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“Continuum” da violência sexual contra crianças e adolescentes do gênero feminino e o lugar do crime
Danúbia Zanotelli Soares; Maria das Graças Silva Nascimento Silva
Danúbia Zanotelli Soares; Maria das Graças Silva Nascimento Silva
“Continuum” da violência sexual contra crianças e adolescentes do gênero feminino e o lugar do crime
“Continuum” de la Violencia Sexual Contra Niños y Adolescentes del Género Femenino y el Lugar del Crimen
“Continuum” of female child and adolescent sexual violence and the place where the abuse takes place
Revista Presença Geográfica, vol. 07, núm. Esp.02, 2020
Fundação Universidade Federal de Rondônia
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Resumo: O presente artigo objetiva apresentar os resultados da pesquisa intitulada “O lugar do medo: violência sexual contra meninas sob o olhar geográfico”, realizada entre os anos de 2018 e 2019, através/pela Universidade Federal de Rondônia-UNIR, para obtenção de título de mestra em Geografia. Na perspectiva da geografia de gênero, com uso do método fenomenológico, baseado na obra “A poética do Espaço” de Gaston Bachelard (1993), e por meio das técnicas de revisões bibliográficas, entrevistas e produções de mapas mentais, foi possível analisar o crime de violência sexual incestuoso ou intrafamiliar contra crianças e adolescentes do gênero feminino, o lugar onde os abusos ocorriam, a relação de proximidade ou grau de parentesco entre as vítimas e abusador (es), as consequências para o convívio social resultantes desse processo e o “continuum” de violências perpetradas contra as vítimas, concomitante aos abusos sexuais ou em momentos posteriores às violações. Meninas constituem a maior parte das vítimas nesse tipo de crime, diretamente ligado ao patriarcado, realizado sob atos de violências, opressões e ausências. A maior parte dos abusadores são os padrastos, pais, avôs, irmãos, tios e/ou pessoas que têm acesso ao lugar de habitação das vítimas, o que consequentemente desmonta a ideia da casa como lugar seguro à vida e ao desenvolvimento humano, ao mesmo tempo, em que evidencia as relações díspares no lugar vivido entre a vítima e o abusador.

Palavras-chave: Geografia de Gênero, Violência Sexual, Continuum de Violências, Lugar do Medo.

Resumen: Este trabajo tiene el reto de presentar los resultados de la investigación que tiene el título “El lugar del miedo: violencia sexual contra las niñas bajo una mirada geográfica”, llevada a cabo en los años de 2018 y 2019 en la Universidad Federal de Rondônia – UNIR – con el objeto de obtener el título de mestre en geografía. Teniendo en cuenta la geografía de género, se aplicó el método fenomenológico basado en “La poética del espacio” de Gaston Bachelard (1993), además de la aplicación de las técnicas de revisión bibliográfica, encuestas y producciones de mapas mentales. Desde esta perspectiva, se pudo hacer un análisis del crimen de la violencia sexual incestuoso o en el seno de la familia contra niños y adolescentes del género femenino, el entorno donde se sufrió el abuso, la relación de proximidad o grado de parentesco entre la víctima y el perpetrador, las consecuencias para seguir la vida social tras este suceso y, por fin, el “continuum” de violencias perpetradas sobre las víctimas concomitante a los abusos sexuales o en momentos tras las violaciones. En cuanto al abuso sexual infantil se puede decir que, en su mayoría, las víctimas son niñas. Además, se nota que este tipo de crimen tiene relación directa con el patriarcado y se lleva a cabo a través de actos de violencias, opresiones o ausências. La mayor parte de los perpetradores son los padrastros, padres, abuelos, hermanos, tíos y/o personas que tienen acceso al entorno familiar de las víctimas. De ahí que se desconstruye la idea del hogar como un lugar de seguridad y desarrollo humano a la vez pone el énfasis en las relaciones dispares en el entorno donde la víctima y el perpetrador viven.

Palabras clave: Geografía de Género, Violencia Sexual, Continuum de Violencias, Lugar del Miedo.

Abstract: The current study aims to show the findings from the research named “ The fear place: sexual violence against girls from a geographical perspective”, carried out between 2018 and 2019, at Federal University of Rondônia (UNIR), in order to obtain the master degree in Geography. In the perspective of gender-based geography, the phenomenological method was adopted based on “The poetics of space”, by Gaston Bachelard (1993), through bibliographic review, interviews as well as production of mental maps, enabling to analyse the Incestuous child sexual abuse against female victims also known as intrafamilial sexual in terms of the place where the violence takes place, the relationship between the victim and the perpetrator(s), the impacts on social life and, lastly the “continuum” of violence against the victims, concomitantly with sexual abuses or after them. Most victims are girls, which is closely related to patriarchy, carried out by acts of violence, oppression and absence. Most perpretators are stepfather, father, grandfather, brothers, uncles and/or people who have access to the place where the victim lives. In this way, the concept of home as a safe place for human development is collapsed since there are disparate relationships within the place where victim and perpetrator live.

Keywords: Gender-based geography, Sexual violence, Continuum of violence, Fear place.

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Artigos

“Continuum” da violência sexual contra crianças e adolescentes do gênero feminino e o lugar do crime

“Continuum” de la Violencia Sexual Contra Niños y Adolescentes del Género Femenino y el Lugar del Crimen

“Continuum” of female child and adolescent sexual violence and the place where the abuse takes place

Danúbia Zanotelli Soares[1]
Universidade Federal de Rondônia, Brasil
Maria das Graças Silva Nascimento Silva
Universidade Federal de Rondônia, Brasil
Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 07, núm. Esp.02, 2020

Recepção: 05 Setembro 2020

Aprovação: 16 Outubro 2020


INTRODUÇÃO

O presente estudo apresenta os resultados de uma pesquisa, realizada ao longo dos anos de 2018 e 2019, denominada “O lugar do medo: violência sexual contra meninas sob o olhar geográfico”, através da Universidade Federal de Rondônia- UNIR, para obtenção de título de mestra em Geografia. A pesquisa considerou a privacidade dos lares, no intuito de desvendar as amarras existentes nos crimes de abuso sexual intrafamiliar ou abuso sexual incestuoso, bem como analisar a participação dos gêneros feminino e masculino, na prática criminosa, no tocante à posição que ocupavam. Ao longo do estudo, as consultas em acervos bibliográficos e documentos subsidiaram as pesquisas de campo, em contrapartida, as entrevistas com as mulheres vítimas de abusos sexuais quando crianças e adolescentes, com agentes penitenciários, psicólogas, e com dois albergados condenados pelo crime de abuso sexual, foram de suma importância e reafirmaram dados encontrados em acervos bibliográficos e documentos epidemiológicos.

Por meio da pesquisa, confirmamos que o gênero feminino constitui as principais vítimas, sobretudo, crianças e adolescentes; e no que lhe concerne, o gênero masculino é o abusador, que usa de sua autoridade em relação à vítima, e de sua confiança, para cometer os atos de violações. Defendemos que entre os artifícios usados pelos agressores para calar as vítimas, muitos têm suas raízes no patriarcado, através do poder e da violência, fazendo com que além das violações sexuais, sejam também submetidas a agressões verbais, psicológicas e físicas, num “continuum” cumulativo de agressões.

A primeira entrevistada e participante da pesquisa, na posição de vítima, se autodenominou Tristeza, possui 22 anos, é estudante, casada, e abusada sexualmente pelo padrasto aos cinco, aos nove e aos doze anos. A jovem se autodeclarou negra, é bem articulada, e relatou conseguir falar dos abusos sofridos após assistir uma palestra na escola onde estudava, justificando que seu silêncio era mantido através de constantes ameaças por parte do padrasto, e posteriormente, pela vergonha em expor os atos. Ao justificar o codinome escolhido, diz ter direta relação aos seus sentimentos subjetivos, devido aos abusos sofridos.

A segunda entrevistada se autodenominou Gratidão, tinha 27 anos na data da pesquisa, e foi vítima de abusos sexuais por três distintos agressores: padrasto (dos 05 aos 10 anos), irmão (aos 09 anos) e um amigo da família (aos 10 anos). A entrevistada demonstrou muita revolta, magoa e aversão, sobretudo, aos abusos realizados pelo padrasto. Ao escolher o codinome, a entrevistada relatou que devido à forma como foi criada, a sua construção familiar e aos abusos sofridos, poderia ter escolhido os caminhos das drogas e do álcool, entretanto, face às bênçãos de Deus, foi conduzida ao caminho de bem.

A terceira entrevistada se autodenominou Perseverança, tinha 42 anos, dona de casa, e foi abusada sexualmente pelo avô aos 10 e aos 14 anos, e apenas na data da pesquisa conseguiu relatar os abusos sofridos para a pesquisadora e para o esposo. Segundo a entrevistada, o agressor tinha pouco convívio com sua família, e em um dia de visita a sua casa, aproveitou a ausência dos seus pais, para cometer os abusos, contra ela e suas irmãs. Além da revolta, restou o sentimento de perplexidade, por não conseguir compreender como o avô foi capaz de fazer mal as próprias netas. Ademais, as más atitudes do avô despertaram na vítima, sentimentos de medo em relação a outros homens, por acreditar que todos poderiam ser do mesmo jeito.

A quarta entrevistada é Rosa, tinha 54 anos na data da entrevista, professora, e justifica o codinome escolhido por gostar de cultivar rosas. Rosa foi vítima de abuso sexual dos quatro aos 08 anos pelo irmão mais velho, fato que culminou para que a entrevistada não mais passasse considerá-lo como irmão, a partir do momento que passou a entender os abusos sofridos. De acordo com a entrevistada, ela e o irmão nunca conseguiram ter um relacionamento de respeito, cortesia e de amor, e que sofreu agressões físicas por parte dele, que considera ser uma forma de mantê-la em silêncio por muitos anos.

A entrevistada denominada psicóloga 01 trabalha em um Orfanato, popularmente conhecido como abrigo de menores, em um município do estado de Rondônia. A profissional é graduada em psicologia (1999) e mestre em psicologia (2013), exerce sua função diretamente com crianças e adolescentes submetidas às práticas de crimes sexuais, e relata que é difícil lidar com o problema e fazer com que as vítimas verbalizem seus sentimentos, mesmo porque, diante dos atos sofridos, elas se sentem inseguras para falar sobre o assunto, e ressalta ainda que poucos casos chegam à unidade com encaminhamento por abuso sexual, e sim por maus tratos e negligência, por exemplo. Posteriormente, após algum tempo em contato com a criança ou adolescente, e a partir da observação de suas atitudes, é que se chega ao conhecimento dos casos.

Por fim, a psicóloga 02, que participou diretamente na análise dos mapas mentais, atua na área da educação desde 1999, possui graduação em pedagogia (2005), e em psicologia clínica e institucional (2015), e na contemporaneidade atende alunos com dificuldades de aprendizagem ou portadores de necessidades educacionais especiais, em uma instituição de ensino estadual. A entrevistada contribuiu significativamente na interpretação dos traços e cores dos desenhos realizados pelas entrevistadas, e pelo entendimento do que não pôde ser verbalizado pelas vítimas.

Acreditamos que o espaço geográfico é construído através das transformações empreendidas sobre o ambiente natural, entretanto, sobretudo, pelas relações estabelecidas pelos distintos agentes que compartilham os diversos territórios ao longo de suas vidas. De igual forma, acreditamos na geografia de gênero, como uma ciência capaz de identificar e discutir os percalços resultantes dessas relações, de forma que todos os indivíduos tenham espaço de fala visando à quebra de paradigmas e do patriarcado, na contemporaneidade.

Materiais e métodos

As análises dos sentimentos e percepções das vítimas de abuso sexual incestuoso, em relação ao crime, ao lugar, ao agressor e as complexas relações sociais de gênero e poder, foram possíveis através da abordagem qualitativa. De acordo com Bernardes (2017, p. 20), a abordagem qualitativa possibilita “[...] apreender o real no contexto da subjetividade, do simbólico e da intersubjetividade próprias das relações expressas na realidade social, num intercambio com suas dimensões objetivas”. Segundo Moraes (2017), a pesquisa qualitativa permite que o pesquisador use várias técnicas para coleta de dados, organizados em um processo contínuo ao longo da pesquisa, objetivando a identificação das categorias de análise, relações entre autores e conceitos, entre outros. Ademais, corroboramos com Alves (2008) que o uso de um único método para coleta de dados, a depender do fenômeno em estudo, torna-se inviável devido a complexidade das relações e produtos sociais.

Por sua vez, as pesquisas de campo permitiram o contato da pesquisadora com as vítimas de abuso sexual, e com profissionais que atuam na linha de frente do fenômeno pesquisado. Consideramos uma etapa primordial a concretização do estudo, haja vista que é o momento em que o pesquisador está em contato com a realidade pesquisada, e com os sujeitos da pesquisa. Concordamos com Ramos e Pêssoa (2017, p. 448) de que “A pesquisa de campo é a parte de conhecermos a realidade pesquisada, é o momento de nos inserimos no universo da pesquisa, de viver e ter a experiência da prática para compreendermos o vivido, tendo, assim, o contato entre o empírico e a prática”.

No decorrer das pesquisas de campo, as entrevistas foram responsáveis pelo acesso aos relatos das vítimas, que segundo Poupart (2008, p. 215) é transmitida através “[...] do jogo e das questões das interações sociais que a relação de entrevista necessariamente implica, assim como do jogo complexo das múltiplas interpretações produzidas pelos discursos”. Nas pesquisas qualitativas, as entrevistas têm condição de dar visibilidade e voz aos grupos sociais e aos agentes que participam das distintas realidades no espaço geográfico. Ademais, corroboramos Ramos e Pêssoa (2017, p. 453) que afirmam que devido à “[...] sua natureza interativa a entrevista permite tratar de temas complexos que dificilmente poderiam ser investigados adequadamente através de questionários, explorando-os em profundidade”.

Concomitante às entrevistas, foi solicitado às entrevistadas a produção de mapas mentais, no intuito de analisar os sentimentos não verbalizados pelas vítimas, bem como características subjetivas presentes em cada mapa. Tuan (1980, p.15) caracteriza os mapas mentais como “[...] uma linguagem abstrata de sinais e símbolos, é privativa da espécie humana. Com ela, os seres humanos construíram mundos mentais para se relacionarem entre si e com a realidade externa”. Para Buzan (2009, p. 6), “a criação de um mapa mental é um método inovador que permite explorar os infinitos recursos do cérebro, tomar decisões apropriadas e entender nossos sentimentos”.

Os mapas mentais são possibilitados através das lembranças que as pessoas possuem do mundo vivido, do lugar cotidianamente habitado e construído, dos acontecimentos particulares, num momento passado e presente. Corroboramos Salete Kozel (2018, p. 29) de que “os mapas assim constituem-se a partir da percepção e da representação de imagens mentais, o que vem despertando para a necessidade de se compreenderem os complexos aspectos socioculturais do mundo atual”. Podemos considerar ser a técnica a materialização das memórias, que, na ciência geográfica, tem um papel essencial na representação dos conflitos e problemas resultantes das relações sociais, uma vez que o cotidiano se expressa em lugares onde a vida acontece.

Caracterizando abuso sexual

O abuso sexual ou violência sexual ocorre quando o corpo do outro é entendido como objeto de satisfação subjetivo, e, portanto, as vontades do abusador sobrepõem à permissão daquele/a que terá seu corpo violado. No tocante ao abuso sexual contra crianças e adolescentes, recorremos a Lyra (2015), para quem o abuso sexual é caracterizado por toques e carícias impróprias, estupro, contato oral-genital, bem como por comportamentos abusivos através de estímulos verbais, fotografias, filmagens pornográficas no qual a criança ou adolescente seja exposta a prática das imagens ou filmagens ou ainda, ao serem submetidas a assistir as cenas pornôs, onde há exposição de corpos e atividades sexuais. De acordo com Azevedo e Guerra (2004, p. 8), o abuso sexual tem como finalidade “[...] o prazer do(s) adulto(s), responsável(is) único(s) pelas práticas sexuais abusivas ainda que em alguns casos possa ocorrer estimulação sexual da criança e/ou adolescente vítima”, conforme figura 01.

O Brasil apresenta altas taxas de crimes de abuso sexual contra crianças e adolescentes, em sua maioria, constituído por meninas que se tornam objetos de desejo, tendo a infância e a juventude coisificadas, para atender as lascívias dos abusadores, que na maioria absoluta dos casos, é composto pelo gênero masculino, e do vínculo afetivo da vítima: pai, padrasto, avô e/ou irmão. É necessário considerar que a violência sexual, quando praticada no seio familiar, é classificada como abuso sexual intrafamiliar ou abuso sexual incestuoso, ademais é comum haver dúvidas e uso inadequado dos termos para se referir ao crime, uma vez que a violência sexual não pode ser considerada e reduzida ao “incesto”. O incesto é a relação afetiva entre pessoas que possuem consanguinidade, onde ambos os envolvidos aceitaram a relação, excluindo qualquer tipo de violência ou violação de direitos. Corroboramos Patrícia Calmon Rangel (2001, p. 19) “o incesto é qualquer tipo de contato sexual entre parentes do mesmo sangue e afins, desde que sejam adultos e a relação não seja atravessada pelo poder. Neste caso, eles apenas infringem uma norma social”.


FIGURA 01
Fenômeno da Violência Sexual ou Abuso Sexual
Fonte: Elaborado pela autora a partir de Azevedo e Guerra (1989, p. 43).

O abuso sexual incestuoso é evidenciado quando vítima e abusador possuem laços sanguíneos, porém, um dos envolvidos nega a vontade ou intenção de uma relação mais próxima e/ou íntima. De igual maneira, é também classificado quando uma das vítimas não possui idade ou condição psicológica que lhe assegure a responsabilidade pelos seus atos, podendo ser induzida à prática dos atos pelo agressor, ou ainda, não possua condições de identificar as ações. Neste sentido, corroboramos Lévi-Strauss (2004) de que o incesto é algo social praticado há muitos anos, e que, na contemporaneidade, ainda é visto como proibido, apesar de não haver violações na ocorrência do fenômeno, senão a quebra de normas e padrões estabelecidos pelas sociedades, sobretudo, para manter a continuidade da vida humana. A figura 02 caracteriza e diferencia o incesto da Violência Sexual Incestuosa, de acordo com as pesquisas realizadas ao longo do estudo.


FIGURA 02
Incesto X Violência Sexual Incestuosa
Fonte: Elaborado pela autora a partir da pesquisa.

Concordamos com Silva (2003) de que, no território brasileiro, poucos pesquisadores têm como fenômeno de estudo os problemas resultantes do contato social. Dezesseis anos após o apontamento supracitado e com o agravamento dos problemas sociais, ainda há poucas produções voltadas à caracterização e análise do espaço geográfico, levando em consideração as distintas formações e relações sociais, bem como os grupos ainda invizibilizados.

O "continuum" da violência nos casos de abuso sexual

O termo continuum é usado para designar atos que antecedem o desfecho de determinado fenômeno ou problema. No caso em estudo, foi selecionado para demonstrar os ciclos de violências que as vítimas de abuso sexual são submetidas, que vai além da violação dos corpos, composto e concomitante (na maioria dos casos) por violências verbais, físicas e psicológicas, e utilizadas pelos agressores na tentativa de silenciar as vítimas, impedindo o relato a outras pessoas, e consequentemente, o conhecimento da prática criminosa.

É necessário considerar que a violência sexual contra crianças e adolescentes, no território brasileiro, tem o local de habitação como o lugar do crime, e através dos atos de violência, o agressor demonstra o poder e domínio sobre o território que compartilha em condições dispares com sua/as vítima/as, fazendo deste um lugar de distintos sentimentos, que se intercalam em um quadro somatório. Através da realização da pesquisa, evidenciamos, em todos os casos, a existência da violência sexual atrelada a outros tipos de violências: físicas, psicológicas e verbais. Os relatos de Gratidão confirmam o exposto: “Todas as vezes que neguei, ele me agredia fisicamente (batendo em meu rosto) e psicologicamente (me ameaçando)”. Além disso, a entrevistada afirma que a ausência da mãe no local de habitação era um fator que conduzia o abusador à prática de outras violências que iam além da violência sexual, claramente retratado na figura 3.


FIGURA 03
Mapa mental - Tristeza e as lembranças acerca do lugar dos abusos
Fonte: Mapa mental elaborado pela entrevistada, durante a pesquisa – 2019.

A segunda entrevistada, que se autodenominou Perseverança, além de ser abusada sexualmente pelo avô e acusada por ele pelos abusos sofridos, expõe que: “na segunda vez que ele mexeu comigo, ele me falou coisas bem feias. Coisas que não dá para esquecer. Ele dizia que fazia aquilo por que eu deixava, porque eu era safada”. O relato da entrevistada evidencia a agressão verbal concomitante ao abuso sexual, entretanto, é importante levar em consideração que as violações ou agressões físicas, verbais e psicológicas podem ocorrer após o fim dos atos de abusos sexuais, ademais, funcionam como elementos punitivos, quando a vítima não permite a efetivação dos abusos sexuais, e neste contexto Rosa, abusada pelo irmão, relata que:

Quando eu passei a entender o abuso sexual, acho que ele também percebeu talvez pela idade né?! Ele judiava muito de mim, me batia, era ruim. Eu observava minhas amigas e a relação delas com seus irmãos e queria que fosse igual. Mas infelizmente, não era (ROSA).

De igual forma, Tristeza (abusada sexualmente pelo padrasto) tenta interpretar as situações vivenciadas ao longo de anos de abusos e convivência com o abusador. Os sentimentos da entrevistada se confundem com suas concepções contemporâneas, assim a entrevistada relata: “Apesar de que eu não queria aquilo e ele me ameaçava, então se isso puder ser considerada uma agressão (TRISTEZA)”. As dúvidas de Tristeza acerca das agressões não acompanham as certezas de que: a maior parte dos casos de abuso sexual cometidos no contexto intrafamiliar ficam impunes, pelo silenciamento da (as) vítima (as) ou pelo fato de que poucos desses crimes chegam ao conhecimento da justiça. A partir de leituras em acervos bibliográficos, bem como, através das pesquisas de campo com profissionais (psicólogas) e com as vítimas, afirmamos que nenhuma vítima de abuso sexual está livre das agressões psicológicas, físicas e verbais. Geralmente a prática criminosa vem acompanhada de um continuum de violências, utilizadas como estratégias para manter a vítima em silêncio. Nesse sentido, é comum as vítimas de abusos sexuais serem submetidas a agressões físicas, verbais e psicológicas, que confirmamos na pesquisa e que podem ser observados nos relatos das entrevistadas. Os atos de violações geram problemas por longos anos, conforme tabela 1.


TABELA 01
Tipos de Abusos Praticados Contra Meninas e Consequências Para o Desenvolvimento do “Ser” ao Longo das Fases de Desenvolvimento Subjetivo
Fonte: Elaborado pela autora a partir das pesquisas de campo realizadas com as vítimas.

A violação dos corpos vem acompanhada por todas as demais agressões mencionadas, o que conduz ao desenvolvimento de problemas resultantes do processo, ao longo da formação subjetiva de cada vítima, conforme descrito na tabela acima.

De lar a lugar do crime

A principal finalidade de uma casa é oferecer segurança e abrigo para os indivíduos que nela habitam, e isso conduziu alguns autores a pensar e descrever o local de moradia, observando os sentimentos envoltos ao lugar, a exemplo do arquiteto, pedagogo e filósofo alemão Otto Friedrich Bollnow, em sua obra O homem e o Espaço (2008), que nos conduz a uma análise humanística e poética, ao observar as formas e elementos da casa e a relação do sujeito com o mundo interno e externo a mesma. Para Bachelard (1993, p. 26), “[...] a casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem”. É preciso considerar que as experiências, vividas no interior da casa, terão espaço e grande importância na formação subjetiva de cada indivíduo, que mesmo em outro lugar de habitação, se fará presente através das lembranças, retidas em suas memórias. De acordo com Bachelard (1993, p. 26), “[...] as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós”, assim se o local habitado não for capaz de despertar boas recordações, e vier acompanhado de medos, angústias e outras sensações topofóbicas, como diria o geógrafo Yi-Fu Tuan (1980), pode configurar a existência de problemas, de violações, de ausências, e das condições desiguais de poder entre os indivíduos.

No decorrer da pesquisa, concluímos que a casa é considerada de várias maneiras, a depender do indivíduo, das relações estabelecidas e das experiências resultantes no lugar. De igual forma, afirmamos que, no Brasil, a casa é o lugar onde os crimes de abuso sexual são cometidos contra crianças e adolescentes, bem como o lugar onde os abusadores consideram ser um local seguro para a prática dos atos de violências, uma vez que as vítimas são submetidas a outras violações, concomitante ao abuso sexual. Importante compartilhar a importância da fenomenologia, que nos permitiu adentrar nas vivências íntimas das vítimas (participantes da pesquisa), através de suas recordações, no intuito de entender o que e como o lugar habitado é considerado, uma vez que constitui parte de suas experiências de vida, fruto das relações sociais estabelecidas. Corroboramos Tuan (1971, p. 188) no que concerne à fenomenologia, no qual permite “[..] explore the experience that individuals undergo under certain conditions”[3].

Levando em consideração o exposto, é necessário analisar as percepções das entrevistadas sobre o lugar dos abusos sexuais e o lugar de habitação. O relato de Gratidão é um dos mais expressivos, e demonstra seus sentimentos de medo, repulsa e vulnerabilidade, bem como apresenta a existência lugares de proteção: a escola e a casa dos amigos (as): “[...] Como os abusos ocorriam em casa, todos os dias, na escola quando terminava as aulas e eu tinha que voltar para casa eu não queria, queria ficar na escola, preferia ir para a casa de algum amigo (a), menos ir para casa onde eu morava, com medo do meu padrasto (GRATIDÃO). Recorremos às considerações de Tuan (2005, p. 34) “[...] para se tornar adulta a criança deve abandonar a segurança da casa e dos pais pelo desconcertante e ameaçador mundo lá de fora. A tentação de regressar a casa deve ser resistida”. O “mundo lá fora” foi, para essa vítima, fôlego que ela necessitava para continuar a sobreviver e ao mesmo tempo refúgio, quando o perigo morava dentro do próprio lar.

As experiências sensoriais e perceptivas de Gratidão demonstram que, além do sofrimento resultante dos abusos sexuais, a casa ou local de habitação não era apenas um lugar inóspito, mas influenciava diretamente em sua autoestima. Sobre o lugar habitado, a entrevistada pontua: “[...] naquele ambiente em que eu morava, me sentia totalmente desprotegida. Sentia-me feia, me sentia insegura, tinha raiva, sentia muito medo, medo, medo, medo. Medo de contar para alguém, medo da reação das pessoas” (GRATIDÃO). Da mesma forma que Gratidão, Rosa descreve seu lugar vivido e o descreve como sendo um território habitado por pessoas “estranhas”, compostas por uma mesma família.

Na casa onde os abusos ocorreram vivi pouco tempo, mas em outra casa onde passei minha adolescência convivendo com ele, e onde meus pais moram, eu evito estar. Ali ele não fez nada comigo, mas também nunca o tive como um irmão, como deveria ser, era como se fosse um estranho convivendo no mesmo espaço que eu. Sentia-me insegura, com vergonha e desprotegida (ROSA).

Por sua vez, Perseverança nos conduz a um diferente viés de análise acerca do local habitado, ao compreendermos a partir de sua entrevista, que os sentimentos de aversão ao lugar acompanhavam o agressor, e em qualquer lugar que ele estivesse à vítima tinha a percepção de estar desprotegida, cultivando sentimentos de raiva e nojo. O relato de Perseverança nos dirige às considerações de Merleau–Ponty (2010, p. 151) sobre os estímulos humanos, no qual o autor afirma “[...] los estímulos que afectan y determinan causalmente un organismo son justamente aquellos que las estructuras orgánicas pueden reconocer y a los que se les puede atribuir algún sentido”[4]. Assim, a entrevista registra:

A segunda vez que aconteceu eu já tinha 14 anos me defendi e não consegui mais falar com ele e nem frequentar os mesmos ambientes que ele. Nas festas de família, eu sempre estava doente ou sempre tinha alguma coisa muito importante para fazer e não podia ir. Não suportava estar no mesmo lugar que ele, era impossível de tanta raiva e nojo (PERSEVERANÇA).

As características do lugar habitado, no qual os abusos ocorriam, são também elementos que Tristeza (uma das entrevistadas) alega não reproduzir em seu lugar de habitação, na contemporaneidade, que consequentemente a remeteria a um passado de medo e lembranças ruins. Tristeza pontua “Eles (mãe e padrasto) ainda vivem na mesma casa e faço de tudo para não ir até lá, principalmente quando sei que ele está lá. Só tenho lembranças ruins de uma infância de muito medo. Tudo que tem naquela casa (cor, modelo) eu não quero ter na minha” (TRISTEZA). Neste sentido, a casa jamais foi e não será para Tristeza um lugar especial, como descrito por Tuan (1971, p. 189) “[…] special place to which one withdraws and from which one ventures forth”[5].

As mulheres que participaram das pesquisas foram observadas como objetos de satisfação sexual e, consequentemente, tiveram sua infância e juventude coisificadas, por indivíduos que compartilhavam a mesma habitação e possuíam vínculos afetivos. Utilizamo-nos das considerações de Tuan (2005, p. 205) no qual o autor considera que “Grande parte do medo humano provém de outras pessoas que sustentam o nosso mundo, mas também que o ameaçam. As forças naturais destrutivas e as doenças usam máscaras humanas”. Ademais, a pesquisa evidencia que a casa possui distintas considerações por parte das vítimas e pelos abusadores, haja vista que o lugar de insegurança para as vítimas é o lugar onde os abusadores encontram condições favoráveis para a prática do crime, demonstrando a existência de concepções distintas acerca do lugar habitado. Recorremos a Bachelard (1993 p. 24), que afirma ser a casa “[...] o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo”.

Além das entrevistas onde as mulheres vítimas de abuso sexual relataram o ambiente vivido e suas subjetividades no lugar habitado, propomos a elaboração de mapas mentais, na tentativa de identificar sentimentos não verbalizados, com a ajuda da fenomenologia, da psicologia e da geografia de gênero. Entre as quatro mulheres entrevistadas, duas conseguiram retratar as violações sofridas em suas casas. A primeira análise é a do mapa mental (figura 4) produzido por Tristeza; a caracterização do lugar aponta importantes elementos subjetivos interpretados com o auxílio de uma psicóloga, denominada no estudo como Psicóloga 02.


FIGURA 04
Mapa mental - Tristeza e as lembranças acerca do lugar dos abusos
Fonte: Mapa mental elaborado pela entrevistada, durante a pesquisa – 2019.

O mapa mental de Gratidão (figura 5) revela uma trama de sentimentos exprimidos através dos traços e da ausência de cores em seus desenhos. Segundo a Psicóloga 02, a porta da casa, com forma arredonda, indica a vulnerabilidade do lar, para a vítima, típica de pessoas que, em algum momento da vida, enfrentaram situações de violência. Além disso, o telhado da casa mostra o enfrentamento de problemas cognitivos pela entrevistada, ainda na contemporaneidade. Ainda que a entrevistada tenha sido assistida, com materiais para elaboração dos mapas mentais, optou por desenhos em branco, e quando questionada sobre o porquê de optar pelo uso de caneta estereográfica, afirmou “na minha infância, muito pobre, não tínhamos os materiais de escola, não tínhamos lápis de cor. Eu me acostumei a desenhar assim, mas também eu nunca gostei de pintar desenhos, aquele colorido, não representava a minha vida” (GRATIDÃO).


FIGURA 05
Mapa Gratidão e o Lugar dos abusos
Fonte: Mapa mental elaborado pela entrevistada, durante a pesquisa – 2019.

Importante dizer que os relatos e os mapas mentais (re)afirmam que o lugar onde o abusador encontra as condições favoráveis para a prática do crime, este mesmo ambiente é para a vítima um lugar de medo, desprazer, e sofrimentos, tanto que a linguagem verbal complementa e é complementada pelas produções mentais. Diante disso, a partir dos relatos das vítimas sobre o crime e de suas concepções acerca dos abusadores e o lugar onde as violações foram metidas, e com a ajuda de pesquisas contidas em documentos bibliográficos, foi elaborado o quadro 1, que sintetiza o lar na condição de vítima e na condição de abusador.


QUADRO 01
Lar para Vítima e Agressor
Fonte: Elaborado pela autora, a partir dos relatos obtidos na pesquisa de campo e arquivos bibliográficos.

Acreditamos que o uso das técnicas de entrevista, produção dos mapas mentais aliados às pesquisas em documentos bibliográficos e da análise da profissional da psicologia, nos conduziu adentrar nas subjetividades e na privacidade do lar, onde o poder, a violência, o patriarcado e o gênero, fazem vítimas e abusadores. Neste sentido, em meio a vários questionamentos, um é de suma importância: Se o lar é um lugar de privacidade, onde indivíduos da família e/ou pessoas do vinculo afetivo da vítima compartilham, quem são os abusadores?

Vínculo afetivo entre as vítimas e os abusadores

Há algum tempo, vários estudos das ciências humanas afirmam que as relações sociais são responsáveis pelo surgimento e transformação dos fenômenos pesquisados, sobretudo, os problemas que surgem no contexto intrafamiliar. É certo considerar que o território social, onde o convívio humano acontece, é também o território dos conflitos, do poder, da violência, da submissão, das distintas formas de interesses pessoais, e da mulher na condição de vítima. Neste sentido, corroboramos com Saffioti (1994) de que o gênero feminino está presente na maior parte das estatísticas como vítimas de crimes sexuais, psicológicos e físicos, perpetrados por pessoas de sua proximidade ou com algum grau de parentesco e/ou afetividade.

No tocante aos crimes de abuso sexual, estudos realizados por Heleieth Saffioti, no ano de 1992, confirmou que o pai era o agente da violação praticado contra as próprias filhas (os). Infelizmente, na contemporaneidade brasileira, a figura paterna integra as estatísticas oficiais na posição de abusador, concomitante ao avô, padrasto e irmão. Nota-se que os indivíduos usam o poder e a autoridade para exercer controle sobre os indivíduos e seus corpos, no seio familiar, aliando doses exacerbadas de violências, como estratégias visando ao silenciamento das vítimas. Pesquisas realizadas no CREAS e em um Orfanato, localizados em um município de Rondônia, reafirmam a relação de grande proximidade entre vítimas e abusadores, o que contribui para que os casos ocorram em caráter de repetição, sendo que, em alguns casos, há a participação das mães, objetivando manter o abuso em sigilo, dentro da casa, ou ainda, posterior ao conhecimento do crime pelas autoridades, coagindo a vítima para que negue o crime.

A primeira análise parental na pesquisa foi realizada através dos relatos de Gratidão, abusada por 03 diferentes agressores: padrasto, irmão e amigo da família. A entrevista de Gratidão apresenta características diferentes das demais mulheres participantes da pesquisa, haja vista que, além de ser abusada por diferentes agressores, demonstra uma possível repetição de condutas observadas, levando em consideração as ações praticadas pelo irmão, e o convívio de ambos com o padrasto. Neste sentido, Gratidão nos relata,

O primeiro abuso sexual que sofri foi pelo meu padrasto, eu tinha 05 anos e isso durou até os 10 anos. Todos os abusos sexuais foram anais e ocorreram dentro da própria casa onde morávamos no sitio. À noite, ele ia até meu quarto onde eu dormia com mais 05 irmãos, me pegava no colo e me levava até a área da casa, ou quintal, e lá cometia os atos. Ele me ameaçava dizendo que se eu contasse iria me matar e matar minha mãe, essas coisas que é do feitio de todos. Aos 09 anos fui também abusada pelo meu irmão. Ele me chamava e afastado de casa passava as mãos em minhas partes intimas. Fui também abusada pelo dono do sitio onde morava, eu ia até a casa dele buscar verdura e ele me dava bala e passava a mão em meus seios (GRATIDÃO).

Rosa, por sua vez, relata os abusos perpetrados pelo irmão concomitante as violações físicas e agressões verbais, e os diversos sentimentos e lembranças resultantes do processo. Para Perseverança, os abusos sofridos pelo avô deram fim aos sentimentos que ela possuía em relação ao mesmo, bem como foi elemento que conduziu à quebra de confiança e de qualquer consideração afetiva. Corroboramos Minayo (2001) que os abusos sexuais negam o direito à criança e a/ao adolescente de desfrutar do desenvolvimento saudável, resultando em problemas anos após o crime. Neste sentido, Rosa e Perseverança relatam que,

Fui abusada pelo meu irmão quando tinha 04 ou 05 de idade. Não lembro com precisão, mas lembro do lugar onde a gente vivia, e onde ocorreu o abuso pela primeira vez. Tínhamos uma infância pobre e, quando mais velha, aos 07 e 08 anos dividimos o mesmo quarto, lógico que isto não justifica o fato dele ter feito essas coisas, mas facilitou sim. Isso me marca muito até hoje, porque todo o dia na hora de dormir eu me sentia mal, mas não sei te dizer hoje, como. Lembro-me dos programas de televisão que assistíamos antes de ir deitar, parecia ser uma rotina diária, eu tinha muito medo de ficar sozinha com ele (ROSA).

Ele era meu avô, pai do meu pai. Depois do ocorrido não o considerava nada. Na segunda vez então para mim era como se ele estivesse morto. Quando ele morreu não senti nada. Nem alivio, pois para mim ele já havia morrido faz muito tempo (PERSEVERANÇA)

A quebra de confiança das vítimas em relação aos agressores resulta em parte dos problemas que elas carregam para as novas etapas de suas vidas. Ao analisar os relatos de Tristeza, Rosa e Perseverança, compreendemos que anterior ao crime, os agressores possuíam lugar de importância e confiança na vida das vítimas. Após os abusos, tais sentimentos transformaram-se em repulsa e revolta.

Até os nove anos de idade, eu achava que ele era meu pai, mas eu sabia que ele não era o meu pai biológico, que nunca conheci. Chamava-o de tio. Depois dos nove anos de idade, quando ele fez pela segunda vez, eu comecei a chamar ele pelo nome, parece que aquele sentimento morreu. Quando eu tinha 12 anos, eu odiava ele, e odeio até hoje (TRISTEZA).

Eu não entendia bem o que era aquilo, era muito nova, então para mim ele era um irmão comum, como os outros. Mas depois que passei a entender que aquilo que ele fazia comigo era uma forma de abuso sexual, eu passei a ter muito medo dele e raiva. Mas de maneira geral, eu não sei nem te dizer que sentimentos eram maiores, porque são tantos (ROSA).

Medo, não conseguia olhar para ele me sentia assustada a todo o momento, olhando para ver se tinha mais alguém no mesmo ambiente que eu não ficava sozinha com ele de jeito nenhum (PERSERVERANÇA).

Entretanto, Gratidão demonstra não conseguir estabelecer nenhum laço afetivo em relação ao padrasto ao longo de sua vida. A entrevistada afirma que “Antes ele não tinha nenhum lugar em minha vida e nem depois. Uma pessoa a qual nunca teve nenhum sentido para mim. Depois do ocorrido, só sentimentos negativos. Eu tinha raiva, medo e vontade matá-lo” (GRATIDÃO). O mapa mental construído por Gratidão (figura 06) revela que, com a ausência do padrasto, a casa tinha fartura, e todos se relacionavam melhor uns com os outros.


FIGURA 06
Mapa – Gratidão e sua família na ausência do abusador
Fonte: Mapa mental elaborado pela entrevistada, durante a pesquisa – 2019.

O Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, no tocante à violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil entre os anos de 2011 e 2017, reafirma os dados evidenciados em consultas bibliográficas e nas pesquisas de campo: o gênero feminino a maior porcentagem das vítimas, a infância e a adolescência constitui a faixa etária de maior vulnerabilidade das vítimas, o agressor é do gênero masculino e que, na grande maioria dos casos, tem grau de parentesco e/ou afetividade, e divide o lugar de habitação com a vítima, conforme quadro 02.


QUADRO 02
Porcentagem de Abusos Sexuais Contra Crianças e Adolescentes do Gênero Feminino no Brasil e a Relação Entre a Vítima e o Agressor
Fonte: Elaborado pela autora, a partir de dados obtidos de Brasil (2018) e das pesquisas de campo.

As consequências resultantes dos abusos sexuais ao longo da vida das vítimas são inúmeras e variam de acordo com a idade, intensidade dos abusos, tempo submetida às práticas de violações, entre outros fatores. No estudo, pesquisas de campo em um Orfanato que corriqueiramente é também denominado “abrigo de menores”, coletamos algumas informações com a psicóloga 01 que nos relatou ser a prática da automutilação[6], uma das principais formas encontradas pelas vítimas para extravasar a dor resultante dos sentimentos, das lembranças e da revolta.

As adolescentes aqui a maioria todas já se cortaram, teve casos que eu tive que encaminhar para o capes, para ser atendida por um psiquiatra e tomar medicação. Isso deixa marcas, por mais que a pessoa tente seguir adiante, quando bate aquela tristeza, aquela coisa, às vezes a forma que elas encontram é de se machucar, porque eles falam que machucando a pele, o corpo, é como se extravasasse um pouco da dor, que é uma dor interna (PSICÓLOGA 01).

Entretanto, através da profissional, obtivemos a informação de que as violações sofridas podem gerar ações contra outras pessoas, num ciclo de repetições, ou seja, a criança abusada pode se transformar em um abusador (A) sexual, posteriormente. Neste sentido, Lammoglia (2005, p. 2) afirma que “Cualquier nino que viva una infancia violenta puede convertirse en un individuo agresivo y, en la edad adulto, formor a su vez una familia conflictiva, continuando un cicio que se repite generacion tras generacion”[7]. A violação dos corpos resulta em consequências físicas e psicológicas, conforme o quadro 03.


QUADRO 03
Consequências Físicas e Psicológicas de Crianças e Adolescentes Vítimas De Abuso Sexual
Fonte:Cordeiro (2006, p. 5). Adaptado para quadro pela autora.

A entrevista com a psicóloga 01 e as consultas em materiais bibliográficos foram importantes para o entendimento das consequências resultantes do fenômeno, entretanto consideramos vitais as entrevistas de Tristeza e Gratidão sobre as marcas da violência sexual em suas vidas. Quando questionadas se haviam consequências em suas vidas resultantes dos abusos, Tristeza relatou “Muitas! Muitas. Além de me esconder dentro de roupas largas, quando adolescente eu ficava sempre muito sozinha, tinha poucos amigos e não confiava em muitas pessoas” (TRISTEZA). Gratidão, por sua vez, disse que “Eu tinha medo do escuro medo de ficar sozinha em casa, mesmo durante o dia, não confiava nas pessoas, não acreditava no amor de mãe, entre tantas outras coisas” (GRATIDÃO). A confiança é condição essencial para que as pessoas estabeleçam relações sólidas ao longo de suas vidas, e consequentemente, é um dos principais sentimentos não cultuados na convivência entre vítimas e abusadores.

Os psicólogos Kendall-Tackett, Williams e Finkelhor, no ano de 1993, apresentaram os efeitos dos abusos sexuais em crianças e adolescentes (quadro 4), após uma revisão de 45 estudos sobre o tema. O trabalho desenvolvido pelos profissionais é referência há vinte e seis anos, quando se procuram analisar os efeitos resultantes da violação dos corpos. De acordo Kendall-Tackett, Williams e Finkelhor (1993) Medos, estresse pós-traumático, desordem, problemas de comportamento, comportamentos sexualizados e baixa autoestima são os principais problemas diagnosticados, entretanto que não se restringe a apenas um grupo estudado, tampouco, configura que a vítima vai apresentar somente um sintoma.


QUADRO 04
Efeitos do Abuso sexual de acordo com a fase e/ou idade

Importante considerar que os traumas ou sintomas resultantes dos abusos sexuais podem variar em cada criança e/ou adolescente, e que podem funcionar num processo de somatização de vários sentimentos, no qual os sintomas não são únicos, sobretudo, se houver a participação materna nos atos de violações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constamos que a coisificação da infância e adolescência, através dos atos de abuso sexual, estimula o aparecimento de problemas durante a submissão ao “Continuum” de violências, que acompanha a violação dos direitos sexuais, como em momentos ou anos posteriores aos atos de violências, privando as vítimas do desenvolvimento subjetivo saudável, e as relações interpessoais estabelecidas ao longo da vida. A casa deixa de ser um ambiente de segurança, quando a vítima passa a ser entendida como objeto de satisfação sexual do algoz, e passa a ser o lugar do medo e aversão. Em contrapartida, para o abusador, composto pelo pai, irmão, avo, tio, ou pessoas de confiança e que tem acesso à restrição do lar, encontra na casa as condições ideais para as práticas de violações.

Além dos dados coletados e das discussões, com o auxílio dos aportes bibliográficos, edificamos a pesquisa na certeza da necessidade de estudos e debates acerca do fenômeno, haja vista que a geografia humana não anula qualquer problema ou fenômeno existente no espaço geográfico, mesmo porque a violência sexual não se restringe a uma única porção territorial do hemisfério terrestre, e, portanto, necessitando do olhar do pesquisador (a), da geografia e de todos que compartilham as distintas sociedades, objetivando dar fim às condutas que anulam e tipificam o gênero feminino a situações desumanas e de subserviência.

Material suplementar
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
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BOLLNOW, Otto Friedrich. O homem e o espaço. Curitiba. Editora da UFPR. 2008.
BUZAN, Tony. Mapas Mentais. Tradução de Paulo Polzonoff Jr. Rio de Janeiro: Sextante, 2009.
CORDEIRO, Flávia de Araújo. Aprendendo a prevenir: orientações para o combate ao abuso sexual contra crianças e adolescentes - Brasília: Promotoria de Justiça de Defesa da Infância e da Juventude, 2006.
KENDALL-TACKETT, Kathleen A; WILLIAMS, Linda Meyer; FINKELHOR, David. Impact of Sexual Abuse on Children: A Review and Synthesis of Recent Empirical Studies. Psychological Bulletin, Vol. 113, N. 1, p. 164-180, 1993.
KOZEL, Salete. Mapas Mentais: Dialogismo E Representações. Curitiba: APPRIS, 2018, 271p.
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas elementares do parentesco; tradução de Mariano Ferreira. Petrópolis, Vozes, 1982. 518p
LYRA, Ana Paula de Aquino Pereira. Geografia E Sexualidade: O Espaço E Lugar De Meninas Amazônidas No Contexto Da Violência Sexual Intrafamiliar. Porto Velho: Dissertação de Mestrado – Universidade Federal de Rondônia, 2015.
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RAMOS, Hugo Roberto Duarte; PÊSSOA, Vera Lúcia Salazar. Encontros e desencontros das informações: o caminho metodológico da pesquisa. In: Pesquisa qualitativa: aplicações em Geografia. (Org.) Vera Lúcia Salazar Pessôa, Aldomar Arnaldo Rückert Julio Cesar de Lima Ramires,– Porto Alegre: Imprensa Livre, 2017.
RANGEL, Patrícia Calmon. Abuso sexual intrafamiliar recorrente. Curitiba: Editora Juruá, 2001
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Violência de gênero no Brasil atual. Estudos Feministas, ano 2, 444, 2° semestre 94, p. 443- 461, 1994.
SILVA, Joseli Maria. Um ensaio sobre as potencialidades do uso do conceito de gênero na análise geográfica. Revista de historia regional. Ponta Grossa, v. 8, n. 1, p. 31-45, 2003.
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TUAN, Yi-Fu. Paisagem do Medo. Traduzido por: Lívia de Oliveira. São Paulo: UNESP, 2005.
LAMMOGLIA, Ernesto. La violencia esta en casa: Agresion domestica. Ed. grlJalbo, México, 2005. 138 p.
Notas
Notas
[3] [...] explorar a experiências porque passam os indivíduos sob certas condições.
[4] [...] Os estímulos que afetam e determinam causalmente um organismo são precisamente aqueles que as estruturas orgânicas podem reconhecer e aos quais podem ser atribuídos algum sentido.
[5] [...] aquele lugar especial para onde a pessoa se retira e de onde se aventura.
[6] São ações que as pessoas praticam contra si mesmas, de forma superficial, que causa dor, entretanto, sem a intenção de cometer suicídio.
[7] Qualquer criança que vive uma infância violenta pode se tornar um indivíduo agressivo e, na idade adulta, tornar-se uma família conflituosa, dando continuidade a um ciclo que se repete geração após geração.
[8] Pré-escolares: ansiedade, pesadelos, PTSD geral, internalização, externalização e comportamento sexual inadequado.

Idade escolar: medo, neurose e estado mental, doença, agressão, pesadelos, problemas escolares, hiperatividade e comportamento regressivo.

Adolescentes: depressão; comportamentos retraídos, suicidas ou autolesivos; Queixas somáticas; atos ilegais; e abuso de substâncias.

Sintomas que apareceram para mais de um grupo etário: pesadelos, depressão, comportamento retraído, doença mental neurótica, agressão e comportamento regressivo.

Declaração de interesses
[1] Doutoranda em Geografia pela Fundação Universidade Federal de Rondônia-UNIR, sob a linha de pesquisa: Território e Sociedade na Pan-Amazônia - TSP. Mestra em Geografia pela Fundação Universidade Federal de Rondônia-UNIR. Membra do Grupo de Pesquisa em Geografia: Mulher e Relações Sociais de Gênero - Gepgênero; Membra do Grupo Experimental de Pesquisa: Diálogo Hídrico Multidisciplinar.

FIGURA 01
Fenômeno da Violência Sexual ou Abuso Sexual
Fonte: Elaborado pela autora a partir de Azevedo e Guerra (1989, p. 43).

FIGURA 02
Incesto X Violência Sexual Incestuosa
Fonte: Elaborado pela autora a partir da pesquisa.

FIGURA 03
Mapa mental - Tristeza e as lembranças acerca do lugar dos abusos
Fonte: Mapa mental elaborado pela entrevistada, durante a pesquisa – 2019.

TABELA 01
Tipos de Abusos Praticados Contra Meninas e Consequências Para o Desenvolvimento do “Ser” ao Longo das Fases de Desenvolvimento Subjetivo
Fonte: Elaborado pela autora a partir das pesquisas de campo realizadas com as vítimas.

FIGURA 04
Mapa mental - Tristeza e as lembranças acerca do lugar dos abusos
Fonte: Mapa mental elaborado pela entrevistada, durante a pesquisa – 2019.

FIGURA 05
Mapa Gratidão e o Lugar dos abusos
Fonte: Mapa mental elaborado pela entrevistada, durante a pesquisa – 2019.

QUADRO 01
Lar para Vítima e Agressor
Fonte: Elaborado pela autora, a partir dos relatos obtidos na pesquisa de campo e arquivos bibliográficos.

FIGURA 06
Mapa – Gratidão e sua família na ausência do abusador
Fonte: Mapa mental elaborado pela entrevistada, durante a pesquisa – 2019.

QUADRO 02
Porcentagem de Abusos Sexuais Contra Crianças e Adolescentes do Gênero Feminino no Brasil e a Relação Entre a Vítima e o Agressor
Fonte: Elaborado pela autora, a partir de dados obtidos de Brasil (2018) e das pesquisas de campo.

QUADRO 03
Consequências Físicas e Psicológicas de Crianças e Adolescentes Vítimas De Abuso Sexual
Fonte:Cordeiro (2006, p. 5). Adaptado para quadro pela autora.

QUADRO 04
Efeitos do Abuso sexual de acordo com a fase e/ou idade
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