Artigos

CORDIALIDADE BRASILEIRA: HÁBITOS, PRÁTICAS E CORONAVÍRUS

BRAZILIAN CORDIALITY: HABITS, PRACTICES AND CORONAVIRUS

Marcia Teixeira CAVALCANTI
IBICT, Brasil
Adriano Rosa da SILVA
UGF, Brasil

Revista Augustus

Centro Universitário Augusto Motta, Brasil

ISSN-e: 1981-1986

Periodicidade: Trimestral

vol. 25, núm. 51, 2020

revistaaugustus@unisuam.edu.br

Recepção: 05 Maio 2020

Aprovação: 27 Maio 2020



DOI: https://doi.org/10.15202/1981896.2020v25n51p150

Resumo: A partir da interpretação de categorias chave do Pensamento Social Brasileiro, como cordialidade, jeitinho e malandragem, este artigo pretende compreender o impacto do coronavírus e do isolamento social em uma sociedade do contado marcada pela mobilidade relacional. Como administrar a suspensão do contato presencial em uma sociedade onde ele desempenha papel primordial? A metodologia empregada foi a qualitativa, tendo sido feita uma pesquisa bibliográfica e documental para levantamento das referências para interpretação. O material foi lido com uma perspectiva crítico analítica e nos permitiu observar que em uma sociedade de contato como a nossa é necessário trabalhar as práticas comportamentais, assentados na cultura, para que possa obter sucesso e eficiência na implementação de políticas sanitárias. A necessidade do contato se transforma em uma barreira que dificulta a realização das medidas indicadas pela OMS, como o isolamento e distanciamento social.

Palavras-chave: Coronavírus, Cordialidade, Isolamento Social, Sociedade do Contato.

Abstract: From the interpretation of key categories of Brazilian Social Thought, such as cordiality, Brazilian way and trickery, this article aims to understand the impact of the coronavírus and the social isolation in a society of the environment marked by relational mobility. How to manage the suspension of face-to-face contact in a society where it plays a major role? The methodology used was qualitative, with a bibliographic and documentary research to collect references for interpretation. The material was read with a critical analytical perspective and allowed us to observe that in a contact society like ours it is necessary to work on behavioral practices, based on culture, so that it can be successful and efficient in the implementation of health policies. The need for contact becomes a barrier that makes it difficult to carry out the measures indicated by the OMS, such as social isolation and distance.

Keywords: Coronavirus, Cordiality, Contact Society, Social Isolation.

1 INTRODUÇÃO

O pensamento social brasileiro dá ênfase à interpretação sobre o Brasil a partir de uma lógica estrutural específica, que demarca uma escolha contraditória e complementar entre o racional e o emocional, delimitada por hierarquias bem definidas que permitem, a nós, brasileiros, saber com quem estamos falando, como já dizia Roberto DaMatta (1997). Mas essas hierarquias, como afirma este autor, são mascaradas quando se trata de carnaval e futebol, por exemplo, por isso que o famoso sabe com quem você está falando? ocorre de forma velada, se esconde nas entrelinhas e revela a preocupação com a posição social e a consciência de todas as regras relativas à manutenção, perda ou ameaça dessa posição (DAMATTA, 1997, p. 187). A expressão é verbalizada diante da possibilidade de ameaça ao poder que o indivíduo detém, ou imagina deter, e como forma de inferiorizar o seu interlocutor.

É um jeito peculiar de relacionar a concepção de indivíduo e de coletividade, fazendo com que o primeiro só exista em função do segundo, ou melhor, a partir dele, sem, entretanto, se definir como uma sociedade que nega o individualismo, mas que precisa absorvê-lo em uma concepção relacional, na qual ele possa ser cidadão e, ao mesmo tempo, mais cidadão de que outro.

Neste sentido, nossa sociedade busca mesclar caminhos ditos inconciliáveis, um que valoriza o indivíduo como pilar da sociedade e outro que sobrepõe o todo ao indivíduo, gerando estratégias construtivas de uma igualdade na desigualdade. É perceptível que nossa sociedade ainda valoriza a desigualdade, postulando e acreditando que cada um tem o seu devido lugar, não importando o esforço que se possa realizar para mudar seu lugar na estratificação social. Aqui vale a máxima cultural de que, de fato, pertencemos sempre a um lugar definido.

Tal perspectiva estrutural nos leva a uma sociedade que se quer racional, positiva e legalista, mas que precisa suavizar o rigor da lei, sua impessoalidade e distância com o nosso famoso aconchego, nossa necessidade de intimidade e contato físico, elementos que nos caracterizam como um povo de contato, caliente, emocional e passional. Característica que gostamos de exaltar e que nos representa no imaginário internacional. Inúmeros relatos de estrangeiros que tiveram a oportunidade de conhecer o Brasil, ou pelo menos a parte mais turística do país, destacam essa calorosidade do povo brasileiro e uma certa necessidade existente em nossa cultura de inserir os indivíduos em laços familiares que os tornem pertencentes ao grupo, deixando de ser o outro, o estranho. (VELHO, 1987).

Essa necessidade do contato físico, para gerar intimidade e personificar as relações, representa nosso mecanismo de incorporação social, que possibilita aplacar a distância real entre nossas posições hierárquicas e diversidades, mesmo que temporariamente, para gerar nossa igualdade na desigualdade. Contradição que nos permite acionar o aspecto relacional de nossa cultura, que unifica as dimensões do público, a rua, e do privado, a casa, a emoção e a razão, transformando o exótico em familiar e o familiar em exótico, como nos afirma DaMatta (1978). O que vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido, e o que não vemos e encontramos pode ser exótico, mas, até certo ponto, conhecido. (VELHO, 1987, p. 72).

É essa sociedade do contato que queremos descortinar no contexto do enfrentamento do coronavírus e a necessidade do estabelecimento do isolamento social. Como administrar a suspensão do contato presencial, físico, em uma sociedade onde ele desempenha papel primordial? Para tanto iremos analisar a concepção de sociedade do contato/afeto e a pandemia causada pelo coronavírus, mediante as mediadas de isolamento e distanciamento social e a necessidade de construção de novas práticas/hábitos.

2 SOCIEDADE DO CONTATO E DO AFETO

Somos calorosos, solidários e necessitamos do contato físico, do abraço, do toque, como elemento de aproximação social, aceitação, incorporação ao nosso universo emotivo e construção de afinidades. Ao mesmo tempo, precisamos preservar nossas posições e privilégios estabelecidos pela hierarquia social, para que possamos, com “amor”, perpetuar os mecanismos de dominação que nos forçam a desenvolver uma cidadania singular, muitas vezes caricata, como expresso na representação do homem cordial (HOLANDA, 1993), no famoso e internacionalmente conhecido jeitinho brasileiro (BARBOSA, 2006) ou na característica malandragem nacional. (DAMATTA, 1997).

A calorosidade será expressa em nosso ritual corporal, valorização das expressões, gestos, fala, que desempenham mecanismos de encantamento, charme e simpatia. Nosso corpo é expressivamente significativo para o exercício de nossa brasilidade. O exercício da linguagem, da vestimenta e do gestual estabelece um rito que constrói familiaridade, intimidade e igualdade. Expressões como “meu irmão”, “viado”, “meu chapa”, “tia”, a nossa malemolência e linguagem corporal dão a tônica desse idioma de contato e aproximação, fortalecendo nossa representação de povo amigo, hospitaleiro e que a todos abraça e tendo sempre lugar para mais um, muito compreendido pela ideia de botar mais água no feijão, como no dito popular.

Assim, cordialidade, jeitinho e malandragem, como categorias analíticas, nos representam e permitem a percepção de nossa cultura do contato e da conciliação (FREYRE, 1946), expondo nossa contradição como sociedade, onde as ideias podem parecer estar fora do lugar (SCHWARZ, 1977). Mas é justamente aí que o contato, como categoria social, cria o caminho e a possibilidade para o reordenamento dessas ideias, estabelecendo a lógica de navegação social que busca em nosso cotidiano alinhar civilidade com cordialidade, demonstrando valores estruturais de nossa sociedade presentes na construção de nossa identidade e definidores de nossa cultura relacional, expresso tão bem na máxima: aos amigos tudo, aos indiferentes nada e aos inimigos a lei. O contato gera o afeto e este a superação da frieza do mundo civilizado burocrático e impessoal.

Nossa racionalidade emocional se estabelece no contato, resolvendo os limites da civilidade e estabelecendo a relação como espaço singular de negociação de contradição, espaço onde definimos os amigos e os inimigos, o tratamento, a percepção e compreensão da realidade e moldamos as atitudes e ações que alicerçam nossa moralidade e ética. Espaço que justapõe transformação e tradição, que permite a invenção de um jeito malandro e cordial de existência, que propicia ora vitalidade e criatividade, ora barreiras e restrições à superação de nosso eterno desejo de civilização nos trópicos. O que chamamos de racionalidade emocional é aquilo que nos coloca diante de um modelo que reconhece sermos seres de razão e emoção, concomitantemente imbicados, inseparáveis, que pode pender ora para um lado ora para outro, razão e emoção, de acordo com as conveniências, situação e possibilidades.

Não sabemos lidar com a impessoalidade que iguala e superar a pessoalidade que diferencia. Nossa modernidade tradicional conjuga o indivíduo (leis universais) com a pessoa (relações sociais), como afirma DaMatta (1997) e estabelece um sistema híbrido que permite a cada um de nós optar, de acordo com o momento ou a oportunidade, com qual se apresentar ou agir, o que de certa forma explica nossas ideias fora do lugar.

Em nossa sociedade a regra jurídica e a prática cotidiana não necessariamente estabelecem coerência, porque não se aplicam a todos e não produzem correlação intrínseca entre elas, como em outras culturas. Assim, o Estado que se quer ordenador, imparcial e neutro, assume em nós um outro caráter, precisa contemplar as relações e tornar o público em privado, identificado como lugar da pessoa. O público é o lugar de ninguém, onde não existimos em nossa singularidade, no qual não podemos exercitar nossa afetuosidade e expressar nossa vontade do contato. Assim, o Estado é compreendido como algo estranho, distante de nós, se fazendo sempre impositor, disciplinador e criador de obstáculos ao bem viver do indivíduo, especialmente quando interfere em sua vivência.

Um bom exemplo é a Revolta da Vacina, ocorrida em 1904 na cidade do Rio de Janeiro, manifestação popular contrária à obrigatoriedade da vacinação da varíola imposta pelo Estado. Quando Rodrigues Alves assumiu o governo, em 1902, precisou lidar com as condições sanitárias da cidade, as ruas apresentavam toneladas de lixo o que corroborava para proliferação de ratos e mosquitos, transmissores de doenças como a peste bubônica e a febre amarela. Para solucionar o problema decidiu reurbanizar a cidade promovendo grandes obras públicas, com a demolição de cortiços, transferências da camada mais baixa da população para áreas distantes, combate a doenças, dentre outras medidas. Teve como colaboradores o prefeito Pereira Passos e Oswaldo Cruz, diretor de saúde pública. Foi tornada obrigatória a vacinação contra a varíola sem realizar nenhuma campanha de esclarecimentos anteriormente, e os agentes de saúde entravam nas casas de forma autoritária, gerando uma revolta popular por conta da ação do Estado, culminando no que entrou para os compêndios da história como a Revolta da Vacina. (CARVALHO, 2016).

Logo, não reconhecemos o Estado como articulado aos interesses relacionais da sociedade, mas como um elemento que busca retirar dela a possibilidade de uma navegação própria, constituída por meios singulares e gradativos de aplicação das regras à vida prática. Nos insurgimos toda vez que tentam nos castrar desta possibilidade de exercício da cultura relacional.

O Estado com suas regras representa um obstáculo ao contato, à familiaridade e intimidade, quebra a possibilidade da igualdade na desigualdade que tanto valorizamos. No Estado moderno o cidadão não pode ser mais cidadão que o outro, mas em nosso Estado moderno tradicional, sim, ele pode.

Nossa cordialidade, jeitinho e malandragem nos permitem atualizar e reproduzir essa nossa ambiguidade, possibilitando a fusão entre o racional e o emotivo, o Estado e a Sociedade, entre o legal e a subversão do legal. Valorizamos a criatividade e a improvisação para superarmos as regras impostas pelo Estado, buscando autonomia para o exercício da relação, do contato e do afeto, marcas substantivas do nosso ser.

Nós produzimos, portanto, como uma sociedade relacional, no qual o grau de familiaridade e proximidade implica em maior nível de navegação e oportunidades. Existimos por sermos indivíduos relacionais, é a relação que nos dá a plasticidade necessária para operar nossa ambiguidade e para seduzir com nosso espírito aberto, acolhedor e simpático, que nos faz ser reconhecido como povo amigo. Diante de todas as características anteriores que nos dão a identidade de sociedade do contato, como administrar nossa existência perante a pandemia do coronavírus? Particularmente, diante do isolamento social obrigatório?

3 CORONAVÍRUS: A PANDEMIA, ISOLAMENTO SOCIAL E NOVOS COMPORTAMENTOS

A COVID-19 (Co e Vi de coronavírus, D de doença e 19 para 2019, quando os primeiros casos são identificado) é uma doença infecciosa causada por um novo vírus (o coronavírus SARS-COV-2), que provoca problemas respiratórios, tosse, febre e, em casos mais graves, dificuldade para respirar. É transmitida por contato com pessoas infectadas, através do espirro e tosse ou através do contato com superfícies ou objetos contaminados e, posteriormente, levando a mão à boca, aos olhos ou nariz. (GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2020).

A doença foi identificada em dezembro de 2019 na China, em janeiro de 2020 são registradas ocorrências de casos em outros países e em 26 de fevereiro o Ministério da Saúde confirma o primeiro caso no Brasil, em um paciente que tinha estado anteriormente pela região mais afetada pelo vírus na Itália. Em 11 de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde decretou a pandemia da doença, significando que ela estava sendo transmitida em todos os continentes. Dados atuais divulgados pela imprensa mostram que foram registrados no Brasil, em 29 de abril de 2020, 79.685 casos confirmados de contaminação e 5.513 casos de óbitos.

O coronavírus têm deixado o mundo em alerta e vem desafiando autoridades sanitárias, governos e sociedades, de modo geral. A COVID-19 apresenta baixo grau de letalidade em relação a outras infecções, como a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS-CoV) e a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS-CoV), consideradas enfermidades graves, mas a velocidade de contágio do vírus faz com que se torne preocupante, além da forma como está impactando o modo de vida das pessoas, em todos os lugares, por impor medidas emergenciais para sua contenção. (VALENTE, 2020).

Nas últimas semanas, o isolamento social se tornou o centro das estratégias globais de combate ao vírus. O objetivo é “achatar a curva” de disseminação da doença, para evitar que o número de novos casos se concentre em um curto espaço de tempo e leve ao colapso do sistema de saúde. As iniciativas de isolamento, recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), têm sido adotadas de forma distinta. Há países que ameaçam prender ou multar pessoas que saem às ruas para realizar atividades que não envolvem a compra de alimentos ou remédios, enquanto outros determinam o fechamento de estabelecimentos e recomendam que os cidadãos permaneçam em casa, sem impor penalidades. As iniciativas podem incluir o confinamento em massa da população ou estipular que apenas os grupos de risco serão isolados em casa. Hoje, a OMS estima que 1/3 da população mundial está sob isolamento social, o que representa 2,8 bilhões de pessoas. (MONTEIRO et al., 2020).

Em países com melhores estruturas sanitárias e elevado padrão socioeconômico, como Estados Unidos, França, Espanha, Alemanha, a doença marcava um cenário de complexidade. Nos perguntávamos, então, o que poderia acontecer em um país com a nossa realidade. O potencial de expansão devido às condições existentes é elevado e implica em expectativas alarmantes. O cenário previsto não era favorável e por conta disso medidas de contenção foram tomadas pelo governo para tentar evitar o colapso do sistema de saúde e para preservar ao máximo a saúde da população.

As capitais Rio de Janeiro e São Paulo já registram caso de transmissão comunitária, quando não é identificada a origem da contaminação. Com isso, o país entra em uma nova fase da estratégia brasileira, a de criar condições para diminuir os danos que o vírus pode causar à população. Em videoconferência com profissionais das Secretarias Estaduais de Saúde de todo o país, o Ministério da Saúde anunciou, nesta sexta-feira (13), recomendações para evitar a disseminação da doença. As orientações deverão ser adaptadas pelos gestores estaduais e municipais, de acordo com a realidade local. (MONTEIRO et al., 2020).

Apesar da falta de consenso na esfera do poder executivo nacional, os estados e municípios decretaram, a partir de 16 de março de 2020, o isolamento social como uma das medidas mais importantes para prevenção da doença e para barrar seu potencial de contágio. Obviamente a adoção desta medida gerou impactos de todas as ordens, especialmente econômico, colocando em foco a discussão acerca da preservação da vida ou da estrutura econômica, ou como equacionar esta difícil operação. Os dados epidemiológicos divulgados pelos meios de comunicação e redes sociais foram demonstrando que, no Brasil, a capacidade de contaminação do vírus ampliava o risco à população, daí a necessidade de se exigir do governo federal maior responsabilidade perante o caso.

Novas práticas passaram a fazer parte da vida cotidiana dos brasileiros desde que as autoridades médicas/sanitárias e os governos passaram a adotar políticas de isolamento social, que culminaram na manutenção do funcionamento apenas das atividades consideradas essenciais. Associada ao isolamento social, a população se viu diante da necessidade de ter que praticar o trabalho remoto, a evitar aglomerações, a manter distanciamento físico, lavar as mãos constantemente, a não tocar o rosto quando em espaços públicos ou após entrar em contato com objetos nesses espaços, cobrir o rosto quando espirrar ou tossir e, por fim, somente poder sair às ruas usando máscara. Hábitos que parecem comuns em algumas sociedades, mas que na nossa assumem um alto grau de complexidade.

Os meios de comunicação e as redes sociais passam a denunciar os lugares em que a população não respeita as novas regras sociais de contato e como os moradores continuam seguindo a vida como se nada estivesse acontecendo. As filas da Caixa Econômica Federal para receber o auxílio emergencial do governo mostram de forma mais explícita como os brasileiros e o governo se colocam diante da doença, são filas sem organização, com aglomeração, e nem todos usam as máscaras, embora diversas campanhas mostrem como seu uso pode diminuir consideravelmente o contágio.

Nossa amabilidade social praticada no contato nos permite ser conhecidos como uma sociedade aberta, convidativa ao estrangeiro, que recebe a todos de forma acolhedora e simpática. Nossa identidade amável se constituiu a partir do outro, povos considerados frios e distantes, sociedades consideradas fechadas por não realizarem essa operação de proximidade da forma como a executamos. Estranhamos a forma como indivíduos dessas culturas operam com o distanciamento individual, considerando o contato uma invasão de privacidade. Para nós é justamente o contato o caminho que permite a sociabilidade, ele é mais importante do que as regras, aliás, elas só operam a partir dele, quando não é assim nos sentimos agredidos pelo rigor da lei, que não leva em consideração quem somos.

Um estudo realizado em 2018 com populações de diferentes países, e publicado no periódico científico da National Academy of Sciences, mediu o grau da mobilidade relacional das sociedades (relational mobility no original), ou seja, a tendência de comportamento dos indivíduos sobre relacionamentos de forma geral. A partir do estudo as sociedades investigadas se classificaram como mais abertas - aquelas com alto grau de mobilidade relacional e também mais sociáveis - ou mais fechadas - aquelas com baixo grau de mobilidade relacional e, por isso, mais reservadas. O Brasil aparece em terceiro lugar como um país de alta mobilidade relacional. Mobilidade relacional é um conceito utilizado em diferentes campos de estudo que mede o nível de mobilidade interpessoal ou intergrupal, e que nos chamou atenção por medir o grau em que as relações pessoais se estabelecem a partir da escolha individual. (THOMSON et al., 2018).

Enquanto indivíduos em algumas sociedades têm muitas oportunidades de escolher novos parceiros e, assim, formar e reformar relacionamentos como bem entenderem, indivíduos em outras sociedades tendem a estar firmemente inseridos em sua rede social e têm poucas oportunidades (e menos necessidade) de se aventurar fora dos relacionamentos atuais para selecionar novos parceiros de interação. Para discutir essas diferenças na estrutura social, introduzimos recentemente o conceito de mobilidade relacional, definido como "a quantidade de oportunidades que as pessoas têm para selecionar novos parceiros de relacionamento em uma determinada sociedade ou contexto social." (YUKI; SCHUG, 2012, p. 142, tradução nossa).

Como pensar a imposição do isolamento pela necessidade de controle da doença na sociedade brasileira, identificada como uma sociedade aberta em relação à mobilidade relacional?

Indivíduos de sociedades de alta mobilidade relacional estão precisando ajustar a vida cotidiana mais do que sociedades de baixa mobilidade relacional. Eles podem se sentir 'encurralados' sem a liberdade de sair e se relacionar com os outros, o que eleva o estresse, diz a psicóloga social Mie Kito, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Meiji Gakuin, de Tóquio. (SAYURI, 2020).

Utilizando a ferramenta Community Mobility Reports, disponibilizada pela Google, é possível fazermos uma avaliação do comportamento do brasileiro no isolamento. A proposta da ferramenta é mostrar, por meio de relatórios com gráficos, como a população de cada país está se movendo frente os desafios da COVID-19, e pretende fornecer informações sobre mudanças que tenham ocorrido em resposta às políticas adotadas para o combate da doença. “Os relatórios traçam tendências de movimento ao longo do tempo por região geográfica, em diferentes categorias de lugares, como lazer e entretenimento; mercados e farmácias; parques e praias; estações de trem e metrô; locais de trabalho; residências.” (COMMUNITY MOBILITY REPORTS, 2020, tradução nossa).

Taxa de mobilidade no Brasil.
Gráfico 1
Taxa de mobilidade no Brasil.
Fonte: Community Mobility Reports (2020).

Taxa de mobilidade no Brasil (continuação).
Gráfico 2
Taxa de mobilidade no Brasil (continuação).
Fonte: Community Mobility Reports (2020).

Podemos observar que os gráficos acima apontam para redução dessa mobilidade, mas observem que para alguns espaços avaliados torna-se impossível o uso, visto que as medidas restritivas obrigam o seu fechamento. O maior percentual negativo de mobilidade demonstra exatamente isto, mesmo assim, é possível ver que a redução é de 65%. A impossibilidade de frequência, que também se aplica aos espaços públicos, demonstra que o controle sobre eles é menor (61%) do que sobre os espaços privados (65%). O que pode sugerir que há maior controle do Estado sobre as atividades econômicas do que sobre as atividades de lazer, mas quando há menor controle, como em parques e praias por exemplo, a procura pelo espaço amplia. Nossa prática de navegação vai demonstrando resistência à mudança, tornando possível supor que esse comportamento, enquanto prática cultural, ainda fortalece nossa lógica do contato. Ao mesmo tempo observa-se o aumento da frequência de mobilidade no sentido dos lugares de residência, apontando para o fato de que em contextos de menor vigilância a lógica do isolamento, como prática de proteção e prevenção, se reduz.

Num primeiro momento nossa cordialidade, jeitinho e malandragem representam nosso sarcasmo ou a incorporação das ideias fora do lugar para demonstrar um suposto adequamento às regras impostas quando, de fato, o que observamos é, em um segundo momento, a necessidade afeto falando mais alto, restabelecendo o contato.

Recentemente o prefeito de Blumenau reabriu alguns serviços e espaços públicos, permitindo o funcionamento dos shoppings e do comércio, e o que se viu foi uma frequência imediata nesses lugares e a expansão dos casos de contaminação, o que demonstra nossa dificuldade em operar o isolamento e o distanciamento social.

Desde a reabertura do comércio de rua, o número de pacientes confirmados com coronavírus mais que dobrou em Blumenau. No dia 13 de abril, quando os lojistas foram autorizados a reabrir as portas pelo governador Carlos Moisés (PSL), havia 98 casos. Na quinta (30), eram 212, um aumento de 116%, segundo dados do governo estadual. A disparada de infectados pela COVID-19 na cidade do Vale virou assunto no mundo todo, sobretudo, depois que imagens da reabertura de um shopping, que teve saxofonista, lojistas batendo palma para os clientes e aglomeração, viralizaram nas redes sociais e chegaram a ser um dos assuntos mais comentados no Twitter. Jornais como o britânico Daily Mail e o estadunidense The New York Times repercutiram o assunto. (SIMON, 2020).

Moldados por práticas cotidianas de contato físico nos soa estranho, frio e distante tudo o que nos obriga a agir diferente. Como não tocar, como se apresentar sem os beijinhos no rosto e os abraços, como utilizar máscaras e, principalmente, ficar distante dos demais? O contato faz parte de nossa sociabilidade, ele opera função singular na construção e navegação social dos brasileiros.

Os novos padrões retiram de nós o nosso jeito, afetam a relação e impedem a manutenção de nossa mobilidade relacional, rompem com uma esfera de nossa cordialidade, jeitinho e malandragem nos obrigando ao retorno às práticas consensuais, a não compreensão ou validação das medidas adotadas, criando dificuldade para o exercício pleno das políticas de saúde, o que pode gerar complicações para o sistema de saúde com sua saturação.

Apesar das campanhas solicitando “Fique em Casa”, o resultado tem sido parcial, muitos sequer aceitam adotar as demais práticas, como o uso das máscaras, que ou não são utilizadas ou o são de modo errado, reduzindo sua eficácia. Tal fato fica evidenciado pelas observações que podemos fazer das matérias expressas em diversos canais de comunicação que mostram desde a presença de pessoas caminhando em calçadões a tentativas de uso das praias, em geral, sem nenhuma proteção.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que fazemos?

Precisamos compreender nossa singularidade cultural e estrutural para agir de modo mais efetivo no combate a pandemia do coronavírus. Nossa trajetória cultural aponta para relevância em considerar nossa natureza do contato e afeto, da familiaridade e da proximidade como elemento chave na elaboração de estratégias de prevenção e combate ao COVID-19. Ignorar esta característica tem se revelado um erro crucial no sucesso de qualquer política pública, mesmo quando envolve a saúde.

Necessitaremos aprender a ressignificar nossa amabilidade, nosso apelo pelo contato, por novos padrões de comportamento que nos permitam manter o viés da solidariedade e, ao mesmo tempo, lidar com a suspensão temporária do contato. Teremos que encontrar mecanismos afetivos que possam funcionar como uma alternativa válida a supressão do contato. Para estabelecer maior efetividade e legitimidade na construção desses novos hábitos e práticas comportamentais, que terão que fazer parte do nosso cotidiano daqui para frente, precisaremos ultrapassar algumas das limitações impostas por nossa cordialidade, jeitinho e malandragem, que de certo modo, nos deixam com ideias fora do lugar, por representarem irreverência e sarcasmo a perspectiva universalista do processo civilizatório, a que não nos adequamos integralmente.

Associar as novas exigências a amabilidade, ao carinho e ao afeto pode significar recompor essa perda cultural que a ausência do contato nos faz, ao mesmo tempo, se transforma em um desafio a enfrentar. Será que conseguimos estabelecer novos padrões de mediação como o afeto e o contato nos permite?

Aprender a valorizar essa cordialidade, jeitinho e malandragem ressignificada, impondo limites ao papel do contato, pode representar um novo caminho, um novo jeito, para reinventar nossa brasilidade, nos permitindo manter nossa forma singular de conjugar razão e emoção em nossa modernidade tradicional.

Então, como administrar a suspensão do contato presencial, físico, em uma sociedade onde ele desempenha papel primordial?

Através de uma releitura de nossas práticas e a sinalização da necessidade de adaptações culturais para que as barreiras por ela constituídas possam representar estímulos para novos comportamentos, sem que se associe a isto, a perda de nossa singularidade. Precisamos trabalhar com os condicionantes culturais da saúde e aprender que as políticas públicas nesta área precisam estar associadas a compreensão dos padrões e as práticas culturais da sociedade em questão. Não podem ser trabalhadas de forma dissociadas, sob o risco de funcionarem parcialmente, comprometendo e colocando em risco a vida humana.

REFERÊNCIAS

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CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. 3. ed. [São Paulo]: Companhia das Letras, 2016.

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VALENTE, Jonas. Saiba tudo sobre o novo coronavírus e a doença que ele provoca: conheça os sintomas, as formas de transmissão e saiba como se prevenir. Agência Brasil, Brasília, DF, 2020. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-03/saiba-tudo-sobre-o-novo-coronavirus-e-covid-19. Acesso em: 25 abr. 2020.

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