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Das Fronteiras Nacionais às Fronteiras Internas: Segurança, Ordem e Tutela Militar no Brasil
Gustavo Villela Lima da Costa
Gustavo Villela Lima da Costa
Das Fronteiras Nacionais às Fronteiras Internas: Segurança, Ordem e Tutela Militar no Brasil
Revista TOMO, núm. 35, 2019
Universidade Federal de Sergipe
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Resumo: Este artigo propõe uma análise das operações militares na fronteira Brasil-Bolívia e sua relação com a crescente militarização da segurança pública no país, articulando a tutela como uma forma de dominação específica com o exercício de práticas discricionárias de exceção. Este texto foi produzido a partir de etnografias feitas em Corumbá-MS, en- tre 2009 e 2014, e também pela análise de reportagens jornalísticas e comunicações oficiais até 2018. A fronteira, para além de uma região, é pensada como um conceito e metáfora de poder e também como um modelo de atuação que é replicado para o restante do território nacio- nal (cujo exemplo empírico comparativo é o Rio de Janeiro). Observa- mos os efeitos sociais desses dispositivos e rituais militares para impor a ordem, reproduzindo uma alteridade radical e processos de sujeição e hierarquização de grupos sociais.

Palavras-chave: Fronteira, Securitização, Tutela, Militarização, Sujeição.

Abstract: This paper analyzes the military operations in the Brazil-Bolivia border and its relation with the increasing militarization of the public security in the country, articulating tutelage as a form of specific domination with the exercise of discretionary practices of exception.This text was produ- ced from ethnographies made in Corumbá-MS between 2009 and 2014, as well as the analysis of journalistic reports and official communications until 2018. The border, beyond a region, is thought of as a metaphor and concept of power and as a model of action that is replicated for the rest of the national territory (whose comparative empirical example is Rio de Janeiro).We observe the social effects of these devices and military rituals to impose order, reproducing a radical otherness and processes of subjection and hierarchization of social groups.

Keywords: Border, Securitization, Tutelage, Militarization, Subjection.

Resumen: Este artículo propone un análisis de las operaciones militares en la frontera Brasil-Bolivia y su relación con la creciente militarización de la seguridad pública en el país, articulando la tutela como una forma de dominación es- pecífica con el ejercicio de prácticas discrecionales de excepción. Este texto fue producido a partir de etnografías hechas en Corumbá-MS, entre 2009 y 2014, y también por el análisis de reportajes periodísticos y comunica- ciones oficiales hasta 2018. La frontera, más allá de una región, es pensada como un concepto e metáfora de poder y un modelo de actuación que es replicado para el resto del territorio nacional (cuyo ejemplo empírico com- parativo es Río de Janeiro). Observamos los efectos sociales de esos dispo- sitivos y rituales militares para imponer el orden, reproduciendo una alte- ridad radical y procesos de sujeción y jerarquización de grupos sociales.

Palabras clave: Frontera, Securitización, Tutela, Militarización, Sujeción.

Carátula del artículo

Artigos

Das Fronteiras Nacionais às Fronteiras Internas: Segurança, Ordem e Tutela Militar no Brasil

Gustavo Villela Lima da Costa
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil
Revista TOMO
Universidade Federal de Sergipe, Brasil
ISSN-e: 1517-4549
Periodicidade: Semestral
núm. 35, 2019

Recepção: 13 Março 2019

Aprovação: 16 Junho 2019


Introdução

2013, numa manhã em Corumbá caminhões do Exército transi- tam com jovens soldados fortemente armados, na parte de trás, que fica visível aos pedestres e motoristas; com capacetes, far- das, fuzis e metralhadoras em riste, circulam na cidade, na fron- teira com a Bolívia. Para qualquer morador estava claro que não se tratava de um treinamento militar: algo fora do normal estava acontecendo. Seria alguma tensão na fronteira que demandas- se aquele efetivo? Depois se soube que era mais uma operação de apreensão de mercadorias ilegais em pequenos comércios, cujos donos eram, em maioria, bolivianos, embora nunca uma ação com este fim fora vista com a presença do Exército até en- tão. Ano após ano, esse tipo de movimentação militar passou a se normalizar naquela fronteira, com as Forças Armadas dando suporte ou atuando diretamente em operações policiais, na exe- cução de revistas e blitzes, impondo sua presença de maneira espetacular, tornando-se cada vez mais parte da paisagem da cidade. A segurança pública na fronteira se militariza de modo contínuo, principalmente após a instauração do Plano Estratégi- co de Fronteiras, em 2011, para além das forças convencionais que coíbem os crimes na região, ou seja, a Polícia Militar, Am- biental, Civil, Rodoviária, Federal e mesmo a Força Nacional.

2018, dezenas de veículos militares, blindados, caminhões, jipes com metralhadoras, soldados de armas em punho, transitam em fila na BR-101 entre Niterói e São Gonçalo. O trânsito de veículos civis é desviado e parado para a passagem do comboio, de jovens mascarados, outros com as caras pintadas de negro, esconden- do seus rostos – poucos têm coragem de mostrar suas faces, há muita tensão nos semblantes e armamento pesado. O Exército está nas ruas durante a intervenção militar na Região Metropo- litana do Rio de Janeiro naquele ano, o policiamento das ruas também está a cargo das Forças Armadas. Se em Corumbá, em 2013, nenhum tiro foi disparado e a presença do Exército era muito mais uma demonstração simbólica de força e da presen- ça nacional atuando contra os crimes fronteiriços, em 2018 se trata de conflito urbano, com combates, atuação em territórios, destruição de barricadas, com mortos e feridos1. Após o término da Intervenção, os números apontaram para o aumento da leta- lidade policial, de acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP), autarquia ligada ao governo estadual2, indicando o recru- descimento da lógica da guerra em território urbano no período.

A partir desses dois cenários, que presenciei pessoalmente, quando morei em Corumbá e no trajeto para o trabalho em São Gonçalo, surgem algumas perguntas para nossa discussão: Qual o impacto simbólico da militarização e do uso das Forças Arma- das na segurança pública no Brasil? Quais seus efeitos sociais? Há relação entre essas práticas e performances militares em di- ferentes contextos? O que conecta Corumbá, em 2013, e o Rio de Janeiro, em 2018? A fronteira pode ser pensada como um mode- lo de atuação militar para a segurança pública?

Este artigo propõe discutir essas questões, tomando como ponto de partida um conjunto de pesquisas etnográficas realizadas ao longo de cinco anos em Corumbá-MS sobre a atuação do Esta- do brasileiro na fronteira Brasil-Bolívia no período em que fui professor da UFMS entre 2009 e 2014. Além disso, analiso re- portagens jornalísticas e comunicações oficiais do governo para embasar as análises relativas às ações militares no Estado do Rio de Janeiro entre 2011 e 2018, em conjunto com observações feitas no cotidiano da cidade de São Gonçalo, entre 2015 e 2018, quando me tornei professor da UERJ/FFP. O período abordado neste texto vai de 2011, quando é lançado o Plano Estratégico de Fronteiras (PEF), até o final do governo Temer, em 2018, quando se encerra a Intervenção Federal no Estado do Rio de Janeiro.

A fronteira, não apenas como uma região, é entendida, nesta perspectiva, como um lugar em que a “soberania é experimen- tada de modo potencial” (Das e Poole, 2008, p. 34) e, portan- to, como um local-paradigma do exercício do poder soberano, aplicado e replicado, sob premissas similares, para “dentro” do território nacional. Esse pressuposto nos leva a considerar que existe uma constante reapropriação e implantação das técnicas de controle social, patrulhamento, combate, e ocupação territo- rial por parte do Estado, que dispõe cada vez com mais frequên- cia das Forças Armadas com papel de polícia (e da polícia atuan- do como “exército”), selecionando áreas e populações sobre as quais deve atuar, e qual parcela da população deve ser protegida e de quem. A fronteira pode ser entendida, então, como veremos ao longo do artigo, não apenas em sua acepção geográfica, mar- cando um limite entre países e soberanias, mas como uma metá- fora e um conceito de poder exercido sob uma gramática militar, que legitima práticas excepcionais de guerra e construção social do “inimigo” a ser combatido.

Isso não quer dizer que a fronteira nacional Brasil-Bolívia, que usamos como ponto de partida e modelo de análise e observamos em nossas pesquisas empíricas, viva sob um estado de exceção absoluto que não permita a circulação de pessoas e mercadorias ou restrinja totalmente os direitos dos moradores fronteiriços. Mesmo em outras situações, nessas tantas e distintas fronteiras que são construídas, está claro que as populações não se subme- tem passivamente ao poder soberano, seja por meio de estraté- gias de sobrevivência específicas, seja por processos identitários que se constroem nessas regiões, que vão além dos dispositivos de poder nacionais. O que se pretende demonstrar aqui, porém, é o estabelecimento de uma “governamentalidade”3 específica, a qual transcende nosso caso empírico na fronteira Brasil-Bolívia, que produz e reproduz a fronteira como espaço tutelado, o que permite, por sua vez, o exercício de uma dominação específica (com atuação de quadro administrativo securitizado), utilizan- do uma gramática nacionalista e militar (de exceção) baseada em discursos de medo, perigo e contágio (Costa, 2018). Nessa lógica da guerra e conquista, as múltiplas fronteiras são cons- truídas e representadas de modo binário (tanto territorial, como um limite absoluto entre “lá e aqui”, quanto socialmente, entre “nós e eles”), baseadas em uma série de dispositivos4, discursos e rituais que contribuem para forjar uma alteridade radical en- tre grupos sociais e territórios e produzir novos meios e modos de sujeição social.

Tutela e Exceção: a sujeição fronteiriça

Para pensar nesses processos, utilizaremos o conceito de tutela como uma forma de dominação específica e inscrita em proces- sos de formação do Estado no Brasil. De fato, a dinâmica tutelar pode ser uma chave importante para compreender como o Es- tado estabelece seus modos de gerir a desigualdade social, suas técnicas de diferenciação entre grupos e pessoas e a instauração e reprodução de hierarquias sociais (Souza Lima, 2002, p. 11). Para pensarmos as interseções entre as práticas de exceção e a tutela, dialogaremos com autores como Giorgio Agamben (2004 e 2008), filósofo italiano que vem discutindo o estado de exce- ção como regra nos regimes democráticos, e com os antropólo- gos brasileiros João Pacheco de Oliveira Filho (1988 e 2014) e Antônio Carlos de Souza Lima (1995, 2002 e 2015), que desen- volveram o conceito de tutela como uma forma de dominação específica exercida pelo Estado Brasileiro, não apenas sobre os indígenas ao longo da História, mas como uma “modalidade de exercício de poder de um Estado concebido como nacional” que serve para “fixar as fronteiras da nação” (Souza Lima, 2015, p. 425). Como afirma esse autor:

Pode-se dizer que o exercício de poder tutelar deve ser pen- sado como se integrasse tanto elementos das sociedades de soberania quanto das disciplinares, mas é antes de tudo um poder estatizado em agências que se propõem a ter abran- gência nacional, isto é, estender-se enquanto malha admi- nistrativa por todo o mapa político do país. Sua função é ao mesmo tempo estratégica e tática. Nela, no caso brasileiro, a matriz militar da guerra de conquista está sempre presente no plano retórico (Idem, p. 431)

O poder tutelar é ainda descrito por esse autor, em outro momento, como:

um modo específico de estatização de certos poderes in- cidentes sobre o espaço, através do controle e da alocação diferencial e hierarquizada de populações, para as quais se criam estatutos diferenciados e discricionários nos planos jurídico e/ ou administrativo. O poder tutelar é um exercí- cio de poder desenvolvido frente às populações indígenas, por um aparelho de governo instituído sob a justificativa de pacificar zonas de conflito entre nativos e não-nativos (imi- grantes ou brasileiros), logo, de promover uma dada “paz social” (Souza Lima, 2002, p. 13-14).

Ao longo do texto, vamos articular alguns desses elementos cen- trais em torno da tutela para pensar nos efeitos de uma segu- rança pública cada vez mais militarizada, em âmbito nacional, em que a matriz da guerra e da conquista é colocada em prática, para além de sua permanente retórica, como se observa nas po- líticas de pacificação de favelas (aqui apenas com uma polícia cada vez mais militarizada), nas operações de fronteira (com um conjunto integrado de forças de segurança), nas missões de GLOs (Garantia da Lei e da ordem) e na Intervenção Federal no Rio de Janeiro em 2018 (em atuações conjuntas do Exército com a Polícia Militar). Pretendemos analisar a construção des- sas hierarquias sociais, em função de estratégias e táticas mili- tares e da ação discricionária de agentes e do direito visando à manutenção da “paz social” que só pode ser alcançada através da “guerra”. Outro elemento central da dinâmica tutelar, e que é muito importante para a legitimação da atuação militar na segu- rança pública, é que se trata de uma forma de dominação dirigi- da por princípios contraditórios que envolvem sempre aspectos de proteção e de repressão, acionados alternativamente ou de forma combinada segundo os diferentes contextos e os distintos interlocutores (Pacheco de Oliveira, 2015, p. 130).

Os mecanismos tutelares, em sua ambiguidade, tanto criam quanto se beneficiam da existência de espaços liminares entre o institucional e o pessoal e entre o político e o legal e da pró- pria fronteira como espaço liminar ou “margem”. Em nome da segurança e do combate à violência, abre-se espaço para formas de controle específicos em que as normas podem ser suspensas dentro do próprio direito. Afinal de contas, nesses discursos se- curitizados, trata-se da fronteira, do “front” (onde muitas coisas são permitidas), como um modelo para a ação e enfrentamen- to, onde começa e termina o país, “o limiar” da nação, que está sendo vigiado, protegido e tutelado. A própria tutela é, em si, uma forma excepcional, não ordinária (mas que se torna regra) de exercício do poder sobre aqueles que seriam “incapazes” de gerir suas vidas ou que vivem fora das normas e mesmo da lei e que precisam ser controlados, “educados” e pacificados. Neste sentido, há um aspecto moral fundamental do exercício do poder tutelar, que atua sobre indivíduos potencialmente perigosos (Pacheco de Oliveira, 1988, p. 222), que pode ser definido como:

[Uma] forma de ação para governo sobre espaços (geográficos, sociais, simbólicos), que atua através da delimitação de populações destinatárias de um tipo de intervenção “pedagógica” rumo à capacidade de autocondução moral e política plena como integrantes de uma comunidade política (Souza Lima, 2003, p. 2).

Assim, há sempre a possibilidade, na dinâmica tutelar, de aber- tura à gestão personalizada e discricionária dos tutores, que se colocam em posição moral superior aos tutelados, que precisam ser “educados”, “estabilizados” ou “pacificados”. Essa caracterís- tica inerente ao exercício dessa modalidade de poder, com posi- ções sociais fortemente hierarquizadas e demarcadas, favorece as práticas de exceção, desde o direito nacional, que as sanciona, até as decisões e práticas dos agentes do Estado, em que indiví- duos ou grupos se sentem legitimados a exercer juízos morais, classificar, nomear e agir discricionariamente. De acordo com Pacheco de Oliveira (2014, p. 144), o agente, no exercício da tu- tela, tem sempre uma margem de liberdade, para além das nor- mas, para decidir quem deve privilegiar, controlar, educar e em qual conjuntura específica.

Essa gestão personalizada de controle social e mesmo do exercí- cio da violência pode ser observada nos postos da receita fede- ral, nas blitzes nas estradas, nas grandes operações de fronteira, nas aduanas, nos guichês das polícias federais, nos aeroportos e também nas incursões nas favelas em cenário urbano e assim por diante. É aí que o poder é exercido de fato e pode ser ob- servado em ação, nas suspeitas, procedimentos, interrogatórios, combates, incursões e apreensões. O agente público de seguran- ça, em suas possibilidades de ação e no uso desses micropode- res, se torna o “soberano” nas mais diversas situações cotidianas e de rotina, reproduzindo não apenas suas técnicas de treina- mento e capacidade para o exercício da profissão, mas também suas visões de mundo, empatias, assim como a reprodução de estereótipos, de seus preconceitos raciais, de classe, de gênero, xenofobia etc.

Na construção histórica da fronteira como área de segurança na- cional há uma pressuposição tácita de que possíveis quebras de direitos fundamentais, como o de ir e vir, assim como a ampla permissão para a atuação discricionária de agentes, que devem desconfiar de todos e proteger o território nacional de ameaças, são fatos “normais”, naturalizados no cotidiano e até legitima- dos pela população nas revistas em ônibus para Campo Grande ou na aduana. “É fronteira, né? Aqui é assim mesmo”, “Fazer o quê? É muito tráfico, muito crime”. Estas são frases repetidas em várias entrevistas realizadas, como se fosse o preço a pagar por viver nessas regiões. A grande maioria dos moradores da região já foi revistada e como disse um entrevistado: “só de ter placa de Corumbá na estrada, você é parado mil vezes daqui até São Paulo”. Há, em grande medida, uma interiorização desse medo e a reificação do estigma da fronteira como lugar “perigoso”, como lugar da “desordem”, por quem vive de fora da fronteira e mesmo pelos próprios moradores fronteiriços, que absorvem esta “pe- dagogia” nacional e passam a demandar a lei em sua face mais autoritária e punitiva: “todo mundo tem que passar por isso. É chato, mas é pra nossa proteção”.

Nesses discursos, amplamente difundidos na imprensa5, a fronteira aparece como “culpada” pelos males do país, como a “porta de entrada” de drogas, armas, doenças e mesmo de pessoas indesejáveis, estigmatizada como um lugar “peri- goso e abandonado” (Albuquerque e Paiva, 2015, p. 121) ou moralmente ameaçadores e impuros (Dorfman, 2013, p. 16). Isso contribui para produzir e reproduzir uma acei- tação social de que a fronteira seja um espaço distinto do resto do território nacional e que precisa ser protegido e ordenado, legitimando práticas excepcionais em que todos são suspeitos em potencial.

Tal caracterização negativa da fronteira como espaço ex- cepcional e perigoso, que não se restringe apenas aos dis- cursos dos moradores, é fundamental para a construção e legitimação de um modelo para a atuação do Estado, que é reproduzido por todo o território nacional, em distintos contextos e demandas por segurança. De fato, segundo Al- varez e Salla (2013), há a crescente interseção entre os dis- cursos de segurança nacional e de segurança pública nas regiões de fronteira, que redesenham as políticas e práti- cas nestes locais. Além disso, segundo Machado da Silva (2014, p. 19), as políticas para a fronteira acabam reifican- do-as como possíveis “lugares de exceção”, em que todos são suspeitos em potencial e em que se exerce o “caráter extralegal da dimensão coercitiva dos controles sociais que organizam o sistema de dominação”.

As fronteiras são, portanto, concebidas pela administração estatal como regiões peculiares, em constante estado de li- minaridade, perigo e contágio, ameaçadas de se tornarem “terras de ninguém”, reificando o binômio “ordem x desor- dem”. O Estado contribui para construir essas fronteiras discursivamente como “zonas anômicas”, ou “incertas” ou “espaços vazios”, situadas entre o direito e a política, entre um Estado nacional e outro, entre o direito e a vida (Agam- ben, 2004). Essa liminaridade da fronteira se torna, então, o espaço ideal para o exercício do poder tutelar de exceção, o qual não está “nem fora nem dentro”: está fora e além e ao mesmo tempo pertence à ordem jurídica, o que intro- duz no próprio direito uma “zona de anomia”. A fronteira se constitui como o local “onde tudo pode e nada pode”, abrin- do caminho para o exercício da violência física e simbólica por parte do Estado em um espaço concebido em perene “estado de necessidade”.

Assim, as fronteiras podem ser compreendidas também como “margens do Estado”. Como afirmam Das e Poole (2008), as margens podem ser estudadas como pressupostos necessá- rios ao Estado, cuja chave são as relações entre violência e sua função ordenadora, ao contrário de suas imagens cristalizadas como uma entidade transcendente, racionalizada, que detém o monopólio da violência física, centralizada burocraticamente e associada à ordem. Em sua leitura, o Estado aparece sempre de modo imanente, como algo incompleto, “que deve ser sempre enunciado e imaginado, invocando o selvagem, o vazio, o caos”, que, por sua vez, aparecem como elementos de fora de suas fronteiras, ameaçando-o por dentro (Idem, p.23).

Para os debates atuais realizados em torno de uma Antropolo- gia do Estado no Brasil6, as duas autoras trazem três conceitos de margem, que têm tido ampla discussão teórica no país e que afetam diretamente as discussões aqui apresentadas: 1. A mar- gem como periferia, na qual as pessoas são insuficientemente socializadas nos marcos da lei. Aí aparecem as tecnologias do Estado para pacificar e manejar populações, as pedagogias de conversão de “sujeitos rebeldes em sujeitos do Estado”; a cons- trução de “outros” e de fronteiras em que a alteridade racial, na- cional, entre outras, aparece como sinal de falta de civilização (Das e Poole, 2008, p. 24); 2. A margem entre a legibilidade e ilegibilidade, nas fronteiras entre o legal e o extralegal, em que o Estado se constrói a partir de práticas escritas que consolidam o controle sobre sujeitos, populações e territórios. Isso nos leva a questionar essa legibilidade do Estado, pensando os diferentes espaços em que o Estado está sendo “constantemente experi- mentado e desconstruído”, a partir da própria “ilegibilidade de suas práticas, documentos e palavras”, no exercício da violência e de práticas extralegais (Idem, p. 25); 3. A margem como espaço entre corpos, a lei e a disciplina, o que implica pensar em como o poder soberano é exercido diretamente sobre os corpos, em que a atividade biopolítica se constitui como a “atividade originária” deste poder; o que nos leva a considerar as margens como um local de produção das categorias do patológico, da anormalida- de, das enfermidades, em torno de temas distintos como o racis- mo, distinção de gênero, de classe social, etc. (Idem, p. 25).

Esses três conceitos de margem podem lançar luz sobre a cres- cente militarização das políticas de lei e de ordem no Brasil: em um contexto mais amplo de securitização das sociedades con- temporâneas, não apenas as fronteiras dos Estados nacionais se constituem como alvo, mas também outras margens, como as periferias e favelas das grandes cidades atuais, por exemplo, se “fronteirizam” sob discursos semelhantes de construção de alte- ridade. Esse pressuposto é confirmado pelas discussões desen- volvidas por Ferreira (2009), que entende as fronteiras como um “laboratório de políticas de controle” e ao mesmo tempo como uma região de exceção, e Hirata (2015), que as aponta também como “laboratórios” da militarização da segurança pública no Brasil, produzindo o “efeito bumerangue”7, apontado por Fou- cault (2010) em direção aos grandes centros urbanos. Assim, é provável que estejamos diante de um processo, em curso, em que novas práticas, experiências e tecnologias militares de con- trole estão sendo aplicadas em cidades a partir das experiências das Forças Armadas realizadas nas operações fronteiriças e no exterior, como afirma Graham (2016) ao demonstrar que o novo urbanismo militar “se alimenta de experiências com estilos de objetivos e tecnologia em zonas de guerras coloniais” (Graham, 2016, p. 30).

O caso mais significativo de atuação desses dispositivos para além das fronteiras foi a participação das Forças Armadas do Brasil na Missão de Estabilização das Nações Unidas no Hai- ti (Minustah) entre 2004 e 20178, com policiamento urbano, e desenvolvimento da expertise militar para enfrentar situa- ções de confronto com “forças hostis” em meio a moradores, de certo modo similares às das “comunidades” e “favelas” dos grandes centros urbanos brasileiros. Destaca-se neste senti- do a ação nas “favelas” Cité Militaire, Bel Air e principalmente em Cité Soleil, em uma operação denominada “Punho de Aço” com atuação de 440 militares comandados pelas forças Arma- das do Brasil, em julho de 2005, que terminou com a morte de Emmanuel Wilmer, vulgo Dread, chefe de uma “gangue” local9. Ressalta-se também, nesta dinâmica tutelar, entre a proteção e a repressão, a importância para a legitimação do seu poder das ações de ajuda humanitária, atendimentos médicos e so- ciais realizados pelas Forças Armadas, durante o terremoto no Haiti, em 201010, e a epidemia de cólera que se seguiu no ano seguinte naquele país.

Em pesquisas realizadas nos últimos dez anos (Costa, 2013, 2014, 2015, 2016, 2018), percebemos que as populações fron- teiriças, e principalmente as pessoas que dependem do cruza- mento diário das fronteiras para sobreviver e trabalhar (no caso de Corumbá, os bolivianos e seus descendentes), são os objetos principais da tutela do Estado, alvo de ação pedagógica e moral e das práticas de exceção que ocorrem desde os interrogatórios de rotina nas aduanas, nas revistas nos ônibus, nas reportagens de jornais locais, passando até pelas escolas em que moradores com dupla cidadania são “nacionalizados” através de currículos escolares, da cultura, dos comportamentos e assim por diante. É através da disciplina do corpo, também, que o tutor impõe o po- der sobre o tutelado, daí a importância dos checkpoints e adua- nas nas fronteiras e aeroportos. São esses estrangeiros e os “cru- zadores” de fronteira que serão considerados como indivíduos perigosos, sejam por supostos crimes que cometeriam, sejam por constituírem uma ameaça aos valores e à “cultura nacional”, sejam como portadores de doenças. O estrangeiro é represen- tado como alguém externo, alheio, “de fora” da sociedade, dos padrões de civilidade e em casos mais extremos até mesmo da humanidade. Ele pode ser visto por isso mesmo como uma me- táfora das relações tutelares de poder, espécie de modelo para a aplicação do controle, hierarquização, violência, sujeição e ex- clusão de diferentes categorias sociais, como moradores de fave- las, periferias, indígenas, entre outros: são aqueles que estão do lado de lá da fronteira.

Observamos, em pesquisa anterior na fronteira Corumbá-Puer- to Quijarro (Costa, 2015), a existência de uma forte assimetria entre brasileiros-bolivianos, o que contribui ainda mais para a prática dos dispositivos tutelares. Há uma clara pressuposição de superioridade por parte dos brasileiros (“civilizados”, “ri- cos”, “saudáveis”, “limpos” etc.) em relação aos bolivianos (“ín- dios”, “bugres”, “sujos”, “traiçoeiros”, “pobres”, “enfermos”). Os bolivianos são representados a partir de uma dupla alteridade “negativa”, como se estivessem além de duas fronteiras distin- tas e sobrepostas: como índios e estrangeiros. Essas visões se baseiam, portanto, em estruturas simbólicas e em sistemas clas- sificatórios de longa duração no Brasil e, especificamente, em Mato Grosso do Sul, construídas em torno de representações e classificações duais em relação ao outro: índios/ brancos, brasi- leiros/estrangeiros, justificando a ação tutelar11.

Podemos considerar que esses são processos de “sujeição fron- teiriça”, que legitimam e produzem a separação de pessoas, grupos sociais e territórios de modo dual e binário entre “nós e eles” e dos que estão “lá” e “aqui” ou “dentro” e “fora” da própria “sociedade”. Esses processos de sujeição têm de ser compreen- didos em sua “dupla valência” de sujeição e subordina

Podemos considerar que esses são processos de “sujeição fron- teiriça”, que legitimam e produzem a separação de pessoas, grupos sociais e territórios de modo dual e binário entre “nós e eles” e dos que estão “lá” e “aqui” ou “dentro” e “fora” da própria “sociedade”. Esses processos de sujeição têm de ser compreen- didos em sua “dupla valência” de sujeição e subordinação (Bu- tler, 2017, p. 10). De acordo com essa autora:

A sujeição consiste precisamente nessa dependência funda- mental de um discurso que nunca escolhemos, mas que, pa- radoxalmente, inicia e sustenta nossa ação. Sujeição significa tanto o processo de se tornar subordinado pelo poder quanto o processo de se tornar um sujeito (Butler, 2017, p. 10).

Esses processos de “sujeição fronteiriça” se enquadram ainda no que Fassin (2011) chama da “biopolítica da alteridade”. Esse au- tor entende que essa “governamentalidade” da imigração é uma das principais questões das sociedades contemporâneas. Base- ado em dados de pesquisas na Europa e nos Estados Unidos, o autor aponta para o recrudescimento do policiamento das fron- teiras físicas entre os países, ao mesmo tempo em que se (re) produzem fronteiras raciais internamente. Esse processo ocorre em um contexto internacional, em que há, por um lado, uma fa- cilitação da circulação de bens e mercadorias e, por outro, o au- mento das coerções e controles sobre a mobilidade de pessoas. Há, portanto, uma interseção entre essa dimensão pedagógica, que visa controlar indivíduos potencialmente perigosos que é característica da tutela, e a dimensão do outro como perigoso nesses processos de sujeição, em que juízos morais parecem se inscrever também no corpo do “outro” para que possa ser “nor- malizado”, controlado e disciplinado.

Assim, a fronteira aparece como símbolo e modelo, como um paradigma do poder para a construção de formas de sujeição, de práticas de exceção e construção de hierarquias que contri- buem para o exercício da tutela: é preciso construir o “outro” que não pertence à sociedade e que está “além da fronteira”. Essa é uma premissa para legitimar uma separação adminis- trativa de grupos sociais e territórios através de políticas de segurança, o que implica na construção de

Fronteiras por Toda Parte: o fetiche da ordem

Em Corumbá, observei pessoalmente a operação “No Caminho”, deflagrada no dia 02 de julho de 2013 e descrita no início deste texto. Essa ação fechou muitas “lojinhas”, nas quais trabalha- vam majoritariamente bolivianos ou brasileiros de origem bo- liviana, com a presença ostensiva da Polícia Federal, de agentes da Receita Federal e com o apoio do Exército, com caminhões e armamento pesado circulando pela cidade, algo inédito até então para operações de coibição do comércio informal12. O elemento novo dessa ação conjunta foi o fato de que ela não visou apenas apreender mercadorias ilegais, mas teve intenção de fechar os pontos de comércio cujos donos são majoritaria- mente de origem boliviana de modo exemplar e espetacular: com a presença dos militares. A operação “No Caminho” fun- cionou, portanto, como um ritual que demarcou simbolica- mente que aquele território faz “parte do Brasil” e que a cidade de Corumbá não toleraria mais o comércio “ilegal” e exercido por “estrangeiros”. O próprio nome da operação faz alusão ao crime de “descaminho”, que consiste em fraudar o pagamento de tributos em razão da entrada, saída ou consumo de merca- dorias não proibidas no país; além disto, sugere colocar a si- tuação no “caminho certo”, restabelecendo a ordem em meio à anomia, impondo sua pedagogia de conversão, disciplinando o comércio e as práticas dos comerciantes. A presença do Exér- cito, instaurando novos rituais de segurança pública, simboliza uma materialização do “Brasil” diante de comerciantes em sua maioria bolivianos. Sua atuação e visibilidade ostensiva visa, portanto, a moralização daquele espaço e a demonstração que esse comércio era entendido não apenas como algo ilegal, mas como uma ameaça, ou mesmo como uma afronta à nação. O deslocamento de caminhões e veículos blindados, com solda- dos armados para dar suporte à apreensão de mercadorias de camelôs e pequenos lojistas, configura um claro exemplo de que a fronteira é entendida como um espaço tutelado de exce- ção diferenciado pelo poder público.

Para que haja a legitimação do poder, é fundamental a produção de imagens e símbolos que reforcem o exercício da dominação, a partir de sua organização e apresentação num quadro ritual e cerimonial, de acordo com Balandier (1982). Este autor enten- de que todo poder opera como um dispositivo que se destina à produzir efeitos (tanto pelo agir quanto pelo representar) e em qualquer forma de organização política está sempre presen- te, “governando dos bastidores”, o que chama de “teatrocracia” (Idem, p. 5). Neste sentido é indissociável pensarmos que o go verno comanda o “real pelo imaginário”, em demonstrações de seu poder através do espetáculo, do drama e da teatralidade.

O poder estabelecido unicamente sobre a força ou sobre a violência não controlada teria uma existência constan- temente ameaçada; o poder exposto debaixo da ilumina- ção exclusiva da razão teria pouca credibilidade. Ele não consegue manter-se nem pelo domínio brutal e nem pela justificação racional. Ele só se realiza e se conserva pela transposição, pela produção de imagens, pela manipulação de símbolos e sua organização em um quadro cerimonial (Balandier, 1982, p. 7).

O poder para ser eficaz precisa dispor de meios espetaculares, seja para reforçar sua história, expor os valores que exalta, seja para afirmar sua força. Entendemos, então, que os rituais, basea- dos na leitura de Peirano (2006), são um instrumento privilegia- do de análise que pode contribuir para a observação de eventos críticos da sociedade, assim como das relações do poder e da própria política, ao intensificar e exagerar o que é ordinário e co- tidiano. Essa perspectiva permite ao pesquisador compreender elementos fundamentais das estruturas sociais, em que atos e representações são inseparáveis, pois “como atos de sociedade, os rituais revelam visões de mundo dominantes ou conflitantes de determinados grupos. São essas visões de mundo que preten- demos atingir” (Peirano, 2006, p. 11). Estudar a dimensão ritual do poder nos permite ter acesso à “natureza expressiva” e à “ca- pacidade semiótica” do Estado no sentido proposto por Geertz (2016) ao estudar o Estado balinês. Esse “conteúdo sagrado do poder soberano” (Geertz, 2013, p. 127), em seus aspectos sim- bólicos, solenes, rituais e cerimoniais, não deve ser lido apenas como se fosse um mero artifício do poder para alcançar objetivos de determinado governo, de modo extrínseco à dominação social (Geertz, 2016, p. 242). A dramaturgia do poder, observada em seus rituais públicos, é inerente ao seu funcionamento, faz parte da própria “essência” do poder, sem o qual sua força e do- minação não podem ser exercidas.

Observamos ao longo dos anos de pesquisa em Corumbá a efi- cácia e ressonância dos rituais públicos militares, como é o caso dos feriados e desfiles cívicos de 7 de setembro (feriado da Inde- pendência) e o da “Retomada de Corumbá”, no dia 13 de junho, em comemoração da vitória e retirada das tropas paraguaias da cidade durante a Guerra da Tríplice Aliança. A partir das análi- ses de Roberto da Matta (1996), podemos considerar que todos esses ritos militares na fronteira atualizam “estruturas de auto- ridade”, uma vez que a população presta homenagem às Forças Armadas, como espectadora de sua passagem quase sagrada, cujo “sinal paradigmático” é a continência13 às autoridades que encar- nam os símbolos da pátria. De acordo com esse autor, a parada militar, como um desfile oficial de uma “corporação perpétua, re- presentativa do poder nacional” (da Matta, 1997, p. 56), cria um sentido de unidade e identidade nacional, ao mesmo tempo em que separa de modo explícito as autoridades do povo, reafirman- do a hierarquia e as distinções sociais, assim como as relações de poder por meio desta dramatização (da Matta, 1997, p. 31).

Do mesmo modo, as recentes operações de segurança na fron- teira com a presença de militares, como por exemplo Ágata, No Caminho e Sentinela, também possuem uma dimensão ritual que produz uma performance coletiva para atingir determina- dos fins, já que são eventos que se repetem ou se alternam, que têm uma ordem que os estruturam (ao mesmo tempo “criam or- dem e são a ordem”) e uma delimitação num tempo e espaço, além de serem percebidos pela população como eventos distin- tos dos acontecimentos cotidianos (Tambiah, 1979, p. 116-7). Esses rituais, para Tambiah, têm tanto um sentido e conteúdo semânticos, que configuram um sistema de comunicação sim- bólica, quanto um sentido prático, pragmático e formal, como ação social intencional na busca e disputa por resultados e fins. O conteúdo simbólico e sua forma, assim como sua performan- ce e força dramática, combinados, contribuem para sua eficácia e ressonância sociais, traduzindo elementos culturais de longa duração, acionando crenças e tradições culturais e reforçando hierarquias sociais (Tambiah, 1979 e 1985). Assim, essas ope- rações espetacularizam a presença militar na fronteira e con- tribuem para naturalizar um ethos militar, reforçar a crença em seu poder e difundir perante a população fronteiriça a ideia de que o Exército, a Marinha e Aeronáutica possuem uma missão protetora e civilizatória, um poder “moralizador” que propicia a manutenção da lei e da ordem e garante a “democracia” e a “paz”, associando sua presença a um “orgulho nacional” e a uma sensa- ção de segurança pelo aparato militar fronteiriço (fortificações, contingente, veículos blindados e armamentos).

A Operação Ágata foi instituída em 2011 (com 11 operações até 2016) pelo Ministério da Defesa, dentro da concepção do Plano Estratégico de Fronteira (PEF), programa criado para o fortale- cimento da prevenção, controle, fiscalização e repressão dos de- litos transfronteiriços e de outros crimes praticados na faixa de fronteira, por meio do Decreto nº 7.638. De acordo com Figuei- redo (2017), que apresenta em seu estudo um histórico e análi- se da Operação Ágata, o PEF era considerado um dos principais programas federais para a proteção da Faixa de Fronteira, através da atuação integrada das Forças Armadas, da Receita Federal, dos órgãos de Segurança Pública Federais e dos Estados, assim como dos órgãos correspondentes dos países vizinhos. Em novembro de 2016, o Plano Estratégico de Fronteiras foi substituído pelo Programa de Proteção Integrada de Fronteiras (PPIF), que mante- ve o foco na questão dos delitos e crimes transfronteiriços. O que mudou efetivamente, segundo a autora, foi a gestão do Programa (Figueiredo, 2017, p. 80). No novo programa foi criado o Comitê-Executivo, composto por: Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República; Agência Brasileira de Inteligência; Esta- do-Maior Conjunto das Forças Armadas, do Ministério da Defesa; Secretaria da Receita Federal do Brasil, do Ministério da Fazenda; Departamento de Polícia Federal, do Ministério da Justiça e Cida- dania; Departamento de Polícia Rodoviária Federal, do Ministério da Justiça e Cidadania; Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça e Cidadania; e Secretaria-Geral do Minis- tério das Relações Exteriores. De acordo com Figueiredo (Idem, p. 82), a operação Ágata passou, ainda, por mudanças importantes após o governo Temer, sendo realizada de modo contínuo e com efeito surpresa, organizada de modo sigiloso, ao contrário das an- teriores que eram previamente divulgadas.

A Operação Ágata, especificamente, em sua dimensão ritual, como uma ação expressiva que comunica os valores e fundamen- tos ideológicos das Forças Armadas (Ordem, Pátria, Segurança), é um exemplo claro dessa redefinição do papel dos militares, que estabelecem um padrão de atuação e técnicas de controle que podem ser replicadas para outros centros urbanos e territórios do país. O Exército, principalmente, assume, legalmente, cada vez mais o papel de polícia (para coibir desde a imigração ilegal, como garimpos, narcotráfico e crimes ambientais) atuando na liminaridade entre a segurança pública e nacional. Desta forma, o Exército empenha seu carisma institucional nessas operações, a partir de uma imagem de instituição moralmente transcen- dente, e acaba sendo visto (por parte da população e por seus membros) como um signo do poder, como a corporificação do Estado, da lei e da ordem. Contribuem para essa força semiótica de sua atuação, nas diversas fases das operações Ágata, os aten- dimentos médicos e odontológicos de populações ribeirinhas ou mais carentes das cidades fronteiriças14, reforçando esta característica fundamental do poder tutelar, que alterna a proteção com sua dimensão mais repressiva.

Na defesa dos interesses nacionais, as Forças Armadas têm atuado de modo integrado com outros setores do Estado. Essa coordenação de esforços é visível em ações como as destina- das a garantir a segurança das fronteiras brasileiras. Em ju- nho de 2011, o Governo Federal lançou o Plano Estratégico de Fronteiras (PEF), destinado a reforçar a presença do Estado nas regiões de divisa com dez países vizinhos. Com o plano, ações executadas por diversos entes estatais na prevenção e combate a crimes transfronteiriços – como a entrada de armas e drogas no país – passaram a ser integradas, ampliando seu impacto. Sob a coordenação direta do vice-presidente da Re- pública, o Plano Estratégico de Fronteiras é formado por duas operações: a Sentinela e a Ágata. A Operação Sentinela, co- ordenada pelo Ministério da Justiça, tem ações centradas no trabalho de investigação e inteligência e na atuação conjunta de órgãos federais de segurança (Polícia Federal, Polícia Rodo- viária Federal e Força Nacional de Segurança). Já a Operação Ágata – coordenada pelo Ministério da Defesa, por intermédio do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA)

– mobiliza efetivos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica para atuar, de forma episódica, em pontos estratégicos da fronteira. Durante a operação, são realizadas missões táticas destinadas a coibir delitos como narcotráfico, contrabando e descaminho, tráfico de armas e munições, crimes ambientais, imigração e garimpo ilegais. As ações abrangem desde a vigilância do espaço aéreo até operações de patrulha e inspeção nos principais rios e estradas que dão acesso ao país15.

A fronteira, assim, é entendida, em grande medida, pelos pró- prios discursos militares como se fosse sua “propriedade”, quase como um fetiche sacralizado em seus inúmeros marcos, bandei- ras, uniformes, equipamentos, rituais e fortificações. É para a fronteira que as Forças Armadas existem, para defender o ter- ritório nacional dos inimigos externos. É a gramática da guerra, da fronteira como limite que conforma esse ethos e esse “espí- rito” militar. Além disto, a fronteira é manifestada como rito de passagem profissional, destino e finalidade da carreira militar. Até mesmo a imagem do “degredo” ou “exílio” a que os militares seriam submetidos na fronteira, distante de suas famílias e ami- gos, nos “confins da nação”, contribuem para esse caráter sagrado da fronteira, como uma espécie de sacrifício da carreira do militar em nome do bem comum e que deve ser recompensado e reco- nhecido pela sociedade. É preciso destacar, portanto, a importân- cia dessa dimensão moral e pedagógica do poder tutelar militar, que envolve a ideia de uma “missão”, resumida no lema “Braço forte, Mão amiga”: deve-se “proteger” a população, o território e a pátria, restabelecer a “ordem em meio à desordem”, quase como um tipo ideal do que chamamos de ethos militar, de defesa da pá- tria. Este ethos seria o símbolo máximo da tutela, na relação entre autoritas – tutor – pater, apontada por Agamben (2004).

Constrói-se um discurso, amparado na doutrina elaborada pela ESG, em que os militares brasileiros aparecem como fundamentais para a manutenção da ordem pública, para garantir da organicidade do meio social e para o desenvol- vimento do Brasil. (…) a ideia “do destino manifesto do mili- tar foi motivada pela formação profissional desenvolvida na instituição de que ao soldado compete a missão providen- cial de salvar a pátria”, fazendo com que a “intervenção dos militares na esfera política” apareça “como legítima e neces- sária para a preservação dos interesses maiores da nação: a ordem institucional (Silva, 2016, p. 134).

Essa redefinição das fronteiras e do papel das Forças armadas não ocorre apenas no Brasil, o que demonstra ser uma tendên- cia cada vez maior na contemporaneidade, redefinindo a gestão dos territórios e populações nacionais. O caso argentino recen- te, para nos atermos apenas à América do Sul, é outro exemplo bastante ilustrativo da mudança recente do papel das Forças Ar- madas em direção à segurança interna, utilizando como justifi- cativa as regiões de fronteira como portal das ameaças à nação.

Em 24 de julho de 2018, foi publicado o decreto 638 sobre a “re- forma das Forças Armadas e na Defesa Nacional”. Nesse decreto foram introduzidas cinco mudanças em relação ao antigo decre- to 727/06 e revogou-se também o decreto 1691/06, do governo Néstor Kirchner. De acordo com reportagem do jornal El País16 (24 de julho de 2018), o presidente Mauricio Macri anunciou a intenção de “modernizar” as Forças Armadas para enfrentar os “desafios do século XXI”, como o narcotráfico e o terrorismo.

Essa é uma iniciativa inédita de militarização da segurança públi- ca na Argentina desde o final da ditadura militar em 1983, quando as Forças Armadas daquele país foram separadas das funções de segurança interna. Em reportagem do Clarín17 fica claro que no artigo 1° as forças armadas “serán empleadas en forma disuasiva o efectiva” en “agresiones de origen externo”, como indicava o decre- to 727, mas retirando a necessidade de participação de “fuerzas armadas pertenecientes a otro/s Estados/s”. Assim, modifica-se o papel das Forças Armadas: de um efetivo pronto para uma pos- sível guerra com outro Estado nacional para um agente de con- trole de ameaças mais diversas, inclusive “dentro” do território nacional, como o narcotráfico, terrorismo e assim por diante (o que abre espaço para o poder discricionário do soberano para de- cidir quais os novos alvos da política de defesa nacional). O arti- go 3° também é modificado em relação à sua versão anterior, que proibia contemplar “hipótesis, supuestos y/o situaciones pertene- cientes al ámbito de la seguridad interior” para “la planificación, adiestramiento y la formulación doctrinaria” do Sistema de Defesa Nacional, reformulando a atuação das Forças Armadas argentinas para a defesa interna (o que certamente abre espaço para con- templar seu possível papel de “polícia” e atuação para o combate à criminalidade, por exemplo). Há ainda uma mudança substancial na qual o Sistema de Defesa Nacional “ejercerá la custodia de objetivos estratégicos”. Como esses objetivos estratégicos não estão definidos no decreto, pode-se supor que o poder tutelar militar poderá atuar dentro do território nacional argentino, e não apenas em suas fronteiras, para combater as possíveis ameaças à segurança nacional em questões decididas pelo Presidente ou governo (que podem abranger desde a criminalidade, possíveis atos de terrorismo, mas também manifestações, bloqueios de estradas e assim por diante).

Em nome de novas ameaças, reproduzidas discursivamente, os Estados nacionais põem em prática, então, novas estratégias de controle das populações e territórios em suas margens, rede- finindo as técnicas e dispositivos de poder do governo que in- cidem diretamente sobre a vida das pessoas, que precisam ser “administradas” e “pacificadas”, “estabilizadas”, “tuteladas” ou “integradas” a projetos nacionais de segurança, saúde pública, educação, “desenvolvimento”, e assim por diante. As fronteiras, então, aparecem menos como um lugar onde o Estado não con- seguiu impor sua ordem e mais como um local em que o Estado “se faz Estado”, em constante demanda para aplicar técnicas de ordenamento, de controle e vigilância (Das e Poole, 2008). O in- teressante é que o sentido desse processo de construção dos Es- tados nacionais e da delimitação de suas fronteiras se deu muitas vezes das margens em direção ao centro e não ao contrário. Aqui se coadunam a ambiguidade e a liminaridade das fronteiras e do próprio direito (com sua força de lei para a exceção), que permi- tem essa atuação distinta do Estado nestas “zonas cinzentas” de indeterminação. Como o próprio Agamben (2004) afirma:

Na verdade, o estado de exceção não é nem exterior nem in- terior ao ordenamento jurídico e o problema de sua definição diz respeito a um patamar, ou a uma zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem, mas se indeterminam. A suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou, pelo menos, não preten- de ser) destituída de relação com a ordem jurídica. (Agamben, 2004, p. 39) (...) O aspecto normativo do direito pode ser impunemente eliminado e contestado por uma violência go- vernamental que produz um estado de exceção permanente, mas que pretende ainda aplicar o direito – coloca em questão – o próprio direito e o estado (Agamben, 2004, p. 131).

No caso brasileiro, os próprios termos constitucionais determi- nam o papel legal das Forças Armadas, em seu artigo 142, como defensoras da pátria e da “ordem”. A ideia de ordem não está definida, abrindo espaço para uma indistinção entre o legal e o político, podendo variar bastante de acordo com as conjunturas, interesses políticos e momentos históricos:

As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exér- cito e pela Aeronáutica, são instituições nacionais perma- nentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer des- tes, da lei e da ordem (grifos meus) (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).

Nesse pressuposto constitucional há a abertura de espaço para que até mesmo o soberano também possa agir de modo tutelar, discricionário e personalizado. Seja na figura do Presidente da República, seja dos poderes constitucionais, que determinam o que venha a ser uma “ameaça” à pátria, o poder soberano pode lançar mão das Forças Armadas para definir, de acordo com con- junturas políticas, o que seja a perturbação da lei e da ordem (que pode ser a violência nas cidades, o terrorismo, o comba- te ao tráfico de drogas e contrabando nas fronteiras ou mesmo manifestações políticas nas ruas18 ou a possível criminalização de movimentos sociais, como acontece em uma série de países). Um exemplo significativo, em torno da militarização da seguran- ça pública, é a mudança na lei sancionada pelo então presidente Michel Temer em outubro de 2017 que transferiu para a Justiça Militar (de modo permanente) e não mais pelo Tribunal do Júri o julgamento de crimes contra a vida, em possíveis mor- tes de civis, cometidos por profissionais das Forças Armadas em missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO)19. Agamben (2004) traz figuras do direito romano como o iustitium (que instaura o estado de necessidade) para controlar os possíveis tumultus, com a finalidade de manutenção da res publica. É justamente essa possibilidade de interpretar o que sejam essas ameaças à lei e à ordem que tornam possível, nos termos da lei, a crescente militarização da sociedade brasileira, e a redefinição das Forças Armadas exercendo papel de polícia, no que Graham chama de “renovação autoritária”, em que a lei é usada para suspender a lei, nos “estados de necessidade” nos termos de Agamben (2002 e 2004). São exemplos claros desses processos os decretos de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs) e a intervenção militar na segurança pública no estado do Rio de Janeiro em 2018.

Realizadas exclusivamente por ordem expressa da Presi- dência da República, as missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ocorrem nos casos em que há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves si- tuações de perturbação da ordem. Reguladas pela Consti- tuição Federal, em seu artigo 142, pela Lei Complementar 97, de 1999, e pelo Decreto 3897, de 2001, as operações de GLO concedem provisoriamente aos militares a facul- dade de atuar com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade. Nessas ações, as Forças Armadas agem de forma episódica, em área restrita e por tempo limitado, com o objetivo de preservar a ordem pública, a integridade da população e garantir o funcionamento regular das instituições. A decisão sobre o emprego excepcional das tropas é feita pela Presidência da República, por motivação ou não dos governadores ou dos presidentes dos demais Poderes constitucionais20.

Essas medidas de exceção para garantir a lei e a ordem no Bra- sil podem ser um indicativo de uma tendência internacional de atuação militar do Estado em suas mais distintas margens e em diversos contextos sociais (as favelas, guetos, campos de refu- giados, cracolândias, bairros de imigrantes, de minorias étnicas e assim por diante). Agamben (2002 e 2004) afirma que o esta- do de exceção é um paradigma de governo (de algo provisório para técnica permanente), que impõe uma espécie de totalita- rismo moderno, ou “guerra civil legal”, e prevê a eliminação ou sujeição e controle de categorias inteiras de cidadãos que pare- çam não integráveis ao sistema político e nacional. De acordo com Graham (2016, p. 29), está em curso uma transformação na natureza dos Estados-nação, que cada vez mais afastados da ideia de uma comunidade de cidadãos que habita seu interior, policiam suas relações com o “exterior” e se tornam, por sua vez, sistemas internacionais de controle dos fluxos de pessoas e circulações consideradas “de risco” e perigosas, atuando para aquelas que devem ser protegidas. De acordo com esse autor, essas “fronteiras onipresentes” ocorrem tanto para dentro dos territórios nacionais quanto para fora, tornando indistintas as fronteiras internacionais e as fronteiras urbanas e locais (Idem). Para Graham, o “novo urbanismo militar” multiplica os pontos de controle e ações contínuas das chamadas “guerras securo- cráticas”, que não têm data para acabar e não são mais territo- rializadas (contra as drogas, o crime, o terror, a imigração ilegal e ameaças biológicas) (Idem, p. 76). Um exemplo importante dessa redefinição das políticas de segurança e das “fronteiras onipresentes”, replicando o modelo de controle da fronteira para dentro do território nacional, mas com a polícia utilizando técnicas de ocupação militar de territórios, foi a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro, reproduzindo modelos de gestão tutelar de longa duração no processo de construção da nação brasileira.

Ao que visam as “ações pacificadoras” no contexto atual do Rio de Janeiro? A resposta parece simples — objetivam restaurar o controle estatal (leia-se militar) sobre as fave- las ocupadas pelo tráfico. Há aqui uma clara analogia com as “pacificações” coloniais, dirigidas contra as aldeias dos autóctones que não se submetiam voluntariamente às auto- ridades administrativas e religiosas da época. (…) Os execu- tores da política de segurança e os policiais em geral imagi- nam os morros usualmente como “o espaço do inimigo”. Os habitantes das favelas, à diferença dos demais cidadãos, são vistos como colaboradores em relação ao seu próprio mal, portadores de uma permissividade ou insuficiência moral que não os distingue suficientemente do crime organizado (Pacheco de Oliveira, 2014, p. 138).

Outro caso significativo, no Brasil, de proliferação das “frontei- ras onipresentes” foi a autorização dada pelo governo Temer para a Intervenção Federal no Rio de Janeiro, em 201821. Este é um expediente previsto pela Constituição Federal, mas que nunca tinha sido usado, em que a segurança pública do Estado ficou sob responsabilidade e tutela das Forças Armadas. No caso do Rio de Janeiro foi preciso invocar o inciso três do artigo 34 da Constituição Federal, que a autoriza para “pôr termo a gra- ve comprometimento da ordem pública”. Na página na internet do “Gabinete da Intervenção Federal”, vinculado à Presidência da República, aparece o seguinte comunicado em que a ideia de ordem está atrelada ao funcionamento “normal” da sociedade e as Forças Armadas aparecem como símbolos e agentes da “nor- malização” ou retorno à ordem e proteção das pessoas nas pos- síveis Intervenções Federais:

Ordem pública é o funcionamento normal da sociedade. Pode se referir a instituições, empresas, universidades, es- colas, hospitais etc. A ordem é uma situação em que se ga- rante a incolumidade física, mental e dos bens das pessoas. Foi esse o caso do Rio de Janeiro, onde foi decretada a Inter- venção Federal até 31 de dezembro de 201822.

A Vila Kennedy, na cidade do Rio de Janeiro, aparece como um exemplo emblemático dos efeitos sociais da militarização da segurança pública ao ser considerada como um “laboratório da intervenção” militar pelos próprios interventores e pela im- prensa23. Ao longo da ocupação militar na localidade, algumas práticas como as fotografias de moradores feitas em celulares por soldados, “fichando” as pessoas de modo aleatório, revelan- do suspeição geral para checagem de antecedentes criminais, causaram bastante polêmica, conforme divulgação na grande imprensa do país24.

“Apoiamos a intervenção, mas estamos assustados. O que esperar? O que vem depois disso? Então somos todos sus- peitos? Se eu saio para comprar pão tenho que passar por isso?”, revoltou-se um rapaz, que falou com o Estado poste- riormente, pelo telefone, sob a garantia do anonimato. “É muita humilhação. Mas aqui é favela, eles acham que podem tudo. Quero ver fazer isso na zona sul”, lamentou.

De acordo com Pacheco de Oliveira (2014, p. 139-142) há uma série de práticas efetuadas pelo Estado e seus agentes que con- tribui para estabelecer e reforçar as diferenças, assim como as fronteiras entre moradores de favelas e os demais cidadãos, que podem ser resumidas por este autor em quatro elementos principais: 1. A vigilância permanente e ostensiva, sob quais- quer meios possíveis; 2. A instauração de um “medo doentio” e representação das favelas como área de perigo extremo, envol- vendo todos os seus moradores para além dos criminosos; 3. A transformação das favelas em guetos e a divisão da cidade em territórios claramente separados, com forte alteridade entre as pessoas, com “condições radicalmente diferenciadas de cidada- nia”; 4. A naturalização do aprisionamento e da morte (Idem). Percebe-se, assim, nessa atuação tutelar militarizada, a possibi- lidade de colocar uma parcela da população (que mesmo assim em parte os legitima) em um estado perene de suspeição legal ou criminal (e moral, inclusive), especialmente sob a retórica da segurança pública e nacional.

Outro efeito dessas políticas é a hierarquização entre as pessoas que devem ser protegidas e outras que são vistas como ameaças, como grupos potencialmente perigosos. Além disso, o aumento das operações militares a serviço da segurança pública nas cida- des, ocupando esferas da vida civil, portanto, abre espaço para uma participação política cada vez maior das Forças Armadas na tomada de decisões governamentais na gestão da vida pública. Questões sociais em torno de problemas urbanos e nacionais, para além da criminalidade e violência, como infraestrutura, meio ambiente ou educação com o projeto de militarização da gestão das escolas públicas, por exemplo; assim como a demanda por recursos financeiros e apoio político para a segurança, que há pouco tempo estavam apenas a cargo da esfera civil e dos órgãos “tradicionais” de segurança pública, passam a ser trata- dos e geridos também pelos comandos militares. A aplicação da expertise das Forças Armadas na “estabilização” ou “pacificação” de áreas urbanas, baseada em estratégias e logística específicas construídas na experiência adquirida em operações na fronteira e em missões no exterior, indica uma mudança no modo de orde- nar o território e de gerir conflitos e populações urbanas no Bra- sil. A legitimação desse processo depende, como observamos, da reificação cotidiana das fronteiras, externas e internas no país, em um conjunto de dispositivos e rituais que as associa à desor- dem e ameaça à paz social e que possibilita demarcar quem está dentro e quem está fora de seus limites.

Considerações Finais

Observamos neste artigo como esses processos de securitização e de exceção têm seus dispositivos ocultados e fetichizados, o que permite que eles sejam cada vez mais aceitos e legitimados socialmente, o que, por sua vez, abre caminho para sua execu- ção e instauração na medida em que não se enunciam de modo explícito como se fossem “de exceção”. Apontamos, nesses dis- positivos em ação, qual a importância e eficácia dos rituais pú- blicos em operações espetaculares com a presença das Forças Armadas nas ruas, materializando e acionando símbolos como o “Brasil”, a “ordem” e a “lei”. Há toda uma reconfiguração, em cur- so, das técnicas de governo nas fronteiras, assim como da admi- nistração da população, que se tornam modelo para o restante do território nacional, baseadas em um discurso de segurança nacional (que engloba não apenas a criminalidade, terrorismo, imigração ilegal, mas também questões de saúde pública, do meio ambiente, da entrada de doenças e epidemias), reifican- do a fronteira, em suas muitas acepções, como área de perigo e contágio, demarcando de modo binário uma hierarquia entre “nós” e “eles”. Ou seja, há uma naturalização dessa atuação do Estado num conjunto de “forças de segurança”, que não se apre- senta como algo excepcional ou como um “estado de sítio”, mas como leis corriqueiras e necessárias para a manutenção da or- dem, instauradas no âmbito do estado democrático de direito para combater a violência, por exemplo.

Pensar nessa dimensão da violência, cada vez mais legitimada socialmente e presente nos dispositivos de governo, é um dos focos deste trabalho, em que a fronteira aparece como locus pri- vilegiado de observação empírica e como uma metáfora para o exercício do poder. Uma violência não apenas física, mas tam- bém simbólica, exercida pelo direito, como forma de produzir estados de sujeição e exceção diversos, eufemizados sob a forma de dispositivos legais. Assim, observa-se os riscos para a “vida política” nos regimes democráticos contemporâneos, no que Graham (2016) chama de “agorafobia”, ou o medo dos espaços públicos, em que está presente sempre a possibilidade de “de- monização do outro” e a construção do “outro” como inimigo, re- presentado no bordão repetido no Brasil: “os direitos humanos são para os humanos direitos”. Essa alteridade radical, que é in- teriorizada por amplas parcelas da população, acaba por negar qualquer empatia e possibilidade de humanização de quem está do “lado de lá da fronteira”. Essas representações de controle e securitização dos espaços públicos reproduzem a ideia de que a exceção é sempre voltada para o “outro”, que se quer controlar e nunca para o “nós”, que se quer proteger.

Esse poder simbólico25, que contribui para incutir uma sensa- ção de medo constante, pode abrir espaço para privações de direitos dos cidadãos em nome de um “estado de necessidade” perene em que prevalece uma força de lei sem lei, um poder discricionário tutelar, legitimado no direito, criando zonas de indiferenciação entre a soberania, o autoritarismo e o estado de direito. A violência urbana favorece a reificação cotidiana do estado de anomia a ser combatido, sob uma gramática mili- tar, que por sua vez se baseia numa lógica de “guerra” binária (nós x outros) em que é preciso combater os “inimigos” nas múltiplas “fronteiras” (traficantes de drogas, terroristas, imi- grantes ilegais, epidemias globais – cujos “doentes” são em ge- ral “estrangeiros” – e até mesmo minorias ou grupos políticos rivais). Parte da opinião pública e a imprensa em geral, incluin- do o crescente poder das redes sociais, também legitimam es- sas medidas de exceção, demandando a “lei e a ordem” em sua face mais punitiva para a “pacificação” social, naturalizando o fato de que a população pode e “deve” ser tutelada por um Estado cada vez mais militarizado. Assim, reforça-se a crença no sentimento de proteção que emana da sombra de sua própria ameaça: o poder soberano.

Material suplementar
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