais pautava-se, essencialmente, na questão política, de organização do Estado. Enquanto os conservadores defendiam a centralização do poder na figura do imperador, os liberais lutavam pelo poder dos oligarcas, descentralizado. Isso porque não houve um rompimento no modo de vida da sociedade brasileira como ocorreu na Europa com as revoluções burguesas do século XVIII. Mesmo após a independência, houve uma continuidade, “tanto em termos políticos, coma permanência da monarquia encabeçada pelos Bragança, quanto socioeconômicos, com a persistência da escravidão, do latifúndio, da agricultura de exportação.” (FERREIRA; BOTELHO, 2010, p. 13).

Com efeito, o projeto liberal logrou êxito após a proclamação da república, sendo instalado no Brasil o período conhecido como coronelismo, no qual o poder se baseava nos proprietários de terra, que, muitas vezes, tinham mais influência que o próprio poder político constituído nos governadores dos estados.

Contudo, em matéria comportamental, afetiva, familiar, sexual, não havia dissensão nesse período. Tanto os chamados conservadores quanto os liberais partilhavam das mesmas ideias, da superioridade do homem branco chefe da família. Somente no final do século XIX é que se começa a falar em direitos das mulheres, principalmente no tocante ao voto feminino. Não se pensava em igualdade de gênero, nem em meio aos conservadores nem aos liberais.

Tanto no período da economia rural colonial quanto no mundo capitalista da produção industrial, a superioridade do homem se faz presente, conforme descreve Saffioti, em uma leitura feminista e marxista do patriarcado:

Pode-se dizer que esta corrente sustenta que o patriarcado não resume a dominação da mulher, a submissão da mulher ao ‘poder do macho’, à disseminação de uma ideologia machista, mas esta também é um instrumento importante de exploração econômica que tem como principal beneficiário o homem branco, rico e adulto. Neste sentido, a violência contra a mulher seria fruto desta socialização machista conservada pelo sistema capitalista, desta relação de poder desigual entre homens e mulheres, que estabelece como destino natural das mulheres a sua submissão e exploração pelos homens, forçando-as muitas vezes a reproduzir o comportamento machista violento. (SAFFIOTI, 1979, p. 150).

Esse cenário começou a se modificar na década de 1960, com os movimentos de contracultura, a ida da mulher branca para o mercado de trabalho formal, a liberdade feminina promovida pela descoberta da pílula anticoncepcional, a institucionalização do divórcio e outros movimentos, como o rock and roll, os grupos pacifistas, dentre outros, principalmente nos Estados Unidos da América.

No âmbito jurídico brasileiro, as mudanças foram paulatinas e dependeram da jurisprudência de vanguarda, para, posteriormente, as leis se adequarem às novas realidades sociais. Por exemplo, o divórcio somente passou a ser permitido em 1977[1]. O Código Civil de 1916 vigorou até 2002 (Século XXI), e ainda falava em “pátrio poder”, concubinato e filhos ilegítimos. A mulher casada era considerada relativamente capaz e precisava de autorização do marido para trabalhar. (BRASIL, 1916).

No entanto, apenas com a Constituição Federal de 1988 teve início um novo paradigma das relações entre os gêneros e no tocante a família, uma vez que baseou as relações afetivas, em primeiro lugar, no princípio da dignidade humana, considerando a família como o ambiente de socialização e de realização pessoal dos indivíduos.

Conforme aponta Maria Berenice Dias, o conceito de família mudou após o marco constitucional de 1988:

A Família é o grande agente socializador do ser humano, deixou de ser uma célula do Estado, e é hoje encarada como uma célula da sociedade. È conhecida como base da sociedade e recebe especial atenção do Estado, conforme disposto no art. 226 da Constituição Federal de 1988. Tanto é estrutura pública como relação privada, pois identifica o indivíduo como integrante do vínculo familiar e também como partícipe do contexto social. O Direito de Família por dizer respeito a todos os cidadãos revela-se como recorte da vida privada, que mais se presta as expectativas e mais está sujeito a críticas de toda sorte. (DIAS, 2017, p. 69).

A Constituição de 1988 abriu o caminho para uma série de novos questionamentos, pois se baseia na dignidade da pessoa humana. As relações com os filhos passaram a se basear no afeto do que na biologia. Passou-se a falar em alienação parental e a necessidade dos pais darem amor a seus filhos. Novas formas de entidade familiar passaram a serem aceitas, pela lei e pelos tribunais, como as famílias monoparentais, famílias formadas por irmãos ou apenas pela convivência entre pessoas unidas pelo afeto e solidariedade.

Muito se avançou desde o início do século passado e as discussões identitárias estão cada vez mais em voga. Novas pautas de identidades sexuais e entidades familiares surgiram para reclamar o reconhecimento do Estado e da sociedade: famílias homoafetivas, poliafetivas, direitos dos grupos transexuais e transgêneros.

No entanto, mesmo nesse novo paradigma e após muitos avanços, a ideia da superioridade do homem heterossexual, branco e integrante da elite ainda hoje está entranhada em nossa cultura. De fato, ainda existe um padrão moral do homem médio brasileiro que, em última instância, se vincula aos valores da sociedade patriarcal. Esses padrões não se alinham a uma sociedade plural e democrática, não quando pretendem se aplicar sobre todas as pessoas.

Na realidade social, verificam-se inúmeros reflexos dos padrões morais herdados do patriarcalismo: o grande número de crimes sexuais e violência doméstica, as cobranças sociais acerca do casamento e do “ter filhos”, a proibição ao aborto e às campanhas de educação sexual que abordem a diversidade sexual, a violência contra a população LGBTQ+, a dificuldade na inserção da população transexual e transgênera no mercado de trabalho, dentre outras tantas. São reflexos do pensamento de superioridade do homem branco e heterossexual que vigorou e vigora tão fortemente em nossa cultura.

Esses padrões morais advindos do patriarcado e do cristianismo, aliados ao controle estatal sobre o comportamento dos indivíduos, se traduzem em inúmeras dificuldades, quando se está diante de um Estado que se intitula democrático, mas se mostra incapaz de superar as enormes desigualdades econômicas e sociais entre as pessoas, bem como de proteger a diversidade de pensamento e comportamento.

Ou seja, as pautas progressistas ainda possuem muitas barreiras no Brasil. Aborto, igualdade de gênero, pautas LGBTQ+, famílias plurais. Muitas dessas discussões não são enfrentadas por nosso Parlamento. Algumas dessas pautas eventualmente estão sendo reconhecidas pelo Judiciário, como a união estável homoafetiva, que teve sua constitucionalidade declarada em 2011[2] e o casamento homoafetivo, efetivado pelo STJ em 2012[3].

Contudo, muitas outras demandas passam ao largo do reconhecimento social e estatal. Quando se fala em reconhecimento, se fala em respeito, em igualdade de oportunidades, de possibilidades, de efetivação de direitos. Por exemplo, o Conselho Nacional de Justiça decidiu pela impossibilidade de se reconhecer aas uniões poliafetivas como entidade familiar, entendendo que a existência da família depende da chancela estatal, que deve ser dada apenas quando houver a concordância da maioria social.[4]

O cerne da questão é o pensamento enraizado de que o homem branco, heterossexual e pertencente às classes dominantes, é superior aos demais indivíduos. O padrão moral herdado do patriarcalismo rural brasileiro se reflete não apenas no machismo e a desigualdade entre homens e mulheres, mas também na discriminação contra negros, pobres e a população LGBTQI+.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No pensamento brasileiro, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda descrevem, em suas obras, a importância crucial da família patriarcal na constituição da nacionalidade brasileira e identidade dos brasileiros. Demonstram como toda a organização econômica e social foram pautadas pela família patriarcal rural católica. Esta foi, durante séculos, a estrutura basilar da sociedade brasileira.

Assim, restou marcada em nossa cultura a superioridade do homem branco e heterossexual em relação aos demais indivíduos. Além disso, restaram enraizados em nossa sociedade valores como a castidade das mulheres (e a liberdade sexual dos homens), a virgindade para as mulheres, divisão de papéis sociais de acordo com os gêneros masculino e feminino, o casamento e o filhos como objetivos de vida e como indicadores de sucesso, dentre tantos outros valores.

Esses valores foram desafiados pela modernidade, que ao estabelecer o individualismo como valor preponderante, permitiu a busca das pessoas por suas formas individuais de expressão, de intimidade e de sexualidade. O marco desses movimentos ocorreu nos anos de 1960, quando surgiram movimentos de liberdade sexual e igualdade de gênero.

Aos poucos, muitos desses ideais progressistas foram conquistados nos países ocidentais e também no Brasil, principalmente após a promulgação da Constituição da República de 1988, que trouxe a dignidade da pessoa humana como valor fundamental. Contudo, padrões morais conservadores ainda dificultam e impedem as discussões e efetivações das demandas progressistas em matéria sexual e afetivas, bem como outras que desafiam a ideia da superioridade do macho.

Esses choques de valores foram evidenciados principalmente no período das eleições presidenciais de 2018, visto que talvez nunca se discutiu tanto os valores “morais” da nossa sociedade. Candidatos foram valorizados ou repudiados por se manifestarem contra ou a favor das regras contidas nesse padrão moral herdado do patriarcalismo. Foi possível verificar como questões relacionadas ao aborto, à liberdade sexual, as pautas de gênero, foram relevantes para as definições dos rumos do país.

As eleições demonstraram, mais do que nunca, que os padrões morais conservadores, os mesmos que imperaram por tantos anos na formação do país, conforme as descrições dos autores estudados neste trabalho prevalecem na sociedade brasileira, marcadamente nas questões envolvendo liberdade sexual e igualdade de gênero, ou seja, até hoje se encontram enraizados em nossa sociedade.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/237036/mod_resource/content/1/BENZAQUEN%2C%20Ricardo.%20Corpo%20e%20Alma%20do%20Brasil.pdf. Acesso em: 14 ago. 2019.

ARISTÓTELES. Política. Tradução: Pedro Constantin Tolens. São Paulo: Martin Claret, 2006.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Processo judicial eletrônico nº 0001459-08.2016.2.00.000. Pedido de providências. União estável poliafetiva. Entidade familiar. Reconhecimento. Impossibilidade. Família. Categoria sociocultural. Imaturidade social da união poliafetiva como família. Declaração de vontade. Inaptidão para criar ente social. Monogamia. Elemento estrutural da sociedade. Escritura pública declaratória de união poliafetiva. Lavratura. Vedação. Relator: Min. João Otávio de Noronha. [Brasília], 2018. Disponível em: https://www.jota.info/wp-content/uploads/2018/08/a76994fe42703dab2c66aad9f04c56a9.pdf. Acesso em: 23 ago. 2019.

BRASIL. Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932. Decreta o Código Eleitoral. Brasília, DF: Presidência da República, 1932. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21076-24-fevereiro-1932-507583-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 05 set. 2019.

BRASIL. Lei nº 3.071, de 1 de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Presidência da República, 1916. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm. Acesso em: 01 out. 2019.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade nº 4.277/DF. Número único: 0006667-55.2009.0.01.0000. Relator: Min. Ayres Britto, 5 maio 2011. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=11872. Acesso em: 23 ago. 2019.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 132/RJ. Número único: 0000800-18.2008.0.01.0000. Relator: Min. Ayres Britto, 4 maio 2011. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2598238. Acesso em: 23 ago. 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial nº 1.183.378 - RS. Número registro: 2010/0036663-8. Relator: Min. Luís Felipe Salomão, 1 fev. 2012. Rio Grande do Sul: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, 2012. Disponível em: http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/STJRecursoEspecial1183378RS.pdf. Acesso em: 23 ago. 2019.

COSTA, Sérgio. O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Sociedade e Estado, Brasília, v. 29, n. 3, p. 823-839, 2014. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922014000300008. Acesso em: 10 set. 2019.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de famílias. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

FERREIRA, Gabriela Nunes; BOTELHO, André. Revendo o pensamento conservador. In: Revisão do pensamento conservador: ideias e política no Brasil. FERREIRA, Gabriela Nunes; BOTELHO, André (org.). São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2010.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48 ed. São Paulo: Global, 2003.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 27 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. 2 ed. São Paulo: IBRASA; [Brasília]: INL, 1981. Disponível em: http://www.iphi.org.br/sites/filosofia_brasil/Paulo_Prado_-_Retrato_do_Brasil.pdf. Acesso em: 17 set. 2019.

RUSSELL, Bertrand. Casamento e moral. Tradução: Fernando Santos. São Paulo: UNESP, 2015.

SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mitos e realidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1979.

Notas

[1] Emenda Constitucional do Divórcio (EC 9/77) e da Lei do Divórcio (Lei 6.515/77).
[2] Decisão do Plenário do STF na ADPF n° 132/RJ e ADI n° 4.277/DF. (BRASIL,2011).
[3] Decisão do STJ no RESP nº 1.183.378. (BRASIL, 2012).
[4] Decisão do Conselho Nacional de Justiça no processo nº 0001459-08.2016.2.00.0000. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018).
Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
HMTL gerado a partir de XML JATS4R