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Prosopografias Clubbers em São Paulo e Londres: Moda, Estilo, Estética e Cenas Musicais Contemporâneas*
Revista TOMO, núm. 37, 2020
Universidade Federal de Sergipe

Dossiê

Revista TOMO
Universidade Federal de Sergipe, Brasil
ISSN-e: 1517-4549
Periodicidade: Semestral
núm. 37, 2020

Recepção: 30 Abril 2020

Aprovação: 10 Junho 2020

Resumo: Neste artigo, procuramos analisar o movimento clubber de São Paulo nos anos 1990 enquanto potenciador de inovação na moda e no imaginário vi- sual contemporâneo. Neste ensejo, tomaremos como comparação a cena londrina clubber da mesma época, prosopografando duas figuras centrais de ambas as cenas: Alexander McQueen e Alexandre Herchcovitch O nos- so principal argumento é o de que as cenas clubbers vividas nos anos 1990 por esses dois designers de moda ativam de forma independente energias e socialidades lúdicas entrecruzando criação, intermediação e fruição cul- tural na pista de dança. Essas cenas são espaços de polivalência (e simulta- neidade) de papéis criativos. Rede, simultaneidade, polivalência, interdis- ciplinaridade, materialidade, imaterialidade se assumem como atributos inelutáveis das cenas musicais que se transportam para os clubes e poste- riormente para as carreiras de McQueen e Herchcovitch.

Palavras-chave: Cultura lubber, São Paulo, Londres, Alexandre Herchcovitch, Alexander McQueen.

Abstract: In this article, we seek to analyze the São Paulo clubber movement in the 1990s as a creator of innovation in fashion and in the contempo- rary visual imagery. In this opportunity, we will take as a comparison the London clubber scene of the same time, prosopographing two cen- tral figures of both scenes: Alexander McQueen and Alexandre Herch- covitch.Our argumentation is that the clubbers’ scenes experienced in the 1990s by these two fashion designers, independently activate playful energies and socialities intertwining creation, intermediation and cultural enjoyment on the dance floor. These scenes are spaces of versatility (and simultaneity) of creative roles.Network, simultaneity, versatility, interdisciplinarity, materiality, immateriality are assumed as ineluctable attributes of the musical scenes that are transported to the clubs, and later to the careers of McQueen and Herchcovitch.

Keywords: Clubber culture, São Paulo, London, Alexandre Herchcovitch, Alexander McQueen.

Resumen: En este artículo, buscamos analizar el movimiento clubber de São Pau- lo en la década de 1990 como un potenciador de la innovación en la moda y en las imágenes visuales contemporáneas. En esta oportuni- dad, tomaremos como comparación la escena clubber londinense de la misma época, prosopografiando dos figuras centrales de ambas esce- nas: Alexander McQueen y Alexandre Herchcovitch. Nuestro argumen- to principal es que las escenas clubbers experimentadas en la década de 1990 por estos dos diseñadores de moda activan de manera inde- Paula Guerra; Henrique Grimaldi Figueredo pendiente energías y socialidades lúdicas que entrelazan la creación, la intermediación y el disfrute cultural en la pista de baile. Estas escenas son espacios de versatilidad (y simultaneidad) de papeles creativos. La red, la simultaneidad, la versatilidad, la interdisciplinariedad, la ma- terialidad, la inmaterialidad se asumen como atributos ineludibles de las escenas musicales que se transportan a los clubes y más tarde a las carreras de McQueen y Herchcovitch.

Palabras clave: Cena clubber, São Paulo, Londres, Alexandre Herchcovitch, Alexander McQueen.

1. A revolução faz-se no clube: subculturas, cenas e pós subculturas

Desde a década de 1950 que a adolescência e a juventude são entendidas como fases importantes na vida dos indivíduos marcadas por processos instáveis de transição para a vida adulta. Daí autores como Stahl (2004) considerarem as culturas juvenis como um mecanismo de enfrentamento dessas dificuldades nos referidos processos. A Escola de Chicago foi a primeira a propor teorias sobre essa problemática, potenciando explicações tendo como base a sua tradição etnográfica – para os fenômenos desviantes nas cidades americanas (Park, 1925; Hrasher 1927; Hyte, 1943). Por seu turno, nos anos 1970, o Centre of Contem- porary Cultural Studies considerava as subculturas como um exemplo de resistência que era proclamada através do estilo. Tratava-se de um tipo de resistência dos jovens face a uma si- tuação contraditória vivenciada ao nível das idades e das classes sociais, manifesta, nomeadamente, em expressões estéticas como presentes na moda e na música. Aliás, é de salientar a relevância destes temas – moda e música – nos estudos que emergiam. Qualquer que seja a lente teórica de abordagem, certo é que a juventude e sua concomitante transição da vida adulta são acompanhadas por uma abordagem destacada das suas práticas e consumos culturais, sociabilitários, lúdicos e simbólicos (Clarke et al., 1976; Willis, 1977). E estes constituem matéria basilar de análise sociológica. Hebdige (2018) considerava que a criati- vidade e a resistência desses jovens eram efêmeras, defendendo este processo como cíclico, pois partia de um pequeno grupo que criava um processo de estilização, dando origem a um es- tilo subcultural, que eventualmente terminava quando as forças econômicas intervinham no processo de venda deste estilo sub- cultural para as massas, fazendo com que nestes movimentos ju- venis (e as manifestações associadas como a moda e o estilo) se sentisse a necessidade constante de reinvenção.

A partir de meados dos anos 1990 os estudos sobre as culturas juvenis sofreram profundas mudanças devido basicamente às alterações nas teorias sociais que passaram a focar-se na frag- mentação, a individualização e a fluidez originadas pela moder- nidade tardia global. Assistimos ruptura com variáveis fulcrais até então, tais como as classes sociais, as etnias, a religião e ou- tras âncoras vitais, que foram substituídas pela cultura do con- sumo e pelos média globalizados. As identidades passam a ser instáveis (Huq, 2006). É neste panorama que emerge a teoria pós-subcultural, que toma a teoria subcultural como algo ultra- passada, argumentando que esta não conseguia responder ca- balmente às mudanças constantes decorrentes do aumento dos fluxos de bens culturais. A viragem pós-subcultural, que veio fa- cilitar a compreensão das formas de apropriação dos jovens face à música, aos estilos, etc. Bennett (2011) refere que é necessário compreender que o consumo nada mais é do que um fenômeno cultural com múltiplas faces e não pode ser observado a partir de perspetivas reducionistas. O consumo cultural remete para um conjunto “de atividades através das quais os indivíduos ace- dem e culturalmente se apropriam de objetos, textos e imagens culturais” (2011, p. 500).

Assoma, assim, o conceito de cena como resolutivo. Segundo Straw (1991), as cenas culturais podem ser entendidas como espaços em que uma série de práticas culturais coexistem, inte- ragindo umas com as outras, dentro de múltiplos processos de diferenciação. As cenas transcendem o espaço e remetem para estados de relações entre indivíduos que partilham afinidades musicais, visuais, estéticas, (Bennett e Kahn-Harris, 2004). O próprio entendimento de cena enquanto um espaço que pos- sibilita ações concretizáveis, bem como uma alternativa à rigi- dez das noções de subcultura, reflete a importância de alicerces teórico-empíricos fundamentais. Deste modo, Guerra (2010) menciona que o conceito de cena é um conceito operativo con- temporâneo que agrega estrategicamente conceitos anteriores: o de tribo ou o de neo-tribo de Maffesoli (1988) nos anos 1980 e de Bennett (2008) nos anos 2000, que contribuíram para con- siderar os grupos juvenis como comunidades emocionais e que resultam de um desejo de pertença, isto é, que se querem ins- crever localmente; conceito de art world recuperado por Becker (1984) nos anos 1980 e por Crane (1992) nos anos 1990, que se foca na compreensão dos processos de criação artística de- pendentes da existência de processos de cooperação (Guerra, 2010); e o conceito de campo, proposto por Bourdieu (1996), que elabora e concede o espaço social como um campo de lu- tas simbólicas onde (co)existem diversas estruturas que ajudam a moldar o habitus e os capitais sociais, culturais, políticos, etc. (Guerra, 2010). Estes processos de simbiose contribuem larga- mente para o anelo aqui, visto que quando nos referimos aos anos 1990 – e a todas as suas alterações estruturais, políticas, econômicas, tecnológicas e sociais – queremos enfatizar as epis- temologias da criação artística no seio do movimento clubber. Este, seguramente, entendido como espaço matricial de produ- ção, de intermediação e de consumo musical, lúdico, estético e sociabilitário, que ocorre em espaços-tempos entrecruzados por uma pluralidade de atores (Sá, 2003): clubbers, DJs, músicos, promotores, dançarinos, modelos, agenciadores, designers de moda, criativos, artistas. St. John (2010) chega mesmo a referir que esse clubbing dos anos de 1990 foi uma espécie de renasci- mento de um homo aestheticus, de uma busca pela ajuda mútua e pela proximidade, de uma redescoberta de sentidos. Enfim, o clube reconstruiu um poder underground que, por contraste com o poder institucionalizado, é fonte de energia e força vital para os seus integrantes.

É precisamente a partir de uma análise, que nos situa entre Londres e São Paulo1, nos anos 1990, das relações pessoais e profissionais de dois criadores de moda – o britânico Alexander McQueen (1969-2010) e o brasileiro Alexandre Herchcovitch (1971) – com as cenas musicais e culturais que integravam, que delinearemos prosopografias clubbers. Tal como a encaramos aqui, a prosopografia é a investigação das características comuns de um grupo de atores na história por meio de um estudo coleti- vo de suas vidas. Assim, no caso dos vários tipos de informações sobre Alexander McQueen e a Alexandre Herchcovitch e sua par- ticipação e interrelação com o universo da cultura clubber em Londres e em S. Paulo, foram justapostos, combinados e examinados em busca de variáveis significativas para a apreensão do papel histórico desempenhado por estes atores na dinamização destas cenas e na circulação entre os clubes e as passarelas. E tal é possível pelo fato de as posições e papéis desempenhados por esses dois atores possibilitarem que sejam pensados a partir da recuperação de sua origem regional, formação, contexto familiar e de sociabilidade, o espaço de sua ação e sua função dentro de uma sociedade, onde as suas trajetórias individuais não são o mais importante: o primordial e a grande preocupação é entender o conjunto/desenhar um perfil coletivo das cenas que lideravam. As cenas vivenciadas nos clubes dos anos 1990 são redutos matriciais de uma sociedade pós-industrializada; ativam de forma independente energias e socialidades lúdicas entrecruzando criação, intermediação e fruição cultural na pista de dança. Essas cenas são espaços de polivalência (e simultaneidade) de papéis criativos e dependem de uma intensa autossuficiência de estratégias promocionais (Guerra, 2015a). Rede, simultaneidade, polivalência, interdisciplinaridade, materialidade, imaterialidade assumem-se como atributos das cenas que se transportam para os clubes: “A teatralidade da cena ressoa como uma performance. Uma boa questão a considerar, e à qual re- tornaremos continuamente, diz respeito à natureza do que está sendo realizado: não apenas compras, arte, leituras de poesia, música, dança e coisas semelhantes, mas ver e ser visto” (Blum, 2001, p. 17). Reynolds (1999) escreve que, a partir de 1993, foi possível escolher espaços onde estavam a música e as pessoas com as quais nos identificávamos – fazendo uma quase declaração de amor ao conceito polimorfo de cena: existem tantas cenas quantas as paixões musicais (e estéticas, identitárias, performativas). E aqui se enquadram, precisamente, Alexander McQueen e Alexandre Herchcovitch, uma vez que tiveram uma participação ativa na cultura clubber em ambos os lados do Atlântico.

Esmiuçando as nossas opções metodológicas: recorremos a fontes secundárias documentais – cerca de 17 – acerca de ambos os atores sociais que tipificamos do seguinte modo: biografias com entrevista2; biografias científicas com debates realizados por pesquisadores3; reportagens de jornais, revistas e jornais digitais4. Explorando essas fontes e começando pelas origens sociais, gostaríamos de notar que Alexander McQueen descende de uma família escocesa e é filho de uma professora primária, ao passo que Alexandre Herchcovitch vem de uma comunidade paulista de judeus ortodoxos, de origem romena e polonesa, e é filho de uma proprietária de uma pequena confecção de lingerie. Quanto ao percurso escolar, McQueen é formado pela Central Saint Martins5, tida como um dos centros de referência da moda britânica, e Herchcovitch formado pela Faculdade Santa Marcelina6 que, nos anos 1990, era tida como o centro de excelência da moda brasileira. Mais, ambos são homossexuais, frequentadores da noite e das cenas musicais que se desenvolveram em torno dos clubes gay em Londres e em São Paulo. Estes espaços foram fundamentais para a trajetória desses dois criadores, uma vez que foram propulsores de uma identidade estética de vanguarda e de desenvolvimento de ações colaborativas, com destaque para o caso McQueen/Irmãos Chapman7 e Herchcovitch/Márcia Pantera8. Quanto ao último ponto de convergência, falamos da relevância que ambos assumiram nos seus respectivos campos culturais, no sentido em que integraram espaços globalizados da moda, tornando-se em projetos de autor culturais bem-sucedidos, isto é, tornaram-se numa espécie de movimento from underground to mainstream que foi responsável por divulgar os modos de vida dissidentes e estéticas disruptivas.

Apresentado o descritivo sobre o nosso objeto de estudo, gostaríamos de enunciar o desafio implicado nesta interface analítica. Para além do enquadramento conceitual assente nas teo- rias pós-subculturais, focamo-nos nas biografias desses agentes culturais, em reportagens, entrevistas, etc., e ainda nos desfiles e coleções de ambos os criadores sempre com o intuito de fortalecer o argumento base de que a trajetória destes dois atores sociais em muito se deveu à sua participação ativa como membros das culturas clubbers. Enfim, seguimos de perto McRobbie (2002) na perspetiva de que subjaz à contemporaneidade um duplo processo de individualização: primeiro, porque vivemos numa cultura obcecada pelas celebridades nos média, alargada a artistas, músicos, arquitetos, designers de moda e outro pessoal criativo; segundo, pelo fato de, no tocante à estrutura social, as pessoas terem cada vez mais a sensação de estarem desvinculadas das grilhetas opressoras da classe e do parentesco, e as cenas clubbers – pela sua atmosfera de liberdade – serem o locus por excelência de concretização de tal sensação.

2. Clubbing, passarelas e energia

Brookman define a cultura clubber como uma “apropriação e subversão de um espaço, combinando um certo tipo de música, luzes e drogas” (2001, p. 21). A música é o aspecto central dessa cultura. Com raízes no acid house e uma origem anglo-saxônica, a cultura rave na raiz do clubbing – rapidamente se difunde um pouco por todo o mundo, metamorfoseando-se num dos movi- mentos juvenis com maior expressão na sociedade contemporânea. Um verdadeiro fenômeno mundial, a cultura rave é hoje em dia uma indústria de pleno direito, muito relacionada com as indústrias do turismo, do lazer, da música (num sentido mais abrangente) e da moda. Considerada como cena, a apropriação do espaço e a libertação de uma dada área através da música e da dança podem ser consideradas como as formas pelas quais uma rave é consumida do ponto de vista performativo; juntam-se aos aspetos sonoros os elementos físicos, dando forma às experiências vivenciadas (Guerra, 2015a, 2015b).

Abordar a relação das raves com o espaço implica não ignorar o impacto dos média na construção e difusão de representações não só sobre a cultura rave em si, mas também sobre os seus membros e sobre os espaços onde estes se reúnem para partilhar uma experiência. Por esta razão, Gibson e Pagan (2006) con-sideram os reflexos do discurso midiático sobre a cultura rave, dando conta de duas concepções construídas ao longo do tempo em torno dos espaços das raves, sempre identificados como um objeto exótico. Assim, os espaços das raves surgem como lugares sedutores, mas, ao mesmo tempo, perigosos e destrutivos, e boa parte devido à exploração da relação entre a cultura rave e as drogas. Mais recentemente, têm sido construídos como “hete- rotopias da dissidência” (Foucault, 1971; Gibson & Pagan, 2006, p. 21). São espaços legitimados para a prática de atividades subversivas, mas, ainda assim, sancionados. As raves são uma ruptura com o quotidiano. De fato, a rave é experienciada como uma quebra com o quotidiano, um momento de alienação face às preocupações, constrangimentos e responsabilidades do dia a dia, uma oportunidade de libertação, um momento de busca de sensações e prazer, que atinge o seu êxtase na criação de uma hi- perrealidade que transcende e contrasta com as rotinas diárias. Esta ideia remete para a teoria da saturação pessoal (Goulding & Shankar, 2004) e traduz mais um paradoxo pós-moderno: as ati- vidades de lazer e a vida social dos frequentadores de raves são contrabalançadas por carreiras profissionais estressantes, mas geradoras de segurança material (Guerra, 2015b). Com efeito, e ainda que não seja algo generalizável a todos os ravers, muitas vezes as drogas se juntam à música, aos jogos de luz e outros elementos visuais e funcionam como estimulantes da busca in- cessante de sensações. O seu consumo não é visto como um ato desviante, mas antes como um ato “recreativo” e normalizado em que as drogas surgem como alternativa de fim de semana à bebida e a outras atividades que funcionem como escape, criando o que Brookman (2001) designa como “mundo sintético”, transcendental e, no extremo, vivido e apropriado de uma forma espiritual.

O acid house teve sua primeira aparição em meados dos anos 1980 em Chicago. Em 1989, virou febre no Reino Unido atra- vés do álbum Technique do New Order e da sua celebração na Haçienda. No começo dos anos 1990, o acid house perdeu força, mas deixou um rasto de influência considerável nas raves, considerando o grande número de faixas de música eletrônica que fazem referência ao acid house com o uso de seus sons, in- cluindo trance, goa trance, psytrance, breakbeat, big beat, techno, trip hop e house music. Blánquez diz: “uma massa juvenil ansiosa por novas sensações, lançada num carrossel de jubilo coletivo, orientada para a necessidade de hedonismo, foi isto que esteve na base do fenômeno rave como fotografia da maior revolta mu- sical, sim; mas também ideológica e estética – desde o triunfo do punk em 77” (2006, p. 291). A participação numa rave pode ser encarada como uma performance e como um ato de consumo, identificação e pertença no seio de um grupo, podendo o consu- mo ser interpretado como uma expressão da ligação dos indiví- duos a determinados gêneros musicais; é uma identificação que se projeta num estilo visual, em symbolic tags (Brookman, 2001). Neste sentido, muitos colocam uma ênfase particular na imagem e na busca de uma imagem bonita, no âmbito do que alguns de- signam como uma obsessão individualista e narcísica. Veja-se, por exemplo, o caso da roupa. Se para alguns o que se veste é algo pouco ou nada relevante, para outros, pelo contrário, é um elemento bastante importante, na medida em que constitui uma dimensão da identidade raver, atribuindo-lhe especificidades que a permitem distinguir-se de outras culturas. Tal remete-nos para uma temática respeitante à comercialização da cultura rave (neste caso através da moda) e respetivos impactos, sendo que este exemplo concreto pode ser considerado como uma forma da comercialização atuar no sentido do fortalecimento da identidade raver e não no sentido da sua deturpação.

As formas de socialidade clubber cresceram ancoradas numa empatia-ecstasy dos anos do clube – como se refere McRobbie (2002) – evoluindo gradualmente para uma rede de clube: utili- zando zines, flyers, o passa-palavra, os micromédias de que nos fala Thornton (1996). Estas formas de socialidade estiveram, aliás, na origem da integração das festas e das raves na paisa- gem cultural mais ampla das cidades criativas contemporâneas.

Além disto, a cultura clubber esteve na origem da emergência e dinamização do chamado setor cultural e criativo independen- te britânico (Leadbeater & Oakley, 1999). Se o clube é o centro das suas vidas – qual passarela demonstrativa do ser e do ter também a idade e as responsabilidades domésticas são funda- mentais para os padrões de acesso e participação nessa cultura. Muita da predominância da cultura clubber contemporânea traduz-se diretamente na ascensão da economia e da cultura da noite. As mudanças crescentes na cultura rave fizeram que alguns se questionassem se esta mantinha a sua capacidade de subversão. Esta associação tem sido desafiada pela crescente comercialização da cultura rave. Nesta sequência, Hebdige (2018) descreve a forma como uma subcultura pode ser incorporada pela sociedade dominante. E isto pode ocorrer de duas formas. A incorporação pode acontecer mediante a transformação dos signos subculturais em objetos massificados, no âmbito de um processo de comercialização e mercadorização, que anula todo o seu poder subversivo, como atrás assinalamos. Por outro lado, a incorporação pode, igualmente, assumir contornos ideológicos, na medida em que os grupos dominantes da sociedade (os média, polícia, autoridades) redefinem o que consideram comportamentos desviantes das subculturas. É, justamente, neste processo de etiquetagem que a subcultura perde o seu caráter de oposição e resistência.

Não obstante, Brookman (2001) chama atenção para novas rela- ções entre resistência e mercadorização. Se a incorporação pode questionar a resistência associada a uma subcultura, os membros da mesma podem usar as mercadorias de modo a reafir- marem a sua postura de oposição, pelo que nem a incorporação, nem a resistência podem ser consideradas de forma absoluta. E aqui podemos situar McQueen e Herchcovitch. Quando nos propomos a estudar as manifestações culturais, materializadas nas cenas alternativas juvenis em Londres nos anos 1990, per- cebemos que há certa indissociabilidade entre essas questões e os quadros político-econômicos da década de 1980. As transformações na paisagem econômica – modulada pela política liberal e monetarista da Era Thatcher – serão propulsoras da confor- mação e consolidação do que McRobbie (1998) aponta como hidden economies, isto é, por um lado “especializações flexíveis na produção que impulsionaram o consumo, levando produtos al- tamente específicos comercializados em pequenas tiragens para consumidores conscientes” (1998, p. 4); e, por outro, emerge uma nova tipologia econômica que “alimenta diretamente este novo tipo de sociedade em que vivemos, onde há certa predileção por consumir imagens em detrimento dos objetos” (1998, p. 4). As hidden economies – convergindo desde “os mercados de rua aos finais de semana, (...), venda de mercadorias roubadas, tráfico de drogas, e, de forma crescente, os trabalhos diretamente ligados ou associados à cena de clubes noturnos em emergência” (1998, p. 4) – consistem, portanto, na expressão materializada de um consumo cultural imagético e juvenil em espaços que são catalisadores de uma experiência autonomizadora e emancipadora de subjetividades e identidades culturais. Modos outros de viver, de se relacionar, de trabalhar. São as cenas musicais clubbers, e as alterações que estas operam sobre o espaço urbano e sobre a percepção de encaixe social desta juventude, a sua imagética e moda.

3. Londres circa 1990: a moda deve ser uma forma de escapismo

Essa dualidade entre uma economia do visível, expressa nas imagens, e uma economia periférica, que vive do subterfúgio e da contravenção, é-nos aqui muito cara. Ao analisarmos essa nova geração de criadores que despontam a partir das recém estruturadas escolas de arte e moda – e nomeadamente o designer Alexander McQueen – veremos uma convergência constante entre esses dois universos, de modo a verificar que há uma certa inseparabilidade entre eles: seja nas festas undergrounds dos clubes gay do Soho londrino, seja nos armazéns transforma dos em ateliês no East End, a juventude criativa dos anos 1980 e 1990 oscilará fluidamente entres ambas as realidades, muitas vezes usando uma como elemento de inspiração para a outra in- tervaladamente (Figueredo, 2019).

Retomemos rapidamente o estudo de Thornton (1996). A so- cióloga propõe uma genealogia da ideia de subcultura a partir da cena noturna londrina em ascensão, nomeadamente aquela dos clubes undergrounds surgidos no leste da cidade e do seu enclave mais representativo, o Soho. Esse recorte temático que focaliza a cena musical alternativa e os seus espaços de ativa- ção, associa-se à compreensão dos clubes como núcleos centra- lizadores de um sem fim de experiências estéticas marginais; seja na moda, nas artes, no teatro de vanguarda, seja na música, todos se reuniam ali. O clube noturno equalizava tais experiên- cias, fazendo convergir os agentes culturais mais distintos a uma bandeira comum; essas culturas do gosto (club cultures are taste cultures) transformavam a noite num lugar de encontro, criação, recriação e intercâmbio. Retroalimentações criativas que cola- boravam entre si sem nunca perder os eixos de sua própria iden- tidade. Nesta perspectiva, a club culture não pode ser descrita como uma cultura unitária, mas, sim, como conjuntos diversifi- cados de culturas – estas formalizando uma cena – que compar- tilham uma afiliação territorial e códigos muito específicos de indumentária, estilos de dança e música, assim como uma ritua- lização bastante característica, de modo que, “ao se tomar parte na cultura dos clubes, constroem-se afinidades, onde a socializa- ção de seus participantes no interior de um conhecimento (e de uma crença), (...), nos permite perceber os sentidos e os valores da cultura” (Thornton, 1995, p. 200). Estamos a tratar aqui da cena clubber alternativa londrina na sua manifestação territorial e geracional, isto é, de um avolumamento de bares, de clubes noturnos e de economias paralelas no East End, especificamen- te na zona de transição com o Soho, e de um grupo próprio de jovens – entre 22 e 26 anos (McRobbie, 1998) – que ocupam cer- tas espacialidades e certas profissões criativas na cidade.

Primeiro, podemos identificar esse grupo societal como jovens recém-formados por universidades das regiões mais centrais de Londres – CSM e Goldsmith’s College9 – que migram rumo ao East End10 devido à necessidade de amplos espaços de trabalho a preços reduzidos. Este primeiro movimento produz uma dupla transformação diurna do bairro: se por um lado os armazéns e warehouses abandonados passam a ter um novo uso – majorita- riamente como ateliês de artistas e designers de moda – há tam- bém o desenvolvimento de atividades comerciais simultâneas acopladas a este uso primário. São as pequenas lojas, as galerias de arte experimentais, os bistrôs de duas mesas. Podemos datar desse período a criação da loja The Shop (1993) gerenciada pelas artistas Tracey Emin e Sarah Lucas; das galerias Factual Nonsense (1993) do curador e marchand Joshua Compston e White Cube (1993) de Jay Jopling, o restaurante Pharmacy (1998) do artista Damien Hirst. Ali também estavam os ateliês de designers como Alexander McQueen, Andrew Groves e de artistas como Jake & Dinos Chapman (na Hoxton Square), apenas para citar alguns.

Segundo, se durante o dia o Soho e o East End eram ocupados pelas profissões culturais em emergência, à noite o cenário transformava-se. É possível propormos um outro mapeamento. As práticas culturais diurnas eram sobrepostas pelas práticas culturais noturnas – uma clubland culture. Dos ateliês e lojas experimentais, o fluxo noturno direcionava-se a outros sítios: Taboo, Kinky Gerlinky, Legends, Man Strike. Estes clubes noturnos – onde se pregava a liberdade sexual, a música eletrônica e o uso de psicoativos – transladavam a experiência criativa do dia à noite, numa equivalência cultural entre as cenas diurnas e noturnas. Nas palavras de Sarah Lucas, artista representante da geração dos Young British Artists, “o leste londrino de repente tornava-se o lugar para se estar” (Lucas In Whitley, 2015, p. 171), fosse pelo fluxo diurno de profissionais da moda ou das artes, fosse pelo fluxo noturno de todos aqueles que se sentiam não se encaixar nas prospecções laborais ou sociais de suas vi- das quotidianas, que viam na cultura clubber um ponto de inflexão, um escape lúdico.

firma que tudo “começou na Legends, em New Burlington Street, e durou até o verão de 1994. Um ano após a sua inauguração, tornou-se o clube londrino mais proeminente, tendo trazido uma explosão de cultura drag ao som de música house e disco, tudo isso servido numa atmosfera festiva e carnavalesca” (Watt, 2012, p. 67). A massa de frequen- tadores eram homens que faziam drag, bebendo livremente e aquecendo-se para a verdadeira diversão; o outro grande clu- be do momento, o Kinky Gerlinky, “atraía também muitas mu- lheres bem vestidas, tanto héteros quanto gays, homossexuais musculosos (muscle queens), fetichistas, skatistas, heterossexu- ais curiosos - é só nomear, todos estavam lá” (Watt, 2012, p. 68).

afirma que tudo “começou na Legends, em New Burlington Street, e durou até o verão de 1994. Um ano após a sua inauguração, tornou-se o clube londrino mais proeminente, tendo trazido uma explosão de cultura drag ao som de música house e disco, tudo isso servido numa atmosfera festiva e carnavalesca” (Watt, 2012, p. 67). A massa de frequen- tadores eram homens que faziam drag, bebendo livremente e aquecendo-se para a verdadeira diversão; o outro grande clu- be do momento, o Kinky Gerlinky, “atraía também muitas mu- lheres bem vestidas, tanto héteros quanto gays, homossexuais musculosos (muscle queens), fetichistas, skatistas, heterossexu- ais curiosos - é só nomear, todos estavam lá” (Watt, 2012, p. 68).

Stela Stlin11 – drag persona de Dr. Stephen Brogan – em entre- vista à historiadora Judith Watt afirma que tudo “começou na Legends, em New Burlington Street, e durou até o verão de 1994. Um ano após a sua inauguração, tornou-se o clube londrino mais proeminente, tendo trazido uma explosão de cultura drag ao som de música house e disco, tudo isso servido numa atmosfera festiva e carnavalesca” (Watt, 2012, p. 67). A massa de frequen- tadores eram homens que faziam drag, bebendo livremente e aquecendo-se para a verdadeira diversão; o outro grande clu- be do momento, o Kinky Gerlinky, “atraía também muitas mu- lheres bem vestidas, tanto héteros quanto gays, homossexuais musculosos (muscle queens), fetichistas, skatistas, heterossexu- ais curiosos - é só nomear, todos estavam lá” (Watt, 2012, p. 68).

Embora esses dois clubes sejam cruciais na revitalização da vida noturna do Soho nos anos 1990, o movimento havia surgido ainda na metade da década anterior. A Legends, inaugurada na década de 1990, e a Kinky Gerlinky, em 1989 pelo ex-modelo da Comme des Garçons Michael Costiff, só foram experiências viáveis devido às bases lançadas pela festa Taboo, organizada pela importante figura da cena cultural noturna Leigh Bowery e a posterior inauguração da casa homônima em 1985. Afirmando-se como espaços de experimentação contracultural na noite de Londres, os clubes gay do Soho representavam uma espécie de refúgio para todos que de algum modo se sentiam deslocados ou renegados por aquela sociedade, independentemente da sua identificação e orientação sexual. Esses espaços de resistência tornaram-se ambientes de troca estética e de experimentação. A cena clubber do Soho horizontalizava e transpunha, assim, as atividades diurnas do bairro para o seu equivalente noturno, inspirando e confrontando questões que seriam retomadas pelos criadores nos seus ateliês – uma verdadeira retroalimentação cultural.

A ideia de uma Clubland Couture alinha-se, nesse contexto, à noção de uma certa territorialidade que é física (o East End e seus clubes), mas também simbólica (a cena cultural), formatadas, ambas, a partir de uma identidade cultural ao mesmo tempo sincrônica e diacrônica, estabelecendo um sentido de comunidade, criando em consequência as suas fronteiras virtuais, as suas linguagens, os seus modos de ser e também as suas expressões artísticas e estéticas – elementos diferenciadores, estigmas que os autorizam assim a frequentar e operar dentro destas espacialidades.

Um dos pontos do nosso interesse na cena clubber londrina dos anos 1990 é exatamente o processo de transposição igualmente encontrado em São Paulo e que será posteriormente discutidode uma club culture a uma club couture, isto é, frequentadores assíduos dessas cenas, os estilistas ditos de vanguarda, acabam por desenvolver nestas e a partir dessas espacialidades um papel estético e econômico bastante íntimo, num duplo movimento que pode ser descrito como club to catwalk e catwalk to club.

Ao ocuparem territorialidades sobrepostas ou aproximadas, relações profissionais e de amizade são formalizadas entre os aspectos noturnos e diurnos dessas cenas. É comum artistas desses espaços servirem de modelos para estilistas alternativos, como o caso de Tracey Emin que desfila para Vivienne Westwood (Crane, 2006). Estas cenas representam um ponto de ignição para a fotografia de moda – as poses letárgicas e o ambiente decadente de Kate Moss para Corinne Day – para as publicações alternativas como a revista Pil (1990) e Dazed & Confused (1992); e ainda pontos de convergência entre a fête nocturne e o trabalho diurno de jovens criadores de moda como John Galliano e Alexander McQueen, responsáveis por traduzirem para a passarela as estéticas que muitas vezes transitavam nessas cenas (Evans, 2012; Figueredo, 2019).

O caso de Alexander McQueen torna-se bastante ilustrativo des- sas relações. Frequentador assíduo da cena clubber londrina do Soho, McQueen representa um catalisador importante de um movimento que chamaremos aqui de club to catwalk, isto é, um esforço de tradução das suas vivências e referenciais nestes es- paços para a sua passarela. A sua coleção Taxi Driver (Outono/ Inverno 1993) trazia um sem fim de peças de couro e látex, re- ferências à vivência nos clubes dessa região12. A relação da obra do designer com a cena clubber vai além das referências estéti- cas. Nessas territorialidades laços são firmados, afetos constru- ídos e colaborações criativas estimuladas. Dois casos aqui são bastante fundamentais. Primeiro, a relação entre McQueen e os irmãos Jake e Dinos Chapman, artistas da chamada geração dos Young British Artists. Neste caso, os espaços de convivência são duplicados, frequentadores de cenas aproximadas (como a Man Strike e a Kinky Gerlinky) e mantendo ainda ateliês próximos, a colaboração e a influência estética entre eles são notáveis.

Em 1996, os Irmãos Chapman apresentam sua instalação Tragic Anatomies, em que exibiam manequins infantis desfigurados na região da genitália, colocados em um jardim que alude a um outro Éden. Esta instalação é imediatamente seguida pelo desfile Bell- mer La Poupée (Primavera/Verão 1997) de Alexander McQueen. Neste desfile, o estilista fomenta uma reflexão sobre a feminilidade abjetual, referência às perturbadoras bonecas pré-guerra da década de 1930 do escultor alemão Hans Bellmer13 (1902- 1975). Essa mesma estética – trabalhada pelos Irmãos Chapman e por McQueen – ressurge meses depois “nos membros esguios e elegantes das figuras de meias tricotadas, criadas por Sarah Lucas14 em 1997” (Whitley, 2015, p. 171). O nivelamento entre os temas que perpassavam a arte e moda de vanguarda eram, assim, viáveis através desta zona reativa de contato – diurna (a proximidade entre os espaços de trabalho) e noturna (frequência da mesma cena clubber) - na qual capitais simbólicos eram negociados e refletiam-se nas respetivas produções.

Segundo ponto de convergência, esse da ordem dos afetos, podemos destacar também a proximidade entre McQueen e o designer Andrew Groves, seu colaborador e parceiro amoroso; frequentadores dos mesmos clubes noturnos durante os anos 1990. Groves influenciado por McQueen – transmutou para a passarela o lifestyle noturno (Watt, 2012). Cocaine Nights (em setembro de 1998) apresentou modelos a desfilar numa passa- rela pulverizada por açúcar e vestidos confeccionados por lâminas de barbear, numa clara alusão ao consumo de psicoativos e o flirt com o risco e a morte. Em Status (também em 1998), uma modelo abre o casaco libertando um enxame de milhares de moscas vivas sobre a plateia, um comentário sarcástico sobre a beleza enferma e a podridão contemporânea das cenas musicais decadentes e seus frequentadores (Figueredo, 2018).

Essa dimensão provocativa compartilhada por Groves e McQue- en advém desse real experienciado em todos os seus excessos. A club culture encontrava na passarela o seu prolongamento, tor- nava-se club couture. Nas trilhas sonoras, na iluminação baixa, nos modelos decadentes, nas indumentárias transgressoras, o clube prolongava-se na passarela numa expressão diurna de si mesmo. Se o movimento club to catwalk representava uma ten- dência desse grupo societal de jovens criadores, o inverso tam- bém era visto. Para McRobbie (1998), um aspeto dessas hiddens economies era exatamente a circulação de produtos e de esté- ticas específicas entre grupos também específicos, em que, ao mesmo tempo, os produtores são consumidores. Esta perspetiva é também considerada por Thornton (1996), ao apontar essas práticas como a um só tempo produtos-objetos de consumo de uma dada cena, que necessitam destes para se diferenciar como produtores e para manifestarem-se como pertencentes – pelo consumo – a uma realidade contracultural. É a estética dos ves- tidos de plástico e com marcas de graxa em Bashee (1994) e The Birds (1995) que aparecem nas cenas musicais – vestidos por figuras como a modelo Kate Moss e a editora de moda e amiga pessoal de McQueen Isabella Blow (Watt, 2012) – como elemen- tos passíveis de identificação e negociação identitária deste gru- po societal: isto é, club to catwalk to club again.

Talvez o vínculo mais profícuo entre a obra de McQueen e a cultura clubber possa ser evidenciado pelas referências diretas à figura de Leigh Bowery. Bowery, de origem australiana, mas radicada em Londres durante toda sua vida adulta, assume ao mesmo tempo papel de pioneira na ativação e circulação dessa cena cultural, como também de uma personagem iconográfica, cuja plasticidade das roupas e a agressividade nas atitudes possuem grande valor para a geração de artistas e estilistas que se inseriam neste movimento. Como promoter foi responsável pela idealização da Taboo, que logo se tornou o lugar para se estar (the place to be); embalados por drogas, particularmente o ecstasy e a cocaína, os frequentadores conviviam num ambiente selvagem que desafiava convenções sexuais, num espaço celebrado por abraçar o polissexualismo e pelas suas inusitadas se- leções musicais. A estética drag exagerada de Bowery, um pilar da cultura noturna de Londres nos anos 1990, será apropriada em diferentes momentos da criação de Alexander McQueen: as máscaras estampadas recuperadas de modo mais sombrio em coleções como Dante (1996) e Joan (1998)15; o uso de plumas e organza fina em várias camadas para a criação de silhuetas enormes é também retrabalhada em Voss (2001), assim como o tradicional tartan (padronagem xadrez) constantemente visível em Bowery e retomado por McQueen de modo semelhante ao longo de toda sua carreira16 (Figueredo, 2019).

McQueen estava na vanguarda da era Cool Britannia: quando Damien Hirst estava nas manchetes com seu tubarão mergulhado em formaldeído, e o Oasis ocupava o topo das paradas e a led culture, associada ao brit pop, fazia alvoroço ao redor do mundo. As saídas noturnas de McQueen, assim como seus desenhos, eram muito menos inspiradas na moda e no estilo utópico da década de 1980, como eram os de Galliano. “Nós provavelmente começávamos em algum lugar perto do Soho, como o pub gay Comptons na Old Compton Street, e dali fazíamos uma espécie de pub crawl”, relembra Simon Ungless17 acerca das suas andanças noturnas ao lado de McQueen (Thomas, 2015, s/p). Havia esse apreço por uma beleza “outra”, um encontro do estilo que era menos aquele de uma fuga idílica do real, e mais o de um estilo que nascia do enfrentamento traumático com o mesmo real. Bebia-se dessa atitude provocadora. De uma moda que – dadas suas raízes – nascia molotov, dissidente, pronta a perturbar um campo certo da beleza. Ungless e McQueen diriam

Depois – do Comptons –, provavelmente iríamos para al- gum lugar não tão saboroso (not-so-savoury), como um clu- be chamado Man Stink. Oh meu Deus! Nós amávamos esse lugar! Era um pub realmente horrível em King’s Cross, no andar de baixo, numa espécie de adega. Havia nessas cata- cumbas um túnel onde Deus sabe o que estava acontecendo, mas a música house era absolutamente fantástica (Thomas, 2015: s/p).

Unglesse diria em outra ocasião que o Man Stink não estaria exatamente nos roteiros de bares gays, sobretudo pela sua abordagem mais hardcore, “mas era exatamente isso que Mc- Queen adorava, que era totalmente underground”. Teria sido nesse mesmo bar que McQueen perdera toda sua coleção Taxi Driver: sem dinheiro para pagar pela chapelaria, o designer teria deixado as roupas à porta em sacos pretos. Na manhã seguinte, quando foi recolher as peças, o material havia sido levado pelo caminhão de coleta noturno de lixo. Aquelas peças estariam perdidas para sempre (Wilson, 2015).

Apesar de, por vezes, escassas, as declarações sobre sua circula- ridade na cena clubber, através dos relatos de seus colaboradores ao longo de sua carreira, certamente nos permitem fundamen- tar sua disposição ao campo das estéticas disruptivas. Nicholas Towsend relembra que McQueen era um ávido consumidor de nitrato de amila (poppers) e ocasionalmente tomava ecstasy; seu hábito por cocaína apareceu tardiamente. “Sempre íamos a uma noite chamada Marvellous em Brixton que tocava Blondie, T-Rex e até disco music e dançávamos como loucos”. Uma noite, no iní- cio dos anos 1990, McQueen, seu namorado – o também estilista Andrew Groves – e Townsend decidiram se arrumar para ir a uma noite na Kinky Gerlinky. A roupa de McQueen foi um tiro preciso na moda pouco underground de Galliano. Ele apertou seu corpo corpulento num traje de lã grossa que sua amiga e incentivadora, a stylist Isabella Blow, lhe havia emprestado da última coleção de Galliano. Colocou um par de slingbacks de cor- rente e um chapéu tricolor feito de papelão embrulhado em lã crua para imitar a peça que as modelos usavam no desfile Fili- busters de 1993 de Galliano. Ele queria ser melhor do que qual- quer outra pessoa, relembra Groves. Melhor e mais vanguardista que Galliano. O tecido do traje era tão áspero que fez os mamilos de McQueen sangrarem, mas o afronte havia sido feito (Wilson, 2015; Berner, 2016). O hoje internacionalmente conhecido de- signer Julian MacDonald, assistente de McQueen nos anos 1990, rememora que certa vez ele lhe confeccionou uma gola alta com painéis verticais transparentes que deixavam o peito à mostra. Ele teria chamado a peça de Get Your Tits Out, quando indagado por MacDonald de onde teria vindo a inspiração, McQueen teria respondido “isso me lembra de uma roupa de fetiche que vi num clube ontem à noite” (Thomas, 2015, s/p). Encontrando inspira- ção nos cantos mais sombrios de Londres, McQueen talvez tenha sido o designer de sua geração que melhor dinamizou os movi- mentos do clube para a passarela e da passarela para o clube.

Rolê Clubber de SP: Entre o Massivo18 e a Sra. Krawitz19

Os clubbers paulistas, assim chamados por serem encontrados mais facilmente na cena noturna das boates, difundiam o house, o big beat, o deep house, o estilo industrial e todas as vertentes da electronic music resumidamente tratadas como techno. Atentos às inovações tecnológicas, os clubbers eram os primeiros a con- siderar as inovações e tendências no cenário global em termos culturais e comportamentais. É importante salientarmos que foi exatamente nesse meio subcultural que a sigla GLS foi inicial- mente cunhada para descrever os seus públicos consumidores e frequentadores. O universo clubber paulista era tão segmentado que no final dos anos 1990 uma publicação nacional de músi- ca lançou um artigo intitulado “Hetero-techno é o personagem” (Redação Folha de São Paulo Ilustrada, 1997, s/p).

A cena clubber paulista desenvolve-se num momento histórico bastante próximo ao vivenciado em Londres. Se na capital inglesa o movimento tem sua gênese com a Taboo, em 1985, em São Paulo era a atividade da casa noturna Madame Satã que plantava as primeiras sementes da inovação musical e estética. É possível traçarmos aproximações entre as condicionantes sociais vividas pela juventude londrina e paulista nos anos 1990 destacando as suas peculiaridades. Se no Reino Unido se vivia um momento de crise social e econômica decorrente das políticas de um governo neoliberal e monetarista, no Brasil a juventude passava por um momento de reconciliação democrática pós-ditadura (1969- 1985), e a noite se torna um ponto de encontro e resistência, em que o consumo de drogas e as batidas do techno carregavam um descontentamento, uma agressividade, uma ativação do potencial político contestador da fête nocturne.

Em 1988, o clube Madame Satã ainda operava, mas grande parte dos clubbers mais jovens já havia eleito o Nation, na Rua Augus- ta, como o seu mais novo reduto. Nas palavras do jornalista Edu- ardo Ribeiro, que cartografou parte dessas experiências, “com os caminhos abertos, foi a partir da inauguração do Massivo, nos Jardins, em 91, que a presença e a cultura gay se fortaleceram no circuito. No Massivo nasce a prática do dowatchalike, ou seja, ‘faz o que tu queres. Tudo era da lei’” (Ribeiro, 2016, s/p). Os frequentadores do Massivo trouxeram de volta, repaginados, os valores hedonistas dos anos 1970. Nas palavras de Erika Pa- lomino, que registrou a história no seu livro Babado Forte em 1999, “Meninos ainda em dúvida quanto à própria sexualidade se permitem ficar com outros garotos — e na próxima noite de novo com garotas. Já as garotas podem beijar outras garotas sem precisar sair com rótulos ou sob os olhos da opinião de todo o clube. Aliás, ao contrário: o mais moderno é ser bissexual” (Pa- lomino In Ribeiro, 2016, s/p).

Em 1992, era inaugurado o Sra. Krawitz, definindo os novos ru- mos da noite techno paulistana e consolidando o consumo de disco, dance pop e pós-punk. “A figura de Johnny Luxo à porta da casa, recebendo convidados e pagantes, consolidava simboli- camente a forte relação entre a noite e a moda” (Ribeiro, 2016, s/p), foi o primeiro clube a possuir uma DJ residente drag queen, Selma Self-Service, assim como a elaborar diversas festas temá- ticas que pervertiam a noção de vestimenta apropriada, estimu- lando um estreitamento da relação noite e moda experimental (Palomino, 1999).

DJ, modelo, host e clubber, a figura mítica Johnny Luxo ganhou o apelido graças à palavra que mais se falava, “desde os tempos da velha Nation”. E quando chegava ao Massivo “já era cerca- do pelos garotos que guardam carro, pelos gritos de “fala luxo, fala luxo”, ao que ele respondia com seu inimitável “llllluuuuu- xoooo”” (Palomino, 1994, s/p). A presença de figuras míticas nessas cenas é bastante característica: em Londres a tríade drag – Bowery, S.Stlin e Divine David; em São Paulo, os DJS e hostess dos clubes noturnos – Luxo, Self-Service, Glaucia ++. A produção de personas noturnas é algo interessante no con- texto das cenas culturais, atua como o estabelecimento de um modelo, de indivíduos que dentro das experiências contracul- turais conseguem coordenar os capitais e os signos que lhes conferem autoridade simbólica. Ao assumirem este papel, esses indivíduos estabelecem os códigos de vestuário e de com- portamento, isto é, os capitais incorporados e negociados para garantir a pertença a um dado grupo ou subgrupo contracultural (Thornton, 1996).

Produzia-se nesses espaços um estilo de vida que é tanto estético quanto relacional, isto é, que converge os signos de pertença com os princípios ideológicos de respeito às diferenças. Assim, tanto na Sra. Krawitz como na Massivo, a liberdade experimentada em outros clubes amadureceu. Aos poucos o público consumidor – majoritariamente gay – diversifica-se. Ainda que mais de metade do público pertencesse à comunidade gay masculina, os clubes não aceitavam este termo reducionista: o Massivo e o Krawitz contribuíram para desmistificar e passar a unir todos os grupos (Palomino, 1999). Todos os acontecimentos se tornavam para este público ávido por novidade e experimentação – em momentos performativos que uniam música, moda e libertação das formalidades sociais. Como pontuado pela DJ da Krawitz e responsável pela criação da festa Cio destinada ao público gay feminino, Glaucia ++, “eram festas livres, e as pessoas estavam se descobrindo em tudo, em moda, em música, em comportamento”, e ainda acrescenta: “A liberdade e o respeito experimentados nas festas da época acabaram influenciando a abertura da mente da sociedade, porque as pessoas que frequentavam começaram a ser vistas, começaram a fazer barulho” (Glaucia++ In Ribeiro, 2016, s/p).

Geograficamente localizados em espaços que nos anos 1990 ain- da não usufruíam do hype que possuem hoje – com exceção do Massivo, localizado na área nobre dos Jardins – a cena clubber paulista e a ressonância social que esta produzia – nos média são inúmeros artigos e vocábulos na Folha Ilustrada – foi responsável por uma requalificação urbana. Se em Londres, a cena clubber e os negócios diurnos a ela associados foram responsáveis por uma reordenação qualitativa do East End e do Soho, em São Paulo ela populariza e dinamiza o uso de regiões socialmente margina- lizadas, com foco na Rua Augusta – nomeadamente a Baixa Augusta. Se nos primórdios dos 1990 era conhecida pelos prostíbulos, prédios decadentes e uso de drogas, o movimento gay dos clubes noturnos juvenis – mesmo que pendular – funciona como um re- nascimento, atraindo negócios complementares – bares coordenados por jovens, lojas de estilistas recém-formados, etc. – para uma ocupação diurna deste enclave (Assef, 2016, s/p).

Semelhantemente ao caso londrino – embora não espacialmente como o Soho nos seus usos diurnos e noturnos sobrepostos – a cena clubber paulista convergia numa energia criativa. E talvez a moda, de entre todas as disciplinas criativas, tenha sido a que melhor participa desse movimento. Figura fulcral desse proces- so, Alexander Herchcovitch – judeu ortodoxo de origem polone- sa e romena, filho de uma proprietária de confecção – ascende rapidamente no campo da moda, assumindo-se como a figura do criador brasileiro de qualidade internacional. De seu escandalo- so desfile de formatura, em 1993, na Faculdade Santa Marcelina, Alexandre realiza uma apresentação independente em Londres, em 1999, e posteriormente passa a apresentar suas coleções em Paris, como o único estilista brasileiro integrante da Chambre Syndicale du Prêt-à-Porter des Couturiers et des Créateurs de Mode (Abest, 2020)20. No cenário da moda internacional, Her- chcovitch mostrava as mesmas coleções que posteriormente seriam desfiladas na São Paulo Fashion Week21, sendo um dos designers brasileiros a alcançar maior credibilidade internacional.

Participante assíduo dessa cena, Herchcovitch absorve e traduz para as suas criações as dimensões estéticas de uma vanguarda musical. Num movimento semelhante ao de McQueen na cena inglesa – club to catwalk – esta cena tornava-se um ponto rela- cional de encontro: a noite era traduzida para o dia, a club cultu- re transformava-se em club couture. A importância de designers como Herchcovitch reside exatamente na sua mobilidade social, trazendo as experimentações mais agressivas para os campos legitimados e até mesmo mercantilistas da moda. Como pontua Cosac, “frequentador das casas noturnas de São Paulo na década de 1990, época em que foi sacralizada sua icônica caveira, iniciou sua carreira produzindo roupas para drag queens. Uma década e meia depois, ele assinou todos os uniformes do McDonald’s” (Cosac, 2015, p. 23).

Portanto, não representa nenhuma surpresa que no seu desfile de conclusão de curso em 199322, Alexandre Herchcovitch tenha apresentado a drag queen Márcia Pantera utilizando uma túnica religiosa branca com uma cruz invertida pintada em preto. A modelo carregava um longo terço nas mãos e chifres na cabeça, enquanto caminhava, Pantera ia deixando um rastro de sangue pela passarela também coberta por um tecido branco. Desfilou também, nesse momento, o multiclubber paulista e host do clube Sra. Krawitz, Johnny Luxo, que exibia chifres metálicos na testa e carregava um fórceps, a comprimir uma boneca-bebê também respingando “sangue”. Assim como para McQueen, a cena clubber era para Herchcovitch um espaço de produção de afetos. Nasce ali – nas muitas noitadas em clubes como o Sra. Krawitz, Nation, Massivo e Madame Satã – a proximidade e amizade com figuras emblemáticas: a drag queen Márcia Pantera, a modelo Geanine Marques, Johnny Luxo, Erika Palomino. A relação Herchcovitch/Pantera em particular foi bastante profícua, em 2010 o estilista afirmou ter confeccionado mais de 300 roupas para ela (Faria, 2017, p. 42).

O desenvolvimento de um mercado imagético brasileiro – seme- lhante ao londrino nos termos descritos por McRobbie (1998) – é exatamente o que provoca um diálogo possível entre a relevân- cia estética e a relevância social, isto é, aquilo que é performado na noite como propulsor de um mercado diurno de moda, e que, muitas vezes, será novamente visto e direcionado às manifesta- ções estéticas na cena clubber. A partir de uma viragem nos meios de consumo – com enfoque no consumo destas imagens – esses agentes dissidentes acabam por galgar uma função social. Os ca- pitais culturais negociados desdobram-se em outras instâncias. A relevância de Herchcovitch nesse contexto – assim como a de McQueen – deve-se, portanto, à sua circulação que transcende o clube. Como frequentador dessas cenas é reconhecido e venerado nestes territórios simbólicos, mas ao desenvolver uma atividade diurna que se pretende mercantilista, o criador torna-se respon- sável pela divulgação dos anseios e experimentações de toda uma geração. Inicialmente operando através daquilo que Bourdieu (1996) descreve como antieconomia (uma modalidade de ini- ciativa na qual a integridade e o sucesso artístico são utilizados para mascarar a fragilidade dos negócios e a explicação para seu fracasso), Herchcovitch transforma-se numa esfinge geracional. O choque e as polêmicas transformadas em capital simbólico para posteriormente produzir capital econômico e cultural.

A estética club de Herchcovitch nos seus primeiros anos bebe di- retamente da cena noturna paulista, designadamente da primeira apresentação que viu da drag queen Marcia Pantera em 1988 na boate Nostromondo. Herchcovitch congrega o aspecto fetichista no emprego dos materiais sobrantes da confecção de lingerie da mãe misturados com látex e couro, as algemas, os chicotes, mas também o glam tardio de Boy George (Viveiros, 2015, p. 90). Não é de estranhar que os primeiros comentários sobre seu trabalho destacassem esse lugar de tensão entre o mundo diurno e as iden- tidades lúdicas noturnas onde se esgarçavam diferentes exigên- cias societais. Em reportagem de 1993 lia-se “Herchcovitch desfi- la o cortiço e o hospício” (Machado, 1993, s/p); em outra, de 1994, “trem fantasma” é o título que busca condensar a sua estética. Ainda em 1994, “Prostitutas foram primeira clientela” (Machado, 1994, s/p). Apesar de sumariamente moralistas, esses títulos nos auxiliam no desvelamento da relação entre moda vanguarda e as cenas noturnas underground. Quando confrontado com a ques- tão de seus primeiros modelos terem sido comercializados por uma clientela de prostitutas de rua e transexuais, Herchcovitch responde: “ainda faço, porque dá para ‘viajar’ muito e, já que elas usam mesmo, faço com muito amor” (Machado, 1994, s/p). Em Herchcovitch visualiza-se uma sinalização ainda mais intensa de sobreposição entre espaços de performatividade noturna e ne- gócios diurnos. Se McQueen desfilou suas primeiras coleções em armazéns abandonados e garagens industriais no leste londrino, Herchcovitch utilizava os clubes como a locação ideal de suas apre- sentações. Suas três primeiras coleções foram mostradas em clubes noturnos de São Paulo (no Columbia em 1993, e na Rave em 1994). Nas palavras do próprio estilista: “o underground, ou algo que é me- nos difundido e novo, desperta a curiosidade daqueles que estão atentos. No undergournd surgem ideias, o ambiente é livre e as pessoas se expressam com maior coragem e sem muitas amarras, surgindo aí alguma novidade” (Herchcovitch, 2015, p. 154).

Da boneca ensanguentada desfilada por Johnny Luxo aos vesti- dos que brilham no escuro desfilados na SPFW, a produção de Herchcovitch – assim como a de McQueen – apresentava referenciais da sua vivência nas cenas noturnas. Os estilos evoluíram, adaptaram-se para questões mais mercadológicas, mas nas palavras do próprio Herchcovitch, a dimensão do underground seria sempre um eixo estruturante da sua experimentação. “Fui chamado de estilista underground, e essa palavra aparece até hoje quando alguém tenta me descrever como artista ou quando fala do meu trabalho”. Com o passar dos anos, a sua produção não podia ser mais descrita assim, deixara de ser tão inacessível, a produção em série aumentou, “mas o underground sempre será uma fonte importante para olhar” (Herchcovitch, 2015, p. 154).

5. Do clube para a passarela. Da passarela para o clube outra vez. Moda e cenas musicais contemporâneas

Descrever e estudar do ponto de vista sociológico as juventudes criativas britânica e paulista dos anos 1990 só é possível através desta abordagem multidirecional que perspectiva as manifesta- ções das cenas musicais como frentes contíguas num outro tipo de cultura total. Espaços de convergência e catalisação, os clu- bes noturnos do Soho e do East End, assim como as boates de São Paulo, tornam-se territórios de encontro entre os diferentes grupos culturais – artistas, designers de moda, teatrólogos, mú- sicos, DJs – de modo que se transformam em grandes caldeirões socioculturais, cozinhando no mesmo fogo simultaneamente os ingredientes da renovação estética cultural do fim de século.

As relações aqui traçadas entre os dois criadores, geografica- mente distantes, mas inseridos em cenas semelhantes, apontam-nos uma força transformadora e equalizadora a nível cultural que as cenas clubbers estiveram aptas a oferecer. Apesar de muitos pontos de convergência, há certamente outros tantos de divergência. Separados por um oceano, mas desenvolvendo, cada qual à sua maneira, as suas estéticas e inserções ideológicas, o caso McQueen - Herchcovitch pode ser destacado como uma ilustração das negociações de capitais sociais, estéticos e econômicos envolvidos nas cenas musicais, artísticas e de moda contemporânea.

O papel que as cenas clubbers assumem para esses jovens de- signers de moda é indiscutivelmente múltiplo: primeiro como espaço de experimentação das suas subjetividades, afetos, limi- tes e gostos; segundo porque atuam como ponto espacial de en- contro entre grupos pertencentes às mesmas realidades juvenis, produtores e consumidores de dinâmicas culturais aproxima- das; terceiro porque servem de espaço de subsistência criativa e financeira, isto é, de local de inspiração e de mercado cativo para as suas produções; e quarto, porque atuam como plataforma de lançamento destes jovens criadores, o que se traduz num pro- cesso de absorção – lenta e de duras perdas – do underground para o mainstream (Bennett & Guerra, 2019).

Estamos a considerar um momento particular da história, em que os contextos globais se encontram mais ou menos homogeneizados e a cultura num processo visível de mundialização– assimétrica, mas constante. Assim, se para Evans (2012), es- sas dinâmicas caracterizam-se com um sentido de fin-de-siècle “poderia ser Viena no final do século, ou Paris nos anos 1930, ou ainda Londres nos anos 1990” (2012, p. 5), é porque há uma per- turbação societal e emocional que conduz os jovens a estas cenas e estas cenas de volta para o mundo. É neste sentido também que nestas prosopografias é possível aproximarmos cenas aparente- mente divergentes como Londres e São Paulo, nos anos 1990, e as figuras que nelas circulam como McQueen e Herchcovitch.

Personas fulcrais da dinâmica club to catwalk to club, McQueen e Herchcovitch são agentes sociais determinantes (improváveis) para compreendermos como os capitais e os valores são nego- ciados e materializados nas cenas musicais contemporâneas. O primeiro falecido em 2010, e o segundo afastado de sua marca homônima desde 2015, não figuram mais diretamente na cena clubber contemporânea. Todavia seu contributo é inegável nas análises sociológicas das hidden economies musicais e da moda em suas respetivas cidades nos anos 1990. Quando confrontado por certo entrevistador sobre as semelhanças entre seu trabalho e o de McQueen – ambos utilizavam a caveira como símbolo máximo de suas marcas – Herchcovitch responde prontamente: “há, de fato, um mundo em comum que foi explorado por ambos de maneira bem diferente, mas sempre contestadora e inquieta” (Herchcovitch, 2015, p. 248).

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Notas

[*] Este artigo inscreve-se no desenvolvimento dos Projetos de Investigação “Juventude e as artes da cidadania: práticas criativas, cultura participativa e ativismo”, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (PTDC/ SOC -SOC/28655/2017) e “CANVAS - Towards Safer and Attractive Cities: Crime and Violence Prevention through Smart Plan- ning and Artistic Resistance” (referência Ref.ª POCI-01-0145-FEDER-030748).
1 Este artigo insere-se num projeto de investigação intitulado Another Music in a Diffe- rent Room desenvolvido entre 2018 e 2020, sediado na Universidade do Porto (Portu- gal) tendo como parceiros a Universidade Pompeu Fabra (Espanha), a Griffith University (Austrália)e a Universidade Federal Juiz de Fora (Brasil).
2 A saber: Callahan, Muareen. Champagne Supernovas: Kate Moss, Marc Jacobs, Alexan- der McQueen e os rebeldes dos anos 1990 que reinventaram a moda. Rio de Janeiro: Fá- brica 231, 2015; Cosac, Charles. In: Alexandre Herchcovitch 1:1, São Paulo: Cosac Naify, 2015; Herchcovitch, Alexandre. Respostas às entrevistas. In: 1:1. São Paulo, Cosac Naify, 2015; Viveiros, Eduardo. 1:1 Alexandre Herchcovitch. In: Cosac, Charles (Org.), 1:1 Ale- xandre Herchcovitch. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
3 A saber: Palomino, Erika. Babado Forte: moda, música e noite na virada do século 21. São Paulo: Mandarim, 1999; Thomas, Dana. Gods and Kings: The rise and fall of Alexan- der McQueen and John Galliano. New York: Penguin Books, 2015; Watt, Judith. Alexander McQueen, the life and the legacy. Nova York: Harper Design, 2012; Whitley, Zoe. Was- teland/Wonderland. In: Wilcox, Claire (org). Alexander McQueen. Nova York: Abrams, 2015; Wilson, Andrew. Alexander McQueen: Blood beneath the skin. Londres: Simon & Schuster, 2015.
4 A saber: Berner, Sooanne. Relieve the heady nights of this 90s alt London club. Dazed. 15 de fevereiro de 2016. Disponível em: https://www.dazeddigital.com/photography/article/29804/1/relive-the-heady-nights-of-this-90s-alt-london-club; Gibson, Chris & Pagan, Rebecca. Rave culture in Sydney, Australia: mapping youth spaces in media dis- course. 2006. Disponível em: https://www.academia.edu/2872754/Rave_culture_in_ Sydney_Australia_mapping_youth_spaces_in_media_discourse; Machado, Álvaro. Herch- covitch desfila o cortiço e o hospício. Caderno 2, O Estado de São Paulo, 1993; Machado, Álvaro. Prostitutas foram a primeira clientela. Caderno 2, O Estado de São Paulo, 1994; Palomino, Erika. Johnny Luxo, Folha de São Paulo. 11 de março de 1994. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/3/11/ilustrada/12.html; Redação Folha de São Paulo Ilustrada. Hetero-tecno é o personagem, Folha de São Paulo Ilustrada. 25 de março de 1997. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/3/25/ilus- trada/27.html; Ribeiro, Eduardo. O que os clubbers paulistanos nos ensinaram sobre diversidade sexual, Vice. 07 Junho 2016. Disponível em: https://www.vice.com/pt_br/ article/xy9gd7/cena-clubber-sao-paulo-diversidade; Thomas, Dana. Galliano and Mc- Queen: clubland culture. Evening Standard. 25 de Fevereiro de 2015. Disponível em: https://www.standard.co.uk/lifestyle/esmagazine/galliano-and-mcqueen-clubland--couture-10069356.html.
5 A Central Saint Martins – University of the Arts London (CSM) – assume nos anos 1990 um papel preponderante na criação e desenvolvimento de uma moda experimental – é resultante de um processo de remodelação curricular do ensino superior britânico oriundo da Era Thatcher (1979-1990). A criação em 1990 do Mestrado Design de Moda representa um ponto de inflexão na história da CSM uma vez que será frequentado por estilistas que posteriormente auxiliam na construção da reputação da escola como um dos principais centros de formação de moda mundial, com destaque para Alexander Mc- Queen, John Galliano, Hussein Chalayan e Junya Watanabe (McRobbie, 1998).
6 A Faculdade Santa Marcelina é um estabelecimento de ensino superior brasileiro fun- dado pela Associação Santa Marcelina, criada em São Paulo em 1915. De forma pioneira, oferece, desde finais dos anos 1980, graduação em moda no País. No campo da moda brasileira dos anos 1990, a Faculdade Santa Marcelina assume um papel vital uma vez que se torna precursora dos processos de profissionalização e de formação superior de profissionais da moda. Diversos estilistas e stylists formados nessa escola auxiliam – por sua incursão rápida no mercado laboral – a reputar a sua centralidade, nomeamos, de entre eles, Alexandre Herchcovitch, Rita Comparato e Dudu Bertholini (Faria, 2017).
7 As cenas clubbers se tornam um importante espaço de encontro e trocas entre diferen- tes agentes culturais: ao nível noturno através das boates; ou ao nível diurno através do funcionamento de espaços de café e pela proximidade dos espaços de trabalho destes diferentes atores sociais. A relação de McQueen e da dupla de artistas pertencentes à geração dos Young British Artists, Jake & Dinos Chapman, ocorre nestes termos. A partir da amizade formada e cimentada nessas cenas, podemos perceber uma retroalimen- tação criativa entre suas produções – notadamente da série Tragic Anatomies (1996) dos Irmãos Chapman com a coleção Bellmer La Poupée (1997) de Alexander McQueen confirmando a importância das cenas como locais de encontros, de trocas e de criação estética (Figueredo, 2018).
8 A relação entre Herchcovitch e a figura da cena clubber paulista, a drag queen Márcia Pantera, surge em termos parecidos, isto é, na perceção das cenas como lugares de encontro e de tessitura de relações estéticas e profissionais que irão permanecer no dia a dia dos criadores. Herchcovitch criou mais de 300 roupas para as apresentações noturnas de Pantera; e esta participou em diversos desfiles de Herchcovitch como modelo e musa (Faria, 2017).
9 Havia uma polarização entre esses dois centros formativos nos anos 1990. A CSM era responsável por formar uma parcela considerável dos estilistas mais experimentais. A Goldsmiths formou grande parte dos artistas que irão integrar o movimento dos YBA’s – os Young British Artists (Figueredo, 2018).
10 O East End, zona leste de Londres, passou durante os anos Thatcher por um processo de empobrecimento e de evasão populacional. Nos anos 1990, o East End foi objeto de uma gentrificação acelerada muito motivada pela necessidade de amplos espaços de trabalho a baixos custos de locação por parte dessa geração de artistas e designers. Em pouco tempo, o East End torna-se the place to be (Figueredo, 2018).
11 Stela Stlin, Leigh Bowery e a anti-drag Divine David representam a tríade drag ani- madora dessa cena noturna. Personagens que migravam e participavam em diferentes instâncias da vida cultural. Leigh Bowery, por exemplo, influenciará a moda de McQueen, participando em exposições de arte e em produções cinematográficas como o filme Wi- gstock (1995) dirigido por Barry Shills (Figueredo, 2019).
12 McQueen era bastante conhecido pelo seu apreço face à cultura BDSM e aos clubes de sexo. Parte do erotismo e dos materiais utilizados nas suas coleções advém desse imaginário (Thomas, 2015; Callahan, 2015; Wilson, 2015).
13 O escultor alemão Hans Bellmer criou na década de 1930 uma série de bonecas des- figuradas, montadas cada uma a partir de partes protéticas juntadas de modo aleatório. Troncos com quatro pernas; troncos com pernas nos lugares dos braços; seios separa- dos, estas foram algumas das experimentações de Bellmer. Posteriormente, as bonecas foram fotografadas em poses letárgicas. Este conjunto de trabalhos serviu de inspiração para as pesquisas visuais de artistas da chamada geração dos YBA’s como Sarah Lucas, Jake e Dinos Chapman, e para estilistas como McQueen – que recupera esta discussão sobre as transformações corporais infligidas pelo sistema da moda em sua coleção de 1997, Bellmer La Poupée (Figueredo, 2018).
14 Artista da geração dos YBA’s, e criadora – junto de Tracey Emin – da loja locada no Soho, The Shop, Lucas mantinha uma proximidade com essas cenas, daí a criação de uma série escultórica preocupada com questões e debates semelhantes àqueles encontrados em McQueen e nos Irmãos Chapman (Figueredo, 2018).
15 Nessas coleções em específico, Alexander McQueen recupera um artefato bastante característico do guarda-roupa noturno da drag Leigh Bowery: as máscaras no estilo balaclava que cobrem todo o rosto, deixando de fora apenas a boca e os olhos. Em Dan- te, uma coleção que alude ao inferno descrito pelo escritor italiano, Dante Alighieri, e em Joan, uma coleção que discute a perseguição católica à bruxaria e especificamente à execução de Santa Joana D’Arc, McQueen eleva a sublimação do rosto pela balaclava, propondo máscaras que cobrem completamente a face, sem qualquer abertura, e eram ornamentadas por mãos esqueléticas (Dante) ou missangas vermelhas aludindo ao sangue (Joan) (Figueredo, 2018).
16 Em Voss, uma coleção na qual irá discutir as instituições de internação para doentes mentais, McQueen recupera o uso exagerado de organzas e de tecidos finos para criar silhuetas exageradas, bastante semelhantes àquelas vistas na indumentária de Leigh Bowery nas festas Taboo dos anos 1980-1990. Igualmente o xadrez preto e branco, bastante recorrente nos vestidos da drag, retorna em coleções como The Horn of Plenty (2009) (Figueredo, 2019).
17 Amigo de McQueen e produtor de diversos desfiles dos anos 1990. Atualmente é pro- fessor de moda e chefe do mesmo departamento na Arts Academy, na Universidade de São Francisco.
18 Clube gay inaugurado em novembro de 1991 na Alameda Itu em São Paulo. Idealizado por Mauro Borges e Bebete Indarte. O Massivo foi o primeiro clube gay centrado na figura de um DJ a conquistar fama nacional (Ribeiro, 2016).
19 Clube gay criado em 1992 e que ficava locado na Rua Fortunato, 34, no bairro paulista de Santa Cecília, foi responsável por tornar popular o movimento techno – iniciado pelos clubes Madame Satã em 1988 e Massivo em 1991 – e a relação moda-noite a partir de figuras emblemáticas como Johnny Luxo e Erika Palomino (Ribeiro, 2016).
20 Associação Brasileira de Estilistas.
21 A São Paulo Fashion Week – maior semana de moda brasileira – nasce no início da dé- cada de 1990 através de uma parceria do empresário Paulo Borges com Cristiana Arcan- geli, dona da empresa de cosméticos Phytoervas. O nome Phytoervas Fashion permanece até 1996, quando Borges se desliga de Arcangeli e passa a realizar o evento no Shopping Morumbi. Conhecido como Morumbi Fashion, o evento só passa oficialmente a ser cha- mado de SPFW em 2001. Desde o início, a finalidade de Borges era produzir um lugar de destaque aos criadores brasileiros, rompendo com uma moda nacional que apenas es- pelhava as produções parisienses. Alexander Herchcovitch que desfila no evento desde sua primeira edição talvez tenha sido um dos designers a alcançar maior credibilidade internacional, apresentando coleções em Paris, Londres e Nova Iorque (Faria, 2017).
22 Apenas um ano após o desfile de conclusão de curso de McQueen, Jack The Ripper Stalks His Victms, em 1992.


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