Artigos
Devaneios poético-emotivos de bom viver nas encantarias míticas da mãe-d’água brasiviana
Poetic- emotives devancies of the well living in the mythical charmings of mother-water brasivisiana
Ensueños poético-emotivos del buen vivir en los encantos míticos de madre-d’agua brasiviana
Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidad: Frecuencia continua
vol. 07, núm. Esp.02, 2020
Recepción: 08 Septiembre 2020
Aprobación: 07 Octubre 2020
Resumen: La investigación que resultó en la producción de este artículo es el resultado de una experiencia de más de quince años de este investigador, en el valle del río Mamu – Departamento de Pando – Bolívia, y tre como procucto de esta investigación, los míticos encantamientos de la Madre brasiviana del Agua. El lugar del la Madre Brasiviana del agua y las creencias de la comunidad ribereña en este ser mitológico. Surge como una devoción cosmogònica, originalmente entrelazada com la poética, las emociones y el buen vivir. El concepto “brasileño” se aborda aqui en referencia a los caucheros restantes brasileños en las caucherias del rio Mamu, desde el advinimiento de los dos grandes brotes caucheros en la Pan – Amazonia boliviana.
Palabras clave: Las plantaciones de caucho en la Amazonia boliviana, Mitologia brasileña, Emociones y buen vivir.
Resumo: A pesquisa que resultou na produção deste artigo é desfecho de uma vivência de mais de quinze anos destes pesquisadores no vale do rio Mamu – Departamento de Pando – Bolívia, e traz como produto desta investigação as encantarias míticas da Mãe-d’água brasiviana. O lugar da Mãe-d’água brasiviana e as crendices da coletividade ribeirinha neste ser mitológico, surge como uma devoção cosmogônica, originalmente entrelaçada à poética, às emoções e ao bem viver. O conceito “brasiviano” é aqui tratado em referência aos remanescentes de seringueiros brasileiros que nasceram nos seringais do rio Mamu, desde o advento dos dois grandes surtos da borracha na Pan – Amazônia brasileiro – boliviana.
Palavras-chave: Seringais da Amazônia boliviana, Mitologia brasiviana, Emoções e bem viver.
Abstract: The research that resulted in the production of this article is the outcome of an experience of more than fifteen years of this researcher in the valley of the Mamu River - Department of Pando - Bolivia, and brings as a product of this investigation the mythical enchantments of the Brasivian Mother of Water. The place of the Brasivian Mother of Water and the beliefs of the riverside community in this mythological being, appears as a cosmogonic devotion, originally intertwined with poetics, emotions and good living. The “Brasivian” concept is treated here in reference to the remnants of Brazilian rubber tappers who were born in the rubber groves of the Mamu River, since the advent of the two great rubber outbreaks in the Brazilian Pan - Amazon - Bolivian.
Keywords: Rubber plantations in the Bolivian Amazon, Brasivian mythology, Emotions and good living.
INTRODUÇÃO
A investigação de vivência na pesquisa participante que resultou na produção deste artigo foi realizada por um período que durou mais de quinze anos nos seringais bolivianos do rio Mamu no Departamento de Pando, na fronteira com a Região da Ponta do Abunã – Município de Porto Velho – Estado de Rondônia – Brasil. Os seringueiros do rio Mamu são aqui denominados “brasivianos”, por serem naturais deste rio, e remanescentes de seringueiros brasileiros que foram trabalhar na extração de borracha natural desde o advento do primeiro ciclo da borracha na região amazônica boliviana.
O presente artigo é composto de quatro partes: Na primeira parte abordamos os procedimentos metodológicos. O método utilizado foi a fenomenologia, que para elucidarmos a temática das encantarias míticas da Mãe-d’água brasiviana, recorremos aos suportes teóricos de Bachelard (1988;1989), com a fenomenologia da imaginação, e Loureiro (2001; 2008), com a fenomenologia do imaginário amazônico. Utilizamos a técnica da pesquisa participante, apoiando-nos nas contribuições de Holliday (2006), Gonsalves (2006) e Streck (2006), procurando elucidar a relevância desta técnica e o entrelaçamento de vivência e participação deste pesquisador com a coletividade brasiviana do rio Mamu.
Na segunda parte, analisamos o rio Mamu como caracterização da área de estudo e como o lugar da Mãe-d’água brasiviana. O lugar como categoria desta análise geográfica é aqui visto através de diálogos construídos com Dardel (2015) e Tuan (2015).
Na terceira parte, analisamos as relações emocionais do bem viver nas encantarias da Mãe-d’água brasiviana. Nesta análise encontramos suporte teórico em Loureiro (2001) e Bachelard (1989).
Por fim, na quarta parte, apresentamos o “Poema da Mãe-d’água brasiviana”, onde nos reportamos aos devaneios poético – emotivos do bem viver e as encantarias míticas deste inefável ser das águas do rio Mamu.
Procedimentos metodológicos
A convivência destes pesquisadores por um período de mais de quinze anos junto à coletividade brasiviana do rio Mamu e face ao pertencimento adquirido durante a nossa investigação, fez com que adotássemos a fenomenologia como o método de pesquisa mais adequado para a construção deste artigo. Os fatores: Pertencimento, modos de vida, espacialidade, temporalidade, poética, mitos, lugar, emoções e bem viver, fazem com que através deste método, possamos elucidar com maior profundidade, todas essas relações que se imbricam nas esferas material e imaterial, constituindo dessa forma, um peculiar entrelaçamento do imaginário mundo amazônico boliviano.
Para Loureiro (2001), o conceito de imaginário ocupa um papel destacado no esquema de análise de pesquisa voltado às populações tradicionais, uma vez que se toma como hipótese de trabalho, a ideia de que é o imaginário poético – estetizante que preside o sistema cultural na Amazônia. O autor revela ainda, que como poeta, professor de estética e pesquisador da cultura amazônica, se propõe a analisar, privilegiando um ângulo ainda inexplorado: O da função poética dessa cultura. Diante do exposto, podemos assim dizer que:
Nesse estudo da cultura amazônica, leva-se em conta uma cultura presente na atualidade regional, num momento em que os homens ainda não se separaram da natureza, em que perdura ainda uma harmonia, mesmo entrelaçada de perigos, e se vive em um mundo que ainda não foi dessacralizado. (LOUREIRO, 2001, p. 27).
Neste imbricamento do homem com a natureza, onde ainda perdura a harmonia, conforme narrou Loureiro, a imaginação é parte essencial e indissolúvel deste meio harmonioso. Bachelard (1989), nos diz que para esclarecer filosoficamente o problema da imagem poética, é preciso chegar a uma fenomenologia da imaginação. Para o autor, este seria um estudo do fenômeno da imagem poética quando a imagem emerge na consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado em sua atualidade. Neste sentido, enfatizamos ainda que:
Para bem especificar o que pode ser uma fenomenologia da imagem, para especificar que a imagem vem antes do pensamento, seria necessário dizer que a poesia é, mais que uma fenomenologia do espírito, uma fenomenologia da alma. (BACHELARD, 1989, p. 4).
A vivência ocorrida durante a pesquisa participante nos proporcionou realizar uma viagem à procura da alma do homem brasiviano e suas impregnações aos seres mitológicos que constituem elementos indissociáveis da organização do seu espaço de ação. Face ao longo período de vivência deste pesquisador junto às comunidades tradicionais do rio Mamu, a metodologia utilizada para a construção deste trabalho foi a técnica da pesquisa participante.
A vivência no bojo desta pesquisa, oportuniza também, reconhecer os seringueiros brasivianos como sujeitos da investigação e protagonistas de suas ações no cotidiano de peculiares experiências, oriundas da própria coletividade. Holliday (2006), nos informa que a experiência está marcada pela qualidade, as características dos sujeitos, os atores, homens ou mulheres que as vivem. Pessoas que internalizam experiências, sonhos, temores, esperanças, ilusões, ideias e intuições. Para o autor, tudo isso são processos que nos marcam, nos impactam e nos condicionam, a fazer-nos ser. Seguindo o mesmo caminho, Gonsalves (2006), nos esclarece que a pesquisa participante tem o objetivo de revelar o significado das formas particulares da vida social mediante a articulação sistemática das estruturas de significado subjetivo que regem as formas de agir das pessoas. Nesse sentido o pesquisador vai de forma natural, no espaço e tempo, entrelaçando-se às afetividades e emoções dos atores sociais no contexto de suas coletividades. Desta forma, vale ressaltar que:
A afetividade geralmente migra do último para o primeiro. As pessoas sentem dificuldades em exercer maior controle sobre a intensidade de suas emoções diante de acontecimentos que ameaçam afetar profundamente suas vidas. (GONSALVES, 2006, p. 252).
Acredito que somente a vivência no cerne da pesquisa participante, poderá de certa forma, imbricar-se com maior profundidade nas emoções e acontecimentos que marcam a vida da coletividade pesquisada e faz com que o pesquisador vá de encontro à sua própria transformação e uma melhor compreensão dos fenômenos que o cerca durante o processo de investigação. Streck (2006), explica que o pesquisador não entra em seu campo de pesquisa como algo estável e fixo. Ele muda porque (ou quando) aprende. Nesse sentido, “Estamos dando-nos conta de que os fenômenos exigem uma aproximação estética e a pesquisa que não incorpora a poética pode asfixiar-se na superficialidade. (STRECK, 2006, p. 274).
A vivência na pesquisa participante nos proporcionou a valiosa oportunidade de fundir-se à fenomenologia da poética dos mitos, das emoções e do natural pertencimento do lugar.
O lugar da mãe-d'água-brasiviana
O rio Mamu é o lugar da Mãe-d’água brasiviana, e possui aproximadamente 164 km de extensão. (Figura 01). Este caudaloso rio da floresta do Noroeste boliviano tem a sua nascente nas regiões pantanosas do Município de Santa Rosa del Abuná na Província de Abuná. Depois de percorrer este município, ele atravessa o Município de Ingavi, para então despejar as suas águas no rio Abunã. A sua foz fica Município de Santos Mercado na Província Federico Román. Ambas as províncias fazem parte do Departamento de Pando. O encontro dessas águas é identificado pelo encontro natural das águas escuras do rio Mamu com as águas amareladas do rio Abunã, na fronteira com a região da Ponta do Abunã - Município de Porto Velho - Estado de Rondônia – Brasil.
Nos seringais do rio Mamu, acima elencados, há um peculiar imbricamento do homem com a paisagem natural. Os seringais bolivianos do rio Mamu receberam os primeiros extrativistas brasileiros durante o início da segunda metade do século XIX. A partir daí os seus remanescentes, os brasivianos, agora nascidos em território boliviano, herdaram a cultura, a língua e o lugar, daqueles que construíram os primeiros tapiris e abriram as primeiras estradas de seringa, para a extração da valiosa borracha natural amazônica. Esta análise geográfica demonstra que “ a paisagem não é, em sua essência, feita para se olhar, mas a inserção do homem no mundo, lugar de um combate pela vida, manifestação de seu ser”. (DARDEL, 2015). Para o autor, é desse lugar, base de nossa existência, que, despertando, tomamos consciência do mundo e saímos ao seu encontro, audaciosos ou circunspetos, para trabalha-lo.
Essa visão de mundo, é para Tuan (2015), uma tentativa mais ou menos sistemática de as pessoas compreenderem o meio ambiente. Para que seja habitável, a natureza e a sociedade devem mostrar ordem e apresentar uma relação harmoniosa. Para o autor, as atividades práticas, podem parecer arbitrárias e podem ofender os espíritos da natureza, exceto se forem percebidas como tendo uma função e um lugar em um sistema coerente de mundo. Tuan (2015), indaga como se relaciona o ser humano com a terra e o cosmos, e ele próprio esclarece: “São tentativas de organização do espaço, sem um propósito limitado, mas com o fim de obter uma sensação de segurança no universo”. (P. 167).
As tentativas de organização do espaço de ação não se restringem apenas às relações materiais entre o homem e a paisagem natural. Dos homens ecoa o imaginário e neste estágio avançado da espiritualidade, a alma humana é possuída pelo sobrenatural, enquanto o material e o imaterial se entrelaçam, o lugar é assim internalizado pelo pertencimento, onde também reside o mítico. Para Tuan (2015), a transformação de espaço em lugar, também passa pelas orientações míticas:
O espaço mítico orientado tem outras características gerais. Organizar as forças da natureza e da sociedade, associando-as com localidades ou lugares significantes dentro do sistema espacial. Atribui personalidade ao espaço, consequentemente transformando o espaço em lugar. (P. 179).
A coletividade tradicional do rio Mamu, como o lugar da Mãe-d’água brasiviana, é desta forma, um lugar onde os espíritos das águas se materializam e tragam os devaneios e seus significados. Para Tuan (2015), “O espaço transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado”. As significações e presentificações fazem parte do mundo cosmogônico do ser brasiviano e de seus devaneios poetizantes.
Imaginário Amazônico e bem viver nas encantarias da mãe-d'água brasiviana
O seringueiro do rio Mamu é brasiviano, as mitologias como elementos indissociáveis do seu ser, são brasivianas. Homens, mitos e o espaço de ação, constituem, portanto, o lugar brasiviano. É na exuberância deste cenário estetizante da floresta pandina boliviana que as profundezas das águas deste rio, alojam a Mãe-d’água brasiviana. Ela vive entranhada na alma do homem seringueiro e seus cabelos são as inefáveis raízes que enfeitam as ondas deste caudaloso rio. Sua enigmática beleza feminina, encanta e fascina os brasivianos. A mãe-d’água é a mãe protetora das águas e a mãe protetora de homens e mulheres que passeiam sobre o seu manto fluvial.
É nesta poética estetizante do imaginário que Loureiro (2001), narra as relações do caboclo amazônico com as encantarias mitológicas das águas dos rios. O autor nos diz que a Iara ou Oiara – Mãe-d’água – vive nas encantarias do fundo dos rios. Ela atrai os moços e os fascina, mostrando-lhes seu rosto belíssimo à flor das águas e deixando submersa a cauda de peixe e que para seduzi-los, faz promessa de todos os gêneros, inclusive, aumentar o estado de encantamento com belas melodias, através de uma voz maviosa. A mãe-d’água, segundo nos explica Loureiro (2001), ela:
Convida-os a ir com ela para o fundo das águas do rio – onde se localiza a encantaria – sob promessa de uma eterna bem-aventurança em seu palácio, onde a vida é de uma felicidade sem fim. Quem tiver visto seu rosto, uma única vez jamais poderá esquecê-lo. Pode até, no primeiro momento, resistir-lhe aos encantos por medo ou precaução. No entanto, mais cedo ou mais tarde acabará por se atirar no rio em sua busca, levado pelo desejo amoroso de juntar seu corpo ao dela. (P. 260).
A mãe-d’água brasiviana é vista pelos seringueiros como um fenômeno que adota o bem viver em todas as suas ações, mas que usa do seu poder mítico para castigar todo aquele que se propuser a fazer o mal com as suas águas e o seu envolto natural. Ela se manifesta com toda a sua força nos devaneios do homem, conseguindo trazer o surreal que se materializa no real, fazendo com que os seus desejos sejam realizados. Para Tuan (2015), o espaço mítico é um constructo intelectual e pode ser muito sofisticado. Para o autor, “o espaço mítico é também uma resposta do sentimento e da imaginação às necessidades humanas fundamentais”.
Bachelard (1989), nos informa que enquanto as formas e os conceitos se esclerosam tão depressa, a imaginação material permanece com uma força atualmente atuante. Ele nos diz que só ela pode revitalizar incessantemente as imagens tradicionais e reavivar certas formas mitológicas. O autor nos revela ainda que “uma vez mais, é preciso compreender que o sonho é uma força da natureza”. É exatamente nesta força descrita por Bachelard que a mãe-d’água brasiviana se manifesta nos devaneios do homem seringueiro, pois segundo ele, se o devaneio se liga à realidade, ele a humaniza, a engrandece, a magnifica. O mesmo autor, nos chama ainda atenção, ao dizer que se considerarmos não mais os mitos, mas trechos de mito, isto é, imagens materiais menos ou mais humanizadas, o debate fica imediatamente mais matizado e sentimos ser necessário conciliar as doutrinas mitológicas extremas.
A Mãe-d’água brasiviana é revelada pelas águas míticas do Mamu, uma água alimento e uma água que provoca devaneios. Bachelard (1989), nos informa que: “Se dermos seu justo lugar à imaginação material nas cosmogonias imaginárias, compreenderemos que a água doce é a verdadeira água mítica”. (P. 158).
No rio Mamu, por exemplo, não se pode fazer nenhum mal a água, que cedo ou mais tarde, a Mãe-d’água brasiviana mostrará a punição de mãe, envolverá o homem em seus devaneios, emergirá dos fundos das águas, mostrará a beleza do seu rosto, encantado o homem mergulha em seus braços e vai em busca do bem viver. Bachelard (1989), nos diz que o devaneio começa por vezes diante da água límpida, toda em reflexos imensos, fazendo ouvir uma música cristalina. O autor nos indaga ao perguntar: “Qual é, pois, a função sexual do rio? ”. Ele mesmo responde: “É a de evocar a nudez feminina”. Para o mesmo autor: “O ser que sai da água é um reflexo que aos poucos se materializa: é uma imagem antes de ser um ser, é um desejo, antes de ser uma imagem”. (P. 36).
O seringueiro que acabara de cortar as árvores às margens do rio, deita-se para descansar e adormece. De imediato, ele é seduzido e encantado pelo rosto da Mãe-d’água brasiviana. “Com efeito, o rosto humano é antes de tudo o instrumento que serve para seduzir”. (BACHELARD, 1989, p. 23).
Desse modo a água nos aparecerá como um ser total: Tem um corpo, uma alma, uma voz. Mais que nenhum outro elemento talvez, a água é uma realidade poética completa. Uma poética da água, apesar da variedade de seus espetáculos, tem a garantia de uma unidade. (BACHELARD, 1989. P. 17).
Nos devaneios do seu imaginário, o homem é tragado pela Mãe-d’água e ambos realizam uma viagem nas profundezas das águas do rio Mamu, como dois seres internalizados em apenas um. Um amor que parecia durar para toda uma eternidade, diante de tamanha grandeza e maravilha, torna-se um dos mais belos espetáculos míticos das águas. “Desaparecer na água profunda ou desaparecer num horizonte longínquo, associar-se à profundidade ou à infinidade, tal é o destino humano que extrai sua imagem do destino das águas”. (BACHELARD, 1989, p. 14).
Para Loureiro (2001), A crença na existência desse rosto que emerge das águas é um caso de verossimilhança cultural. Ele é concebido como possível dentro do processo imaginal florescente no devaneio do caboclo, do homem amazônico. Ele representa a imagem que a cultura amazônica – teogônica e poetizante – formou de uma representação fascinante do amor em sua realidade. Para o autor, o resultado desse amor para o caboclo amazônico é o de voltar encantado, ou jamais voltar:
Os moços que adormecem nos braços líquidos da Iara jamais voltaram. São os grandes desaparecidos, os habitantes de uma ausência irremediável. Estão verdadeiramente acolhidos e abrigados por um amor eterno. A partir daí, torna-se um outro encantado. Não realiza prodígios. Pode reaparecer nas águas ou à beira dos rios. Mas não seduz nem atrai. É uma visagem, uma aparição, como se diz desses eventos de passagem do sobrenatural para o real, na Amazônia. (LOUREIRO, 2001. P. 263).
No imaginário brasiviano, o seringueiro não retorna das águas, e é devorado pelo fogo, juntamente com as pessoas que ele mais gosta. Ao chegar no reino encantado, a mãe-d’água o abandona, as águas desaparecem, a natureza é extinta e o fogo consume os restos do que ele mais ama. A mãe-d’água tornou-se violenta, mas para Bachelard (1989), “A água violenta é logo em seguida a água que violentamos’. O homem violentou a água e recebeu a sua punição, mas a punição recebida da Mãe-d’água brasiviana, foi uma viagem em busca do ser brasiviano que precisava transformar-se para poder cuidar melhor de suas águas, e ela conseguiu. O homem acordou renovado e passou a defender a sua mãe, a defender as águas como o mais precioso alimento da vida humana.
As emoções presentes no imaginário mítico do ser brasiviano fazem parte do seu pertencimento de lugar e da organização do seu espaço de ação. Este entrelaçamento do real ao surreal vai de encontro à incansável busca pelo bem viver. Para Tuan (2015), o corpo humano é um esquema hierarquicamente organizado; impregnado com valores resultantes de funções fisiológicas carregadas de emoção e de experiências sociais íntimas. Para Silva (2016), a nossa relação com o espaço não é meramente visual ou corpórea, mas é também envolvida por emoções, possibilitadas a partir das nossas experiências e vivências. Para a autora, muitas das experiências cotidianas envolvidas pelas emoções são “despertadas” em distintos lugares, isto é, há lugares significativos em que as emoções ficam mais evidentes, podendo ser positivas ou negativas.
A mãe-d’água brasiviana vive impregnada no imaginário dos ribeirinhos da floresta pandina boliviana. Esta simbolização cosmogônica é parte indissociável da poética, das emoções do lugar e dos caminhos que norteiam o bem viver.
Poema da mãe-d'água brasiviana: uma reflexão poético-emotiva do bem viver
No rio Mamu intimamente entranhada
Seus cabelos enfeitam a profundeza
São raízes de inefável beleza
Que se movem de forma divinizada
A mãe-d’água ali vive alojada
Numa morada que sempre a faz sorrir
A natureza feliz pode sentir
Que sua alma é puramente feminina
Sua beleza, ela encanta e fascina
E o seu canto foi feito para seduzir
Bachelard[3]nos fala da intimidade
Da água e sua imaginação
E nesta peculiar simbolização
Encontramos a sua originalidade
Viajamos na sua espiritualidade
Para sentir um belo ser feminino
A água, é assim, um tipo de destino
Que fascina com seus galanteios
Que seduz com seus devaneios
Como obra mítica do divino
Dardel[4]nos fala sobre o mito da sereia
Numa força envolvente do mar
Uma força com o desejo de tragar
E tragando nos arrasta à sua veia
Desta forma, a sereia no mar semeia
Um canto enganador na profundidade
E nas ondas envolvente da felicidade
Realiza seu desejo encantado
O homem é seduzido e arrastado
E a sereia realiza a sua vontade
Na ordem cósmica de suas mitologias
Do arquétipo e simbólico mundo
Loureiro[5] fala de um abrigo profundo
Das águas míticas e suas encantarias
Dos rios que abrigam cosmogonias
Do caboclo amazônico sonhador
De um repertório fluvial de valor
Que identifica este ser identitário
A iara ou mãe-d’água é o imaginário
Como prodigiosas lendas do amor
No Mamu todas as águas são dela
Ela é a mãe da água cotidiana
A mãe-d’água, ela é brasiviana
E das águas, somente ela é quem zela
A sua face é de todas, a mais bela
E não existe uma deusa tão divina
Ela é a mãe, é rainha e heroína
Detentora de toda imaginação
Sua melodia viaja na imensidão
E sua canção, encanta, seduz e fascina
Na água e os sonhos, obra de Bachelard
Ocorre uma passagem estética
Da poesia das águas à metapoética
Esta passagem vai do plural ao singular
E do heterogêneo ao peculiar
A água se torna uma contemplação
Ocorre assim, nesta representação
Uma imaginação materializante
Uma simbologia devaneante
Que não há como desatar
Tuan[6] diz que o sentido de lugar
É uma qualidade do conhecimento
É a alma do pertencimento
Onde o homem vai se enraizar
O espaço vivido vai se transformar
No lugar onde reina a harmonia
Uma voz da heterotopia
Um caminho para a ontologia
E um bem viver para sonhar
A água para Dardel[7] tem grande mobilidade
É um salto soletrado da corrente
Que fascina do homem, a sua mente
Com sua especial singularidade
Ela dar ao rio uma personalidade
Que provoca no homem uma atração
Há, portanto, uma íntima relação
Que pode ser discreta ou turbulenta
Acariciante ou até violenta
Que marca o homem com sua fascinação
Loureiro[8] fala do estado de encantamento
No estudo da poética do imaginário
A mãe-d’água no seu inefável cenário
Ela usa a melodia do sentimento
O caboclo passa a ter pertencimento
De uma canção pura e harmoniosa
O ser mítico da mulher maravilhosa
Lhe promete palácio e felicidade
E as aventuras mergulham na eternidade
De uma voz eloquente e maviosa
No Mamu a mãe-d’água é bem viver
Brasiviana é a sua identidade
Sua alma é aspecto de bondade
Que tem vontade de amar e proteger
A mãe-d’água vive pronta a socorrer
Se o batelão[9] balançar para virar
Ela não deixa a embarcação afundar
Porque é água amiga do seringueiro
Ajudar é o seu valor primeiro
Sentimento maternal do verbo amar
A mãe-d’água brasiviana é amor
Que seduz e fascina o vivente
Ela sonha que quer ver a sua gente
Pela água, sentir o melhor sabor
A mãe-d’água, ela quer ter seu valor
No ser da alma do humano
Que este humano no seu cotidiano
Sinta o amor materno de sua beleza
Que respeite toda obra da natureza
Como um autêntico ser brasiviano
Os seus cabelos divinos são penteados
Pelas ondas do rio inefável
A mãe-d’água quer o rio saudável
Para manter seus cabelos divinizados
Seus cabelos não podem ser ameaçados
Pela ordem da insensatez humana
Não se pode maltratar a água cotidiana
Porque fere a obra da natureza
Não se pode tirar jamais a beleza
Dos cabelos da mãe-d’água brasiviana
Seus cabelos é um belo entrelaçamento
Que abraça as águas do rio
As árvores também sentem o seu frio
Pois suas raízes não sofrem aquecimento
Cabelos e raízes formam um só sentimento
E se abraçam às margens do rio caudaloso
Neste encontro natural e harmonioso
A mãe-d’água está muito bem alojada
As árvores agradecem a sua morada
E o planeta se sente maravilhoso
No poder de sua imaginação
Seus cabelos estão atados na mata
Armado, o homem vem e desata
Derrubando a virgem vegetação
A mãe-d’água canta uma longa canção
Ao sentir que seu cabelo foi cortado
Ela olha e reconhece o culpado
Que resolve ali mesmo descansar
A mãe-d’água mostra a beleza do olhar
E o homem é seduzido e amado
Para Loureiro[10] a música é relevante
Um importante papel para a cultura
Na Amazônia não há como haver ruptura
De algo puramente estetizante
Vejo a canção como via importante
Que instiga a nossa sensibilidade
Ela acende a nossa espiritualidade
Do mundo real ao sobrenatural
Uma viagem de via transcendental
Como um traço da nossa identidade
O emergir florescente é marca do seu olhar
É uma imagem sedutora de luminosidade
Seu rosto penetra na espiritualidade
Como raios coloridos a brilhar
A mãe-d’água brasiviana vai revelar
O poder mítico de sua representação
E na poética desta simbolização
O seringueiro vai em busca do seu ser
Vai procurar o amore o bem viver
Nos devaneios de sua imaginação
Na encantaria peculiar da paisagem
Da amada e sedutora deusa
O homem mergulha na sua beleza
E abraça a fabulosa imagem
Juntos realizam a íntima viagem
Libertos amantes abraçados
Dois corpos que viajam apaixonados
Grudados por um único sentimento
O amor virou pertencimento
Dos poderes míticos divinizados
Bachelard[11] nos diz que é preciso compreender
A combinação dos elementos materiais
O poder das substâncias naturais
Que fascina e apropria o ser
A água passa, assim, a pertencer
E a entrelaçar este ser com o sentimento
O mitológico provoca o imbricamento
De devaneios de paz e felicidade
A água em sua mítica maternidade
É o encanto de um próprio casamento
Juntos vão para o reino encantado
Onde as águas alojam suas belezas
Belezas que ficam nas profundezas
Do rio Mamu divinizado
Neste reino epifanizado
A natureza é originalmente amada
Desta vez a beleza não foi encontrada
E o reino encantado desapareceu
A mãe-d’água do homem esqueceu
E a ele restou encontrar a sua morada
A sua casa estava sendo queimada
Por um fogo cruel e ardente
Na casa, a sua família inocente
Poe ele em agonia chamava
E quando ele se aproximava
O fogo havia tudo devorado
Não havia água, nem mata, nem natureza
- Meu Deus quem fez tamanha malvadeza?
Gritou o homem, perto do filho queimado
Quase morto seu filho conseguiu
Responder ao triste sentimento:
- Meu pai, a morte é o meu único alento
E a mata foi você que destruiu
Você fez secar o nosso rio
Matar os pássaros e todos os animais
Suas ações formam tristes e fatais
Só restou o que você está vendo
Ver a sua família morrendo
Foram estes, os derradeiros sinais
Em desespero o pai começa a gritar
E acorda num grande sofrimento
Na mata ecoa um forte vento
No local onde parou para descansar
Saiu correndo pela mata a chorar
À procura da sua velha morada
Na agonia perdeu o rumo da estrada
Em pranto, por tudo quanto sentiu
De repente chegou à beira do rio
E avistou sua canoa ancorada
Na canoa em pranto ele entrou
E começou no rio Mamu a remar
Em casa, ele queria chegar
Pois sentia que a sua família acabou
Ele dizia que o fogo cruel matou
O que na vida ele mais amava
Durante toda viagem chorava
Até chegar na velha curva do rio
De repente da canoa ele viu
A morada que ele tanto adorava
Pulou da canoa e começou a correr
Dizendo senhor – perdoa pelo que fiz.
Toda família veio lhe abraçar feliz
E chorando ele a foi receber
A família procurou logo saber
O que de fato havia acontecido
Pois nunca viram algo assim parecido
Ele chorava de amor e felicidade
À família ele contou toda a verdade
Se sentindo eternamente agradecido
A partir dali outro homem renascia
A mãe-d’água transformou o seu ser
Ela ensinou ao homem o bem viver
E o lugar que a ele pertencia
O brasiviano agora sabia
Que não pode vender a natureza
Que os valores do ser é a riqueza
E também o seu melhor sentimento
E o ser só terá pertencimento
Se mergulhar na própria profundeza
Passados os devaneios da triste dor
Que lhe causou uma grande infelicidade
Depois de repensar a vida de verdade
Ele descobriu pela família o amor
Descobriu da natureza, seu valor
E a mãe-d’água ele em fé, agradeceu
Ajoelhou-se diante do rio e prometeu
Que não fará às águas, qualquer mal
Que o bem viver é a alma do seringal
E essa promessa, ele jamais esqueceu
O princípio ontológico do pensamento
É para Heidegger[12], o princípio do ser
O ente no espaço de ação vai apreender
E adquirir no tempo, o pertencimento
A vivência nos traz o arrazoamento
Numa relação com a coletividade
Neste caso, no ente, a identidade
É um traço pelo ser apreendido
E o ente no seu espaço vivido
Vai construindo a sua singularidade
Heidegger[13] ao explicar sobre o pertencer
Diz que o ente precisa estar integrado
Inserido como algo entrelaçado
Desta forma, ele busca esclarecer
A relevância do ente encontrar o ser
No seio da própria coletividade
Mas não depende apenas da comunidade
O ente precisa então experimentar
A unidade coletiva onde ele estar
E ele próprio descobrir, o que lhe é peculiar
Encontrar a alma do pertencimento
É a morte mítica da vida humana
Para a mãe-d’água brasiviana
É conhecer a essência do sentimento
É valorizar o seu empoderamento
E mergulhar à procura do próprio ser
A mãe-d’água encanta para oferecer
Os modos de vida da alteridade
Encontrar liberdade e felicidade
E os caminhos que visam o bem viver
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mãe-d’água brasiviana é parte indissociável da natureza amazônica boliviana. É uma fonte cosmogônica da exuberância das águas do rio Mamu divinamente impregnada na alma dos seringueiros brasivianos. No contexto da Pan –Amazônia Brasil – Bolívia, a mitologia vive grudada nas peculiaridades devaneantes do ser ribeirinho e nas singularidades e pluralidades da poética inefável do lugar.
Na epifania do imaginário amazônico pandino, a Mãe-d’água é a mãe mítica protetora dos homens e da natureza e protagonista de ações do bem viver, representada nos devaneios das populações tradicionais e no pertencimento cultural de suas simbólicas encantarias. Este encantamento mítico e sua poética – estetizante, também fazem parte da cotidianidade brasiviana que de geração em geração vai deixando rastros histórico-culturais que foram secularmente internalizados pela influência indígena e cabocla, fecundadas na alma do ser amazônico.
A Mãe-d’água brasiviana está presente na alma dos seringueiros e seu poder mítico se alastra na fronteira do imaginário e numa fronteira que mais une do que separa, uma fronteira que não é vista como um divisor de território e sim como uma marca de liberdade e segurança humana de lugar. A Mãe-d’água é também elementos que se estendem como uma marca feminina de empoderamento e equidade, uma marca que resiste à modelos hostis de desenvolvimentos estatais hostilizantes e violentadores da cultura e da alma humana.
A alma brasiviana continua resistindo como pode para jamais ser desalojada de seus valores originais, dentre os quais, o poder mítico feminino da Mãe-d’água brasiviana.
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Notas
Notas de autor