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A questão agrária brasileira na obra de João Cabral de Melo Neto[1]
The Brazilian agrarian issue in João Cabral de Melo Neto’s work
La cuestión agraria brasileña en la obra de João Cabral de Melo Neto
Revista Presença Geográfica, vol.. 07, núm. 01, 2020
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Artigos



Recepção: 31 Março 2020

Aprovação: 18 Maio 2020

DOI: https://doi.org/10.36026/rpgeo.v7i1.5057

Resumo: No decorrer dos decênios, a conjuntura agrária brasileira experimentou diversas transformações, especialmente com a adesão ao pacote tecnológico oriundo da Revolução Verde. No entanto, algumas características permanecem no campo e na agricultura nacionais há décadas, como a elevada concentração fundiária, a degradação ambiental, a desigualdade, a violência e a exploração do trabalho agrícola. Diversos literatos, como Euclides da Cunha, João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e João Cabral de Melo Neto, descrevem em suas obras importantes aspectos associados à questão agrária, sobretudo no Nordeste brasileiro. Sob esse prisma, o objetivo do estudo foi identificar e avaliar os principais elementos da problemática agrária nacional presentes nos textos de João Cabral de Melo Neto, cuja obra denuncia vários problemas que assolam o campo brasileiro. Nesta perspectiva, foram analisadas as seguintes obras de sua autoria: O rio (1953) e Morte e vida severina (1955). A pesquisa bibliográfica foi o principal procedimento metodológico adotado, com o intuito de conjugar referências bibliográficas concernentes à agricultura e ao campo nacionais a textos científicos que discutam a obra de Melo Neto na análise dos textos escolhidos. Ademais, a análise documental também integrou a metodologia da pesquisa.

Palavras-chave: Questão agrária, João Cabral de Melo Neto, O Rio, Morte e Vida Severina, Brasil.

Abstract: Over the decades, the Brazilian agrarian scenario experienced several transformations, especially with the adherence to the technological package arising from the Green Revolution. However, some characteristics remains in the national countryside and agriculture for decades, such as high land concentration, environmental degradation, inequality, violence and exploitation of agricultural work. Several writers, such Euclides da Cunha, João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz and João Cabral de Melo Neto, describe in their texts important aspects associated to the agrarian issue, especially in the Brazilian Northeast. Under this perspective, the objective of the study was to identify and evaluate the main elements of the national agrarian issue present in the texts of João Cabral de Melo Neto, whose work denounces several problems that plague the Brazilian field. In this perspective, his works were analyzed: O rio (1953) e Morte e vida severina (1955). Bibliographic research was the main methodological procedure adopted, in order to combine bibliographic references concerning national agriculture and countryside to scientific texts that discuss the work of Melo Neto in the analysis of the chosen texts. Furthermore, document analysis also integrated the research methodology.

Keywords: Agrarian issue, João Cabral de Melo Neto, O Rio, Morte e Vida Severina, Brazil.

Resumen: A lo largo de las decadas, la conyuntura agraria brasileña há experimentado varias transformaciones, especialmente con la adhesión al paquete tecnológico derivado de la Revolución Verde. Sin embargo, algunas características permanecen en el campo y en la agricultura nacionales durante décadas, como la elevada concentración fundiaria, la degradación ambiental, la desigualdad, la violencia y la explotación del trabajo agrícola. Varios literatos, como Euclides da Cunha, João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz y João Cabral de Melo Neto, describen en sus obras importantes aspectos associados a la cuestión agraria, especialmente en el Nordeste brasileño. Desde esta perspectiva, el objetivo del estudio fue identificar y evaluar los principales elementos de la problemática agraria nacional presentes en los textos de João Cabral de Melo Neto, cuya obra denuncia varios problemas que afectan al campo brasileño. En esta perspectiva, se analizaron los seguintes trabajos de su autoria: O rio (1953) y Morte e vida severina (1955). La investigación bibliográfica fue el principal procedimiento metodológico adoptado, con propósito de conjugar referencias bibliográficas concernientes a la agricultura y al campo nacionales a textos científicos que discutan la obra de Melo Neto en el análisis de los textos elegidos. Además, el análisis documental también integró la metodología de la pesquisa.

Palabras clave: Cuestión agraria, João Cabral de Melo Neto, O Rio, Morte e Vida Severina, Brasil.

1. INTRODUÇÃO

A agricultura sempre ocupou um papel de profunda importância no cenário socioeconômico brasileiro, uma vez que é responsável por empregar inúmeras famílias, além de ser uma das principais fontes de renda do país, influenciando expressivamente o Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Entretanto, sofreu inúmeras mudanças oriundas da Modernização Agrícola, sendo integrada ao modo de produção capitalista, como uma maneira de grandes produtores e empresas lograrem lucro. Alguns dos impactos negativos desse processo são: a concentração fundiária, a pobreza, a violência no campo e a exploração do trabalhador na agricultura e no campo, temas discutidos no estudo (ANDRADE, 1979; OLIVEIRA, 2007).

Todos esses problemas são representados na literatura, por exemplo, pelo poeta João Cabral de Melo Neto, pertencente à terceira fase do Modernismo brasileiro, que em muitas de suas obras traz como temática a questão agrária nacional, principalmente vinculada à região Nordeste. Suas obras apresentam muita verossimilhança com a realidade, tanto que suas críticas relacionadas à conjuntura agrária são pertinentes até os dias atuais, sendo esse um dos motivos pelos quais sua obra foi selecionada para a pesquisa.

As obras de João Cabral de Melo Neto analisadas na pesquisa foram: O rio (1953) e Morte e vida severina (1955), as quais abordam a temática agrária de maneira crítica. O autor, por meio de sua poesia, demonstra um notável conhecimento histórico-geográfico do Nordeste, por meio da descrição das características físicas das paisagens percebidas pelas personagens, do modo de vida dos nordestinos, da dinâmica socioespacial dos engenhos e usinas açucareiros, das lavouras canavieiras, dentre outros aspectos.

A pesquisa pretende contribuir para as discussões teórico-metodológicas acerca das relações entre ciência geográfica e literatura, sobretudo no tocante à geografia agrária. Ademais, almeja-se colaborar para o emprego de obras literárias em estudos de cunho científico. Nos últimos anos, distanciando-se do paradigma newtoniano, a ciência vem se modificando e se aproximando de saberes propedêuticos, como a literatura (PRIGOGINE; STENGERS, 1991). Nesta perspectiva, os conhecimentos científicos devem valorizar a variedade qualitativa dos saberes e dialogar com outras formas de conhecimento.

Deste modo, o objetivo da pesquisa foi avaliar e compreender as principais características estruturais do cenário agrário brasileiro, e identificá-los na obra de Melo Neto, bem como discutir as obras analisadas e relacioná-las ao seu contexto histórico, social, econômico e espacial. Além disso, a pesquisa ensejou cooperar para o reconhecimento e a valorização da obra de João Cabral de Melo Neto, cujas narrativas retratam inúmeros aspectos estruturais da sociedade brasileira. Sob esse prisma, almeja-se avaliar os principais aspectos da realidade agrária nacional presentes na obra deste célebre literato, associando-os à sua escala têmporo-espacial.

2. METODOLOGIA

Dois procedimentos metodológicos – a pesquisa bibliográfica e a pesquisa ou análise documental – subsidiaram o estudo realizado. No tocante ao assunto, Triviños (1995) e Oliveira (2012) afirmam que a pesquisa bibliográfica consiste na leitura, interpretação, revisão e análise de fontes secundárias, como os textos científicos, sobre determinada temática. Deste modo, a pesquisa bibliográfica enfatizou obras vinculadas à agricultura e ao campo no Brasil, bem como a análise dos textos de João Cabral de Melo Neto.

O levantamento do referencial bibliográfico foi realizado por meio da consulta de publicações científicas nos acervos de diretórios, como o Google Acadêmico, o Scielo e o Portal de Periódicos da CAPES. Além disso, foram analisados livros e artigos de impacto e relevância nos temas abordados, como: a relação entre geografia e literatura, a obra de João Cabral e a questão agrária brasileira.

Já a análise ou pesquisa documental consiste na leitura, avaliação e interpretação de fontes primárias, isto é, que não experimentaram tratamento analítico, e de dados e/ou informações providenciados por órgãos ou entidades estatais, os quais podem ser úteis às pesquisas de caráter científico (GIL, 2002; MARCONI; LAKATOS, 2003). No estudo proposto, este procedimento metodológico contribuiu para a sistematização e a discussão de dados sobre a conjuntura agrária nacional, com ênfase em fenômenos como a violência no campo, a concentração fundiária e os arrendamentos. Publicações e relatórios divulgados por entidades como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), também foram empregados durante a pesquisa.

Os elementos espaciais (os homens, as firmas, as instituições, o meio ecológico e as infraestruturas) devem ser avaliados nas pesquisas geográficas, uma vez que abarcam características basilares de cada sociedade, dentre as quais merecem ênfase a produção, o trabalho, o meio físico, as normas e legislações, bem como as estruturas que possibilitam sua existência, como as vias, as construções, as fábricas e as lavouras. Ademais, na prática, os elementos do espaço se inter-relacionam e se mesclam. Portanto, são inseparáveis (SANTOS, 1997).

A obra de Melo Neto, apesar de seu caráter literário, aborda alguns elementos espaciais. Assim, o artigo busca expor e discutir com mais profundidade os elementos espaciais presentes, de forma sutil, em seus textos. Segundo Santos (1997), na análise da sociedade e de sua espacialidade, não há como compreender isoladamente os elementos espaciais, pois precisam ser analisados em sua totalidade. Tal fala corrobora o cunho geográfico dos textos de Melo Neto, já que o literato relaciona os elementos do espaço entre si e às características sociais, econômicas, políticas, físicas e culturais das sociedades que descreve.

3. DESENVOLVIMENTO

3.1. GEOGRAFIA E LITERATURA

Em escala mundial, os estudos que associam geografia e literatura começaram a se disseminar a partir do decênio de 1970 (BROSSEAU, 2007). Nesta mesma década, a Geografia Humanística se desenvolvia e promovia o diálogo científico entre as duas áreas do conhecimento. Associados a essa vertente da ciência geográfica, muitos estudos posteriores analisaram as paisagens culturais, os modos e estilos de vida, as experiências vividas e os espaços vividos em vários e distintos textos literários (LINS, 2003).

A literatura favorece a compreensão e a percepção das paisagens por meio de sua descrição e fornece informações para os estudos geográficos (SUZUKI, 2017). Assim, revela diversas características da condição humana e permite compreender e discutir aspectos culturais, econômicos, políticos, sociais e físicos, os quais são analisados e interpretados nos estudos associados à geografia. As pesquisas geográficas sobre textos literários aproximam ciência e arte, mostrando que a ciência deve dialogar com saberes não propedêuticos (OLANDA; ALMEIDA, 2008; PINHEIRO NETO, 2012).

Muitas vezes, a literatura busca sua inspiração no real. Desta maneira, pode-se afirmar que ela aborda o cotidiano dos grupos humanos (PINHEIRO NETO; PROENÇA, 2013). As obras literárias são importantes para a ciência geográfica porque descrevem e evidenciam como era uma sociedade em determinado espaço-tempo (OLANDA; ALMEIDA, 2008). Desta maneira, as análises geográficas sobre textos literários devem se atentar à escala espaço-temporal das obras que discutem.

Acerca do tema, Collot (2012) salienta a dimensão espacial da literatura. Sob esse prisma, afirma que a geopoética refletiria e investigaria os vínculos entre a criação literária e o espaço geográfico, por meio do estudo das formas literárias. No tocante ao assunto, o autor explica que “os geógrafos encontram na literatura a melhor ex­pressão da relação concreta, afetiva e simbólica a unir o homem aos lugares, e os escritores se mostram, do seu lado, cada vez mais atentos ao espaço em que se desenvolve a escrita” (COLLOT, 2012, p. 19).

3.2. A LITERATURA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO

João Cabral de Melo Neto foi um poeta modernista nascido em 09 de janeiro de 1920 no município de Recife. Apesar de integrar a terceira fase do Modernismo brasileiro, o poeta também manifesta características referentes ao Romance de 30, que corresponde à segunda fase modernista. Alguns dos elementos presentes na obra cabralina que fazem alusão ao Romance de 30 são: as denúncias sociais sobre os temas abordados e o emprego de uma linguagem menos rebuscada e mais próxima do cotidiano. O regionalismo também é característico dessa fase (CARVALHO, 2009), e no caso de João Cabral, isso se demonstra de maneira bastante nítida devido à expressiva representação do Nordeste em seus poemas. Segundo Melo Neto (1998, p. 86):

Em alguns, deu se o abandono puro e simples da atividade literária; em outros, a adesão ao novo conceito de literatura que se estava impondo, subjetivo e esteticista, como quer que seja: oposto a tudo o que caracterizou o formidável movimento conhecido como o “romance do nordeste”.

No trecho em evidência, o autor demonstra sua estima pelo romance regionalista, principalmente voltado ao Nordeste, corroborando a influência do Romance de 30 em sua obra. Apesar disso, as características da terceira fase do Modernismo, da qual João Cabral é um dos principais integrantes, estão muito presentes em suas obras, como a preocupação com o rigor formal, o uso da metalinguagem, as rimas e métricas, sendo esse um dos maiores atributos de Melo Neto, que inclusive o fez receber a alcunha de “poeta engenheiro”. O uso de uma linguagem mais objetiva, sem rebuscamento e lirismo também enquadra Melo Neto na Geração de 45. Ademais, o literato emprega a metalinguagem, muito empregada no poema O rio, no qual o próprio rio Capibaribe narra o trajeto desde sua nascente até o mar em que deságua e fala sobre as próprias características físicas.

Outra característica importante de sua obra é a poesia mesclada com a prosa. No tocante ao assunto, Secchin (2014) argumenta que o poeta conseguia transformar elementos de caráter mais objetivo e documental em poesia, colocando-os lado a lado, o que comprova o caráter prosaico de sua poesia.

Uma de suas obras de maior destaque é O rio (1953), que agrupa todas as características da obra cabralina de maneira muito nítida. Segundo Secchin (2014), o poema confere estética ao romance nordestino, cujo caráter era excessivamente documentário. Esse poema é narrado pelo rio Capibaribe, que descreve todo o seu trajeto, desde a nascente no sertão até o deságue no mar. O trabalho estético se dá a partir de duas figuras de linguagem principais: a metalinguagem – uma vez que a obra possui como principal tema o rio, que também é o narrador do poema – e a personificação, pois a todo momento atribui-se um caráter humano para o rio, como as memórias, os sentimentos, entre outros elementos inerentemente humanos.

Essas figuras de linguagem atribuem originalidade ao poema, característica marcante do Modernismo. Como a obra é uma narração, é possível observar sua semelhança com a prosa por meio da objetividade, uma vez que a despeito de o sujeito (o rio) possuir suma importância, o poema não se concentra apenas em seus sentimentos e emoções, mas também na paisagem e em seus elementos, os quais são minuciosamente descritos.

A humanização do rio Capibaribe não ocorre apenas pelos sentimentos humanos que ele demonstra durante a obra, mas também porque, assim como os retirantes, busca chegar ao litoral com a esperança de lograr melhorias no local de chegada. O intervalo a seguir exemplifica esse processo:



A gente das usinas foi mais um afluente a engrossar aquele rio de gente que vem de além do Jacarará. Pelo mesmo caminho que venho seguindo desde lá, vamos juntos, dois rios, cada um para seu mar.

Fonte: (MELO NETO, 2006, p. 36)

Um dos rios mencionados pelo eu-poético é o próprio rio Capibaribe, e o outro é o retirante. Ao comparar o rio com os retirantes, entende-se que o destino dos dois é o mesmo. No entanto, cada um vai para o próprio “mar”, que no caso do nordestino, é o mangue, onde trabalhará arduamente. A personificação também pode ser identificada logo no primeiro verso do poema:



Eu já nasci descendo a serra que se diz do Jacarará, entre caraibeiras de que só sei por ouvir contar (pois, também como gente, não consigo me lembrar dessas primeiras léguas de meu caminhar).

Fonte: (MELO NETO, 2006, p. 17)

A vontade que o Capibaribe tem de chegar ao litoral lhe proporciona uma característica humana, uma vez que ele não deságua no mar por mera casualidade hidrogeomorfológica, mas porque assim deseja, escolhendo ainda os locais pelos quais quer passar e mais lhe agradam.

Outra característica cabralina presente na obra é a linguagem simples e cotidiana, comum à oralidade. O autor demonstrava grande preocupação com a linguagem e a escrita, a qual, na sua visão, não deveria ser demasiadamente rebuscada, tampouco coloquial (CARVALHO, 2009). Em virtude de seu cunho social, O rio e Morte e vida severina apresentam vocabulário simples e prosaico, voltado ao grande público (SECCHIN, 2014; ARAÚJO, 2018). O intervalo em destaque corrobora a preocupação de Melo Neto com essa questão:



Vi homens de bagaço enquanto por ali discorria; vi homens de bagaço que morte úmida embebia.

Fonte: (MELO NETO, 2006, p. 33)

O uso de um vocabulário mais acessível tem como um de seus objetivos representar os nordestinos menos abastados, dando-lhes seu lugar na literatura brasileira. Segundo Borsato (1998, p. 217):

A presença do verbo discorrer, cujo significado é espalhar-se, derramar-se, correr para diversos lados, falar, discursar, funciona aqui como um precioso conector de isotopias, ponto de relevada importância para demonstrar a preocupação com a oralidade. Numa linguagem líquida, espraiada, voz de rio concretizada em poema, a ação da experiência produz a narrativa. Através dessa oralidade, o narrador parece desenhar a cartografia da região percorrida. Descreve com minúcia os traços físicos da paisagem e da gente encontrada pelo caminho, expõe a terra e o que nela se cultiva. A seca, os engenhos transformados em usinas, tudo é apreendido pelo olhar plano e rasteiro do relator rio, narrador-turista capaz de resgatar em imagens tudo o que se passa.

O excerto em destaque evidencia outra importante característica desse poema – a descrição – que confere maior objetividade ao texto, uma vez que seu emprego promove certo afastamento em relação às emoções do eu-poético. A partir da descrição, o conhecimento social e geográfico de João Cabral de Melo Neto também se revela, como pode se observar a seguir:



As coisas não são muitas que vou encontrando nesse caminho. Tudo planta de cana nos dois lados dos caminhos; e mais plantas de cana nos dois lados dos caminhos por onde os rios descem que vou encontrando neste caminho; e outras plantas de cana há nas ribanceiras dos outros rios que estes encontraram antes de se encontrarem comigo. Tudo planta de cana e assim até o infinito; tudo planta de cana para uma só boca de usina.

Fonte: (MELO NETO, 2006, p. 29)

Nesses versos, o eu-poético descreve a paisagem que vê. De acordo com seus dizeres, ela é majoritariamente composta por cana-de-açúcar, evidenciando uma importante característica agrária do Nordeste, a produção monocultora, que ainda persiste no século XXI.

Borsato (1998) afirma que o poema é dividido em duas grandes partes: o momento em que o rio conta os seus relatos de “infância”, isto é, descreve o início de seu percurso no semiárido; e o tempo presente, em que já se encontra mais próximo do mar. A divisão do poema em dois tempos reforça a oralidade, já que o eu-poético coloca o leitor como ouvinte e, posteriormente, como personagem do poema, ouvindo a narração do Capibaribe como se estivessem mantendo um diálogo.

Morte e vida severina (1955) é outro famoso poema de João Cabral de Melo Neto, e consiste em uma narração feita por um pobre retirante nordestino chamado Severino que descreve todo o seu trajeto do sertão até o litoral. A obra se divide em dois momentos distintos: a viagem de Severino rumo à capital Recife e o momento em que ele chega no litoral, remetendo ao auto de Natal, uma vez que é o momento em que o filho de um carpinteiro local nasce, e o acontecimento muito se assemelha às circunstâncias do nascimento de Jesus Cristo.

Toda a característica prosaica comum à obra de Melo Neto também está presente em Morte e vida severina a partir das intensas narrações e descrições presentes no texto, como ocorre logo no primeiro capítulo do poema, em que Severino descreve a si mesmo. No entanto, ao invés de a descrição tornar Severino um sujeito singular ou ressaltar suas particularidades, ela o generaliza, conferindo ênfase aos traços comuns a diversos retirantes e mostrando que há muitas pessoas em situação semelhante à sua no Nordeste.

Assim, “quanto mais se define, menos se individualiza” (SECCHIN, 2014, p. 147), pois João Cabral mostra que as semelhanças entre os Severinos estão presentes na esfera das condições de vida e de trabalho, inclusive na morte, ocasionada pela precária qualidade de vida, pelo trabalho deletério e pela violência comum ao campo nordestino e brasileiro, como evidencia o excerto a seguir:



E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia.

Fonte: (MELO NETO, 2006, p. 50)

Enquanto o rio Capibaribe passa por um processo de humanização no poema O Rio, o contrário acontece em Morte e vida severina, uma vez que o próprio Severino se liquidifica, como atesta o verso:



Penso agora: mas por que parar aqui eu não podia e como o Capibaribe interromper minha linha? ao menos até que as águas de uma próxima invernia me levem direto ao mar ao refazer sua rotina?

Fonte: (MELO NETO, 2006, p. 57)

No monólogo em destaque, Severino está cansado de sua viagem e pede para ser como o rio Capibaribe, que é intermitente, ou seja, seca em determinado período do ano. Destarte, Secchin (2014) afirma que ocorre sua liquidificação, em virtude de sua semelhança com o rio. Sublinha-se que João Cabral conecta, de certa forma, os dois poemas, pois enquanto em O rio ocorre a liquidificação do homem, em Morte e vida severina são atribuídas características humanas a um curso hídrico.

O autor descortina a realidade nordestina e mostra como aspectos estruturais influenciam diretamente na vida de seus habitantes em diversos fatores, como a dificuldade de acesso à água potável, a pobreza e a precariedade dos regimes alimentares (PINHEIRO NETO; PROENÇA, 2013). Além disso, sua obra retrata a percepção e a experiência subjetiva da paisagem, como acontece com as descrições feitas pelo protagonista Severino em Morte e vida Severina (PINHEIRO NETO, 2012).

3.3. A QUESTÃO AGRÁRIA BRASILEIRA

Para compreender os principais elementos da questão agrária nacional presentes na obra de João Cabral de Melo Neto, é necessário conhecimento sobre as principais características do campo e da agricultura do país, desde o século XVI até os tempos recentes, principalmente com ênfase em aspectos estruturais que permanecem na conjuntura agrária brasileira há cerca de cinco séculos.

Os principais produtos da economia brasileira sempre estiveram vinculados à agropecuária, desde o início da colonização portuguesa (PORTO-GONÇALVES, 2006; IBGE, 2016). Nos tempos hodiernos, apesar do crescimento de outros setores, como o secundário e o terciário, a agropecuária continua com grande relevância para a economia nacional, contribuindo para a geração de renda e empregos.

O campo brasileiro é caracterizado por relações capitalistas de trabalho e produção. A despeito das modificações tecnológicas vivenciadas pela agricultura nacional, a díspar concentração de terras, a violência no campo, as monoculturas, os danos ambientais, a exploração e a intensificação do trabalho predominam no país (PORTO-GONÇALVES, 2006). Tais características impactam profundamente os regimes alimentares dos brasileiros, incidindo em milhões de casos severos de subnutrição e desnutrição, que guardam íntima relação com a desigual estrutura agrária do país (CASTRO, 1957).

Lênin (1977) mostra que com o desenvolvimento do capitalismo na agricultura e no campo, promovido pela mecanização agrícola e pelo assalariamento do trabalho, há a especialização da produção, com o surgimento de grandes áreas monocultoras. Seguindo interesses capitalistas, há regiões destinadas majoritariamente ao cultivo de um gênero agrícola no Brasil, com destaque para a sojicultura no Centro-Oeste, a cultura canavieira no estado de São Paulo e a cafeicultura no Sul de Minas Gerais.

Com a Revolução Verde, houve a inserção de insumos urbano-industriais, como os praguicidas, os fertilizantes químicos, as sementes transgênicas e as máquinas, no processo produtivo agrícola. A mecanização da agricultura ampliou sua produtividade, mas impeliu o trabalhador rural à migração campo-cidade, uma vez que minorou a necessidade de força de trabalho humana no campo e, consequentemente, colaborou para o crescimento do desemprego rural (ANDRADE, 1979; OLIVEIRA, 2007; PEREIRA, 2012). O emprego de maquinário no processo produtivo, assim como de outros insumos, como agrotóxicos e transgênicos, amplia a produtividade e gera intensificação do trabalho, ocasionando respectivamente a extração de mais-valia relativa e absoluta.

De acordo com Marx (2013), a mais-valia absoluta corresponde ao sobretrabalho apropriado pelo capital, isto é, ao trabalho excedente que não é pago ao trabalhador, mas apossado pelo dono dos meios de produção. Seu aumento é desencadeado pela ampliação temporal da jornada de trabalho ou por sua intensificação. Já a mais-valia relativa é fornecida pelo aumento de produtividade do trabalho, geralmente ocasionado pelos avanços técnico-científicos e pela mecanização do processo produtivo, que culmina na redução do valor da força de trabalho. Como os salários nominais diminuem, há o crescimento da mais-valia auferida pelo proprietário dos meios de produção.

Ianni corrobora a exploração do trabalhador e de sua mais-valia no labor agrícola, afirmando que “o trabalhador rural é o elo mais vulnerável, na cadeia do sistema produtivo que começa com sua força de trabalho e termina no mercado internacional. Ele parece ser o vértice de uma pirâmide invertida, no sentido em que o produto do seu trabalho é dividido entre muitos, porém, sobrando-lhe pouco” (IANNI, 2012, p. 139).

Ademais, a conversão do camponês em proletário é um processo lento, marcado pelo desenvolvimento das forças produtivas e pela transformação das relações de produção. Acontece através de sua transformação (do trabalhador rural) em mão de obra livre e assalariada, isto é, força de trabalho. O proletário rural é constituído pela dissociação entre o produtor e o proprietário dos meios de produção, os quais não são a mesma pessoa (LÊNIN, 1977; KAUTSKY, 1980; IANNI, 2012).

Para Rangel (2000), o processo de industrialização ocasionaria desemprego da mão de obra agrícola. Isto é, com a industrialização do país, as demais atividades das unidades camponesas, com exceção da agropecuária, seriam abandonadas, uma vez que a produção realizada de forma artesanal pelos camponeses seria assumida pela indústria. Corroborando os dizeres do autor, o crescimento industrial ocasionou a desestruturação e a desarticulação da economia camponesa no Brasil.

No decorrer da industrialização, grandes latifundiários se tornaram capitalistas industriais, processo facilitado pelas isenções tributárias concedidas pelo Estado brasileiro, especialmente durante a ditadura militar. Deste modo, no Brasil, muitos capitalistas atuam concomitantemente nos dois setores, evidenciando o amálgamas existente entre ambos (MARTINS, 2004).

Rangel (2000), em consonância com Kautsky (1980), afirma que o desenvolvimento da indústria, resultado da inserção do capitalismo na agricultura, causa a proletarização do campesinato. Para Lênin (1977), com o desenvolvimento do capitalismo, ocorreria a proletarização do campesinato, uma vez que o modo de produção capitalista se baseia na propriedade privada dos meios de produção e na divisão da sociedade em duas classes antagônicas – a burguesia e o proletariado. Os camponeses desprovidos de terra seriam convertidos em proletários rurais, submetendo-se à exploração do trabalho assalariado.

Conforme explicam Prado Júnior (1979) e Oliveira (2007), a proletarização dos camponeses em território brasileiro, consequência da subordinação da agricultura ao modo de produção capitalista, gerou uma grande massa de trabalhadores sem-terra que trabalham de maneira temporária como volantes ou diaristas. A insalubridade, a periculosidade e a exploração do trabalho são mais intensas nesta modalidade de trabalho, pois muitos direitos legalmente garantidos aos assalariados permanentes não contemplam os trabalhadores temporários.

A elevada concentração fundiária brasileira remete ao contexto histórico do país, visto que desde a chegada dos colonizadores portugueses, a terra sempre esteve concentrada nas mãos de poucos indivíduos, especialmente da elite. As capitanias hereditárias e as sesmarias corroboram com a assertiva, pois estiveram sob o controle e a administração de indivíduos da nobreza, vinculados à Coroa portuguesa (JAHNEL, 1987; MARTINS, 1994; VILAS BOAS, 2018).

No tocante ao assunto, Vilas Boas (2018) afirma que a concentração fundiária no Brasil se instaura a partir da consolidação das capitanias hereditárias, que eram largas faixas territoriais concedidas pelo rei Dom João III e entregues a pessoas vinculadas à nobreza. Os proprietários dessas terras, chamados de donatários, tinham o poder de nomear autoridades e implantar sistemas tributários. As capitanias foram criadas com o objetivo de facilitar a administração do território brasileiro, além do “povoamento, a ocupação e principalmente a defesa das terras brasileiras, devido às tentativas de invasões” (JAHNEL, 1987, p. 106).

Passados alguns anos, o modelo de capitanias estava em declínio, tendo em vista que os donatários tiveram problemas com relação à administração dos territórios, em decorrência da diminuta lucratividade das atividades comerciais ali instituídas e da revolta dos nativos da região (VILAS BOAS, 2018). Como consequência, principiou-se o modelo de sesmarias no Brasil visando o aproveitamento total das terras, devido à improdutividade de uma grande quantidade delas e à grave crise de fome que grassava em Portugal.

Assim sendo, a instituição das sesmarias determinou que os donatários poderiam conceder terras para pessoas de sua confiança e as propriedades que não estivessem produzindo seriam apropriadas pelo Estado, independente se seus proprietários não possuíssem recursos para mantê-las produtivas. A lei tinha um critério vago sobre o tamanho das datas, pois elas eram doadas em maior quantidade para aqueles que tivessem melhores condições de plantar e produzir. Além disso, os indivíduos que recebessem a concessão da sesmaria deveriam pagar a Ordem de Cristo, o dízimo e explorar a terra durante no mínimo cinco anos (JAHNEL, 1987).

Devido à falta de execução prática das leis direcionadas às sesmarias e à reduzida capacidade para a resolução dos problemas enfrentados pelo país, elas foram extintas do território brasileiro em 1822. Até o ano de 1850, o Brasil não possuía qualquer lei nacional relacionada à posse ou à exploração das terras. Deste modo, como a desordem no campo avolumou-se de maneira surpreendente, o governo tomou providências por meio da criação da Lei de Terras de 1850 (JAHNEL, 1987).

A promulgação da Lei Geral de Terras em 1850 agravou o panorama fundiário brasileiro, uma vez que converteu a terra em mercadoria, a qual só poderia ser obtida por meio de troca, compra ou doação estatal. Doravante a instituição da lei, o acesso à terra ficou condicionado à renda (JAHNEL, 1987; MARTINS, 1994; OLIVEIRA, 2007).

Segundo Jahnel (1987, p. 110): ‘‘A Lei de Terras é, portanto, a expressão da vitória dos grandes fazendeiros. Num país de regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa para servir de instrumento de dominação”. Assim, os ex-escravos e os imigrantes que vieram para o Brasil fugindo das guerras, da fome e da recessão econômica em seus países, não conseguiriam adquirir a terra e seriam explorados pelos grandes proprietários dos meios de produção, uma vez que o preço venal das terras era elevado.

Destarte, as terras não adquiridas por meio da compra ou troca poderiam ser tomadas pelo Estado. Jahnel (1987) conclui, de maneira esclarecedora, que a Lei de Terras de 1850 contribuiu fortemente para a concentração fundiária e de renda no país. Como consequência da díspar distribuição de terras no Brasil, “a disputa pela terra engendra uma luta de classes: de um lado os camponeses, de outro os fazendeiros” (VILAS BOAS, 2018, p. 38).

Os latifúndios normalmente possuem baixa produtividade, prejudicando a economia e a população brasileiras, uma vez que a existência de terras ociosas descumpre a função social da terra, diminui a oferta de gêneros alimentícios no mercado interno e, por conseguinte, causa o aumento de seus preços. Assim, a existência de latifúndios improdutivos, muitas vezes destinados à especulação, constitui um problema para a sociedade brasileira (CASTRO, 1957; PRADO JÚNIOR, 1979; MARTINS, 1994). O latifundiarismo monocultor viabilizou a expropriação do campesinato e a exploração de seu trabalho no Brasil (MARTINS, 2004).

A desigual distribuição fundiária também colabora para o acirramento de conflitos violentos envolvendo a disputa pela posse de terras (OLIVEIRA, 2007). No tocante ao assunto, a tabela 01 ilustra a desigualdade na distribuição de terras no Brasil e na região Nordeste:

Tabela 01
Número e área dos estabelecimentos agropecuários no Brasil e a região Nordeste com menos de dez hectares e mil hectares ou mais

Fonte:IBGE, 2018.

Dentre os 5.073.324 estabelecimentos agropecuários do país, 2.620.718 (51,65%) possuíam menos de 10 hectares, enquanto 51.203 (1,01%) tinham 1.000 hectares ou mais. No entanto, os estabelecimentos com 1.000 hectares ou mais totalizavam uma área de 167.227.511 hectares (47,60%), enquanto aqueles com menos de 10 hectares somavam 7.993.969 hectares (2,27%). Assim, nota-se que a despeito do predomínio de estabelecimentos com dimensões inferiores a 10 hectares, a área ocupada por eles é muito pequena. Já os imóveis com 1.000 hectares ou mais possuem quase metade da área ocupada pela agropecuária no país, mesmo sendo responsável por cerca de 1% do total de estabelecimentos do Brasil (IBGE, 2018).

De acordo com o Censo Agropecuário de 2017, existiam 2.322.719 estabelecimentos agropecuários na região Nordeste, dentre os quais 1.510.018 (65,01%) apresentavam dimensões inferiores a 10 hectares. Já os estabelecimentos com 1.000 hectares ou mais eram 7.329 (0,32%), mas ocupavam uma área total de 23.410.411 hectares (33,02%). Em contrapartida, os estabelecimentos com menos de 10 hectares, os quais representavam quase dois terços da quantidade total, abrangiam apenas 3.842.245 hectares (5,42%) (IBGE, 2018).

Comprova-se, destarte, a díspar distribuição de terras no Brasil, visto que a maioria da população não possui acesso à terra e uma pequena minoria detém quase metade das terras destinadas à agropecuária no país. Os grandes proprietários rurais e os latifundiários possuem vastas propriedades, as quais geralmente são pouco produtivas e direcionam seus esforços à produção de commodities direcionadas à exportação, comprometendo a segurança e a soberania alimentar da população brasileira.

Prado Júnior (1979) afirma que a maioria dos brasileiros proprietários de terra não a têm em quantidade suficiente para lhes assegurar uma vida digna e suprir todas as necessidades básicas do grupo familiar. Assim, em busca de subsistência, frequentemente têm que direcionar seus esforços aos interesses dos capitalistas, impelindo-os a práticas monocultoras que degradam o meio ambiente. Tal situação também os leva a trabalharem, em troca de um salário, nas terras de outrem ou em empregos urbano-industriais, configurando o trabalho acessório (KAUTSKY, 1980). Destarte, assumem uma jornada dupla de trabalho.

O trabalho acessório complementa a renda dos camponeses pobres, ao passo que provém mão de obra aos grandes estabelecimentos agropecuários em períodos de maior necessidade, como durante a colheita. O trabalho acessório representa, concomitantemente, a proletarização do campesinato e uma de suas formas de resistência, uma vez que possibilita a autorreprodução do grupo e, em alguns casos, evita a venda de suas terras (KAUTSKY, 1980).

Segundo informações divulgadas pelo Banco de Dados da Luta pela Terra (Dataluta), entre 2000 e 2016, o Nordeste foi a região brasileira com maior número de manifestações do campo, sendo responsável por 34,4% dos atos notificados no período e por 36,1% das pessoas envolvidas nos protestos. O expressivo número de manifestações nas unidades federativas nordestinas está intimamente atrelado à violência no campo e à exorbitante concentração fundiária (DATALUTA, 2017).

De acordo com os dados publicados pela Comissão Pastoral da Terra, 234 dos 489 conflitos por água diagnosticados no Brasil foram na região Nordeste. Ademais, dentre as 201 pessoas que oficializaram ameaças de morte no campo brasileiro, 58 residiam em estados nordestinos. Os dados referentes à violência contra a pessoa, a qual engloba diversas formas de violência, como torturas, prisões, tentativas de assassinatos, ameaças de morte, agressões e assassinatos, demonstram que 693 dos 1.833 casos registrados no campo nacional em 2018 ocorreram em solo nordestino (CPT, 2020).

A concentração fundiária prejudica ainda os pequenos produtores no Nordeste e no Brasil, uma vez que eles não possuem recursos financeiros para superarem a concorrência dos grandes agricultores e pecuaristas capitalistas, os quais possuem vastas extensões de terra e robustos maquinários, permitindo-lhes minorar o custo de produção. Essa competição desleal ocasiona diversas consequências, dentre as quais se pode destacar a migração campo-cidade, comum no Brasil. Em decorrência de todas as dificuldades experimentadas com a vida no campo, vários pequenos produtores se desfazem de suas terras e migram para as grandes cidades e/ou metrópoles, em busca de uma melhor qualidade vida. Entretanto, o migrante frequentemente não logra êxito com a migração. Sobre o assunto, Vilas Boas (2017, p. 196) afirma que:

O migrante advindo do campo, em geral, possui ínfima qualificação profissional, o que o impele a subempregos ou empregos de baixa remuneração. Como os seus proventos muitas vezes não são suficientes para lhe garantir condições adequadas de moradia, frequentemente vai residir em áreas de periferia social.

Ademais, quando o camponês se muda para a cidade, continua sendo oprimido pelos capitalistas, uma vez que se torna um assalariado, já que os salários pagos são diminutos, promovendo a ampliação da mais-valia extraída pelos proprietários dos meios de produção.

Outro motivo para o aumento da migração campo-cidade são os problemas relacionados à alimentação no campo, os quais são intensificados devido à substituição do cultivo de gêneros alimentícios pela produção de commodities, como a soja e o café, e de matérias-primas destinadas à geração de energia, como a cana-de-açúcar (MCMICHAEL, 2016). Tal contexto ocasiona insegurança alimentar e perda de soberania alimentar, contribuindo para a pauperização e a piora dos regimes alimentares da população rural no país.

3.4. A QUESTÃO AGRÁRIA BRASILEIRA NA OBRA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Abordando a questão agrária nordestina e brasileira em diversos textos, com ênfase nos aspectos sociais, econômicos e políticos que deterioram as condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora, João Cabral de Melo Neto é um dos mais renomados escritores brasileiros. No tocante à sua obra, pode-se afirmar que:

Motivado por ideias marxistas e pela necessidade de denúncia social na obra de arte, mas sem prejuízo da sua dimensão estética, escreveu seu primeiro poema centrado na paisagem e no homem nordestino, O cão sem plumas (1951), metáfora para o Rio Capibaribe de Pernambuco. Além disso, para cumprir o ideal de comunicação com o público, a partir de uma linguagem mais prosaica, as obras seguintes – O rio (1954) e Morte e vida Severina (1954-1955) –, baseadas em elementos da poesia medieval espanhola e da literatura popular nordestina, fincam a terra natal na poesia cabralina. (CARVALHO, 2009, p. 270).

Para Carvalho (2009), os poemas O rio e Morte e vida severina, em virtude de seu caráter descritivo e narrativo, representam a herança do romance nordestino do decênio de 1930 na obra cabralina, a qual procura denunciar os males, especialmente socioeconômicos e políticos, que assolam o Nordeste. Já Pinheiro Neto (2012), explica que João Cabral denuncia diversas ações dos latifundiários no Nordeste, como a grilagem e a exploração do trabalho rural. Em Morte e Vida Severina, o autor realiza uma descrição das paisagens nordestinas por intermédio da experiência subjetiva do protagonista Severino. No poema Alto do Trapuá, Melo Neto (2009, p. 87) escreve:



Estranhamente, no rebento cresce o ventre sem alimento, um ventre entretanto baldio que envolve só o vazio e que guardará somente ausência ainda durante a adolescência, quando ainda esse enorme abdome terá a proporção de sua fome.

O excerto em destaque salienta o pauperismo da população no agreste e no sertão nordestinos, bem como as consequências da concentração fundiária e da ausência de meios de produção, enfatizando a alimentação precária e a ausência de água potável e de saneamento básico nestes ambientes, ao narrar a trágica situação dos indivíduos que convivem com a esquistossomose, patologia vulgarmente conhecida como barriga d’água, pois um de seus principais sintomas é o inchaço da região abdominal.

“Em Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto aborda a dificuldade de acesso do sertanejo à terra. Descrevendo o árduo percurso do retirante Severino oriundo do sertão em direção à capital, o autor desvela as mazelas causadas pelo latifundiarismo” (VILAS BOAS; NOGUEIRA, 2017, p. 314). Uma das denúncias de João Cabral acerca da questão agrária nordestina em Morte e vida severina está no momento em que Severino, durante o seu trajeto, encontra-se com dois homens carregando o cadáver de um pequeno proprietário rural que foi morto para que suas posses pudessem ser pilhadas. O excerto a seguir mostra o diálogo em que Severino interroga um dos homens acerca dos motivos para o assassinato de uma pessoa que não possuía grandes extensões de terra:



- Mas então por que o mataram, irmãos das almas, mas então por que o mataram com espingarda? - Queria mais espalhar-se, irmão das almas, queria voar mais livre, essa ave-bala.

Fonte: (MELO NETO, 2006, p. 53)

O intervalo destacado revela a violência que assola os moradores do campo no Nordeste, a região com mais casos de violência e óbitos associados à disputa por terras no país (DATALUTA, 2017; CPT, 2020). Além disso, há críticas relacionadas à concentração fundiária nordestina, uma vez que Severino lavrador, o finado carregado pelos dois homens, tinha apenas “dez quadros de lavoura” em um lugar muito hostil e pouco fértil, enquanto seu algoz possuía muitas terras e conquistava cada vez mais, como ilustra o trecho a seguir:



- Mais campo tem para soltar, irmão das almas, tem mais onde fazer voar as filhas-bala.

Fonte: (MELO NETO, 2006, p. 53)

Em um momento de sua caminhada, Severino chega a uma residência onde estão velando um morto. Durante os cânticos para o defunto, um pobre homem chega ao local e começa a parodiar os louvores. Em determinado momento, ele diz: “Dize que levas somente/coisas de não:/fome, sede, privação” (MELO NETO, 2006, p. 56). Todas as palavras ditas pelo homem correspondem, em sua percepção, às únicas conquistas da maioria dos nordestinos em toda a sua vida.

Seus dizeres se justificam, visto que a fome decorre da elevada concentração fundiária, das diminutas terras que possuem e de sua baixa produtividade; a sede resulta da intermitência dos recursos hídricos da região associada ao monopólio exercido pelos grandes fazendeiros no controle dos mananciais e demais fontes d’água; e a privação decorre do modo de produção vigente – o capitalismo. A propriedade privada dos meios de produção, aspecto inequívoco deste modo de produção, priva a maioria das pessoas do acesso aos meios de produção, impelindo-as à exploração e à submissão ao trabalho assalariado e, por conseguinte, aprofundando a desigualdade social.

Quando Severino está próximo de chegar à Zona da Mata Nordestina, dirige-se a uma mulher, pois estava em busca de emprego. O diálogo travado demonstra as diferenças entre as sub-regiões nordestinas, uma vez que os tipos de trabalho do Sertão se distinguiam expressivamente dos trabalhos disponíveis na Zona da Mata, seu local de destino.

A Zona da Mata era e ainda é a região mais industrializada do Nordeste. Assim, sua economia não depende da agropecuária, como demonstram as palavras da mulher na janela: “esses roçados o banco já não quer financiar” (MELO NETO, 2006, p. 59). Isto é, outros ramos econômicos têm proporcionado maior lucratividade para os empresários e os bancos da região. Segundo a personagem, a pecuária também apresentava pouca expressividade no cenário econômico regional e os engenhos foram substituídos pelas usinas. Assim, postos de trabalho vinculados à agropecuária eram raros na região.

Posteriormente, Severino assiste a um enterro de um simples trabalhador, sendo esse o seu quarto encontro com a morte. O diálogo entre os amigos do defunto traz novamente uma crítica social, remetendo-se principalmente à concentração fundiária da região. No poema, um dos amigos diz ao morto que sua cova:



- É de bom tamanho nem largo nem fundo, é a parte que te cabe deste latifúndio. - Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida.

Fonte: (MELO NETO, 2006, p. 64)

O intervalo em destaque mostra que o falecido compunha o proletariado, já que não possuía meios de produção – neste caso em particular, a terra. Ironicamente, o único momento em que ele consegue o pedaço de terra tão desejado é no momento de sua morte, comprovando a dificuldade vivenciada pelos sem-terra da região. Na sequência, os amigos do finado dizem:



- Agora trabalharás só para ti, não a meias, como antes em terra alheia. - Trabalharás uma terra da qual, além de senhor, serás homem de eito e trator.

Fonte: (MELO NETO, 2006, p. 65)

O trecho mencionado salienta a realização de arrendamentos na conjuntura agrária nordestina, os quais foram e ainda são bastante comuns. Em 2017, segundo o Censo Agropecuário realizado pelo IBGE, 160.124 estabelecimentos agropecuários estavam arrendados em território brasileiro, dentre os quais 54.308 se localizavam no Nordeste, a região com mais arrendamentos no país (IBGE, 2018). No poema, ocorre uma parceria – a meia – por meio da qual o proprietário da terra concede sua terra por um período preestabelecido ao arrendatário, que deve ceder metade de toda a produção ou de todo o lucro. Deste modo, os riscos e os ganhos da produção são divididos entre o proprietário fundiário e o parceiro-produtor.

João Cabral reitera a dificuldade de acesso à terra, visto que a parceria só é interessante para os seres humanos desprovidos de meios de produção. Caso possuísse terras para cultivar, o trabalhador morto não concordaria em entregar metade dos resultados de seu trabalho para o dono das terras. Por conseguinte, em consonância com Marx (2017), pode-se afirmar que a prática dos arrendamentos está diretamente vinculada à propriedade privada dos meios de produção, à concentração fundiária e à desigualdade no acesso à terra.

Após o enterro, Severino chega à conclusão que apesar de Recife ter o solo fértil e propício à agricultura, a miséria ainda assola a capital pernambucana. Apesar de ter feito o trajeto até o litoral para melhorar de vida, percebeu que a cidade não lhe ofereceria aquilo que esperava. O insucesso após a migração para a cidade é habitual a diversas pessoas, especialmente aquelas oriundas das áreas rurais. Acerca do tema, Vilas Boas (2017, p. 196) mostra que:

O migrante advindo do campo, em geral, possui ínfima qualificação profissional, o que o impele a subempregos ou empregos de baixa remuneração. Como os seus proventos muitas vezes não são suficientes para lhe garantir condições adequadas de moradia, frequentemente vai residir em áreas de periferia social.

Geralmente, o migrante vindo do campo está habituado a trabalhos rurais e/ou agrícolas, não estando qualificado para a maioria das ocupações trabalhistas citadinas. Consequentemente, provavelmente ficará desempregado ou trabalhará de maneira informal, principalmente por meio de biscates. Em virtude de seu exíguo salário, habitará áreas de vulnerabilidade social, nas quais o Estado é omisso e não assegura direitos básicos aos seus moradores.

Em outro momento da obra, Severino encontra dois coveiros que conversam sobre a vida no litoral. O diálogo retoma a temática da morte. No início da conversa, nota-se uma denúncia da desigualdade, já que de acordo com um dos coveiros, o trabalho no cemitério localizado no centro da cidade, onde residiam as pessoas mais abastadas de Recife, era pouco movimentado; diferentemente da região onde ele se encontrava, a qual era muito afastada, onde vivia a população pobre, composta por operários, retirantes, entre outros. O trabalho no cemitério em que se enterrada a população pobre era intenso, pois como o trabalho assalariado era insalubre e deletério, os proletários eram acometidos por diversas patologias, as quais, com certa frequência, causavam óbitos. Com relação aos retirantes, os coveiros discorrem:



- E esse povo lá de riba de Pernambuco, da Paraíba, que vem buscar no Recife poder morrer de velhice, encontra só, aqui chegando, cemitérios esperando. - Não é viagem o que fazem, vindo por essas caatingas, vargens; aí está o seu erro: vêm é seguindo seu próprio enterro.

Fonte: (MELO NETO, 2006, p. 74)

Ademais, ainda afirmam que os retirantes lhes proporcionam maiores ganhos, pois apresentam uma taxa elevada de mortalidade. A constatação dos trabalhadores revela a débil condição de saúde dos retirantes, ocasionada não somente pelo árduo percurso até o litoral, mas causada principalmente pelos precários regimes alimentares e pelas extenuantes e insalubres jornadas de trabalho às quais são submetidos.

Melo Neto utiliza a religiosidade para salientar aspectos sociopolíticos do Nordeste. O nascimento de um recém-nascido, cercado de ritos religiosos, não possui a função de evidenciar elementos místicos, mas de denunciar diversas características regionais, como a pobreza, a exploração e a insalubridade do trabalho, a precariedade das condições de vida e a fome (PINHEIRO NETO, 2012).

O final de Morte e vida severina pode ser considerado um auto dentro de um auto, já que o nascimento do filho de José, carpinteiro que Severino conheceu na chegada ao litoral, assemelha-se muito ao nascimento de Jesus Cristo, até mesmo pela homonímia entre Seu José e São José, além da referência a Nazaré, que José citou momentos antes ao dizer que Nazaré (da Mata) fora sua terra natal (SECCHIN, 2014).

Após a entrega dos presentes dados pelos vizinhos ao recém-nascido, assim como fizeram os três reis magos ao visitarem Jesus, duas ciganas preveem o futuro da criança. A primeira delas diz que o menino continuará nos mangues. Em sua assertiva, compara o recém-nascido com um animal, e afirma que aprenderá com eles o seu ofício. Já a outra cigana propõe um novo modo de vida, não mais nos lamaçais, mas dentro das fábricas.

A despeito da mudança do local de trabalho e do aparente progresso da região Nordeste, as evoluções ficam praticamente restritas ao âmbito científico-industrial, visto que a conjuntura social permanece inalterada, pois o proletariado continua tendo sua força de trabalho e suas vidas subordinadas aos interesses da burguesia detentora dos meios de produção, que concentra o poder político e financeiro.

A analogia com o nascimento de Jesus Cristo ocorre porque ambas as situações trariam esperança e representariam uma possibilidade de alterações sociais. No entanto, no caso do recém-nascido do poema, essas mudanças não acontecem, uma vez que o pobre nordestino continua sendo explorado pelos capitalistas. Desta maneira, pode-se notar que o cerne dos problemas estruturais da sociedade não está no modo de vida adotado (rural ou urbano), tampouco na atividade econômica predominante, mas na permanência do modo de produção capitalista, composto por duas classes antagônicas – burguesia e proletariado – em um sistema no qual as taxas de lucro dos burgueses são majoradas a partir da intensificação da exploração e da extração da mais-valia dos trabalhadores assalariados. Nos dizeres de Vilas Boas e Nogueira (2017, p. 321):

(...) é possível observar que frequentemente a migração em direção às urbes não atenua a exploração vivida pelo sertanejo em sua jornada de trabalho. Neste sentido, é possível inferir através dos dizeres de Melo Neto, que o trabalho desgastante outrora desempenhado em terras alheias, agora é realizado nas fábricas urbanas pelos indivíduos que efetuaram a migração campo-cidade. O êxodo rural não minorou a miséria dos migrantes, pois o cerne do problema está na ausência de propriedade sobre os meios de produção, característica inequívoca do capitalismo, o qual concentra os meios de produção sob a posse da burguesia.

O poema O rio trata particularmente do ciclo produtivo da cana-de-açúcar, que era o principal produto econômico do Nordeste na primeira metade do século XX (CARVALHO, 2009). Ademais, também carrega muitas críticas acerca da precária qualidade de vida dos nordestinos. É manifesta a denúncia que a obra faz da desigualdade social na região quando descreve a cidade de Limoeiro, a qual padece com inúmeros problemas socioespaciais, como exemplifica o excerto em destaque:



Pois, aqui, em Limoeiro, com seu trem, sua ponte de ferro, com seus algodoais, com suas carrapateiras, persiste a mesma sede, ainda sem fundo, de palha ou areia, bebendo tantos riachos extraviados pelas capoeiras.

Fonte: (MELO NETO, 2006, p. 24)

A despeito de Limoeiro apresentar um nível de industrialização superior ao de outros municípios pernambucanos, a miséria da maioria de sua população ainda persiste, revelando que a pobreza não está associada à presença ou à ausência de indústrias, mas está atrelada à desigualdade social característica do capitalismo. A descrição de Limoeiro evidencia também a concentração fundiária, já que apesar de o município ter algumas fazendas grandes e bem aprovisionadas, muitas pessoas ainda padecem de fome e sede, revelando a desigual distribuição de terras, traço marcante da questão agrária regional e nacional.

Outro importante tópico abordado em O rio é a migração campo-cidade, com ênfase na migração do interior para o litoral realizada pelos retirantes, os quais são mencionados durante todo o poema. Umas das causas da intensificação desse movimento migratório foi a substituição dos engenhos de açúcar pelas usinas, consequência da modernização no campo, que promoveu a substituição do trabalho humano pelo maquinal. A mecanização da produção causa o aumento do desemprego rural, como se observa na estrofe a seguir:



Ao entrar no Recife, não pensem que entro só. Entra comigo a gente que comigo baixou (...) e entra essa gente triste, a mais triste que já baixou, a gente que a usina, depois de mastigar, largou.

Fonte: (MELO NETO, 2006, p. 35)

Outra crítica ao modo de produção capitalista é realizada na estrofe subsequente, na qual o eu-poético diz que entra com ele no Recife “aquele usineiro que outro maior devorou” (MELO NETO, 2006, p. 35), denunciando o problema da concorrência capitalista, pois aqueles que detêm vultosas quantidades de capital vencem a competição contra os demais e, por conseguinte, monopolizam determinado setor. A exploração dos trabalhadores também é apontada no seguinte verso:



Para trás vai ficando a triste povoação daquela usina onde vivem os dentes com que a fábrica mastiga. Dentes frágeis, de carne, que não duram mais de um dia; dentes são que se comem ao mastigar para a Companhia.

Fonte: (MELO NETO, 2006, p. 32)

O uso de alegorias é muito usual na obra cabralina, como ocorre no excerto mencionado, uma vez que o eu-poético coloca o canavial como uma boca que devora o solo e as matas da região, e a usina como uma boca maior que devora tudo, inclusive o canavial. Além disso, o eu-poético trata os trabalhadores das usinas como os seus dentes, os quais devoram o canavial, que um dia os devorou.

Outro elemento estético empregado por João Cabral para a construção das críticas sociais é a redundância, como ocorre nos versos a seguir:



As coisas não são muitas que vou encontrando nesse caminho. Tudo planta de cana nos dois lados do caminho; e mais plantas de cana nos dois lados dos caminhos por onde os rios descem que vou encontrando neste caminho; e outras plantas de cana há na ribanceiras dos outros rios que estes encontraram antes de se encontrarem comigo. Tudo planta de cana e assim até o infinito; tudo planta de cana para uma só boca de usina.

Fonte: (MELO NETO, 2006, p. 29)

Apesar de muitos leitores tenderem a associar as repetições de palavras como uma falha no processo de escrita, em alguns momentos, a repetição auxilia na descrição da paisagem, já que a produção agrícola nordestina é monocultora, isto é, baseia-se no cultivo de um único gênero em largas faixas de terra.

Desde a chegada dos colonizadores lusitanos, a agricultura brasileira foi direcionada à exportação, baseando-se na monocultura de gêneros valorizados nos mercados internacionais. Por conseguinte, pode-se afirmar que a economia agrária brasileira sempre se baseou em grandes propriedades agrícolas cuja produção é voltada ao mercado, isto é, à produção de mercadorias (PRADO JÚNIOR, 1979).

Ademais, os melhores solos foram reservados às lavouras dos gêneros comerciais, como a cana-de-açúcar cultivada no massapê encontrado no litoral nordestino e na terra roxa paulista e o café plantado no Sul de Minas Gerais. Em contrapartida, a produção de víveres destinados ao autoconsumo e/ou ao mercado interno, ficou em segundo plano. O fato de os melhores grãos e frutos serem destinados ao exterior e aqueles de pior qualidade serem direcionados à população local corrobora esse fato (MARTINS, 2004; OLIVEIRA, 2007; VILAS BOAS, 2017).

No caso específico da cultura canavieira na Zona da Mata Nordestina, os danos ambientais foram calamitosos, pois expressivo percentual da vegetação nativa foi desmatado e os rejeitos das usinas despejados nos recursos hídricos da região. Além disso, os cultivos monocultores levam os solos à exaustão, ocasionando infertilidade pedológica. As monoculturas, aliadas ao desmatamento, minoraram a diversidade de alimentos presentes nos regimes alimentares, colaborando para o surgimento de patologias vinculadas às carências nutricionais e à desnutrição (CASTRO, 1957; VILAS BOAS, 2017).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, percebe-se, a partir das obras de João Cabral de Melo Neto, a gravidade dos problemas agrários existentes no Brasil, principalmente na região Nordeste, os quais resultam da imensurável desigualdade social e de renda do país. Muitos dos fenômenos descritos pelo autor em O rio e Morte e vida severina ainda persistem nas áreas rurais do país e, em particular, na região Nordeste.

Mazelas como a elevada concentração fundiária, a dificuldade de acesso à água, a pobreza, a violência no campo, a exploração do trabalhador agrícola, a insalubridade das jornadas de trabalho, a subnutrição e a desnutrição, não afetam somente o campo e a agricultura, mas reverberam também em consequências para as cidades. Rangel (2000) anteviu que a hegemonia capitalista no campo e na agricultura geraria uma crise urbana no Brasil. A macrocefalia urbana, o crescimento desmedido de periferias sociais e favelas, o aumento do preço venal dos gêneros alimentícios e a perda de qualidade das dietas alimentares são alguns dos impactos que atingem as urbes e cuja origem reside na conjuntura agrária do país.

Ademais, Melo Neto aborda elementos de ordem socioeconômica, pois trata do desemprego e do subemprego no Nordeste, da díspar distribuição de terras e de suas nefastas consequências. Devido aos pormenores das descrições feitas, os geógrafos conseguem transformar em imagens as paisagens definidas por Melo Neto. Assim, compreendem a vegetação espinhosa, o solo pouco fértil e pedregoso, o clima semiárido com esporádicas e intensas precipitações, entre outros elementos característicos do sertão nordestino.

Fenômenos denunciados pela obra cabralina, como a fome, a pobreza e a exploração do trabalho, ainda persistem no Brasil e na região Nordeste, corroborando a relevância de seus textos para a ciência geográfica. Segundo dados do IBGE, estabelecidos com base no parâmetro definido pelo Banco Mundial, 25,3% da população brasileira se encontravam em situação de pobreza, isto é, viviam com menos de U$S 5,50 por dia, no ano de 2018. Já na região Nordeste, 43,6% dos habitantes estavam na mesma condição (IBGE, 2019). O pauperismo dos brasileiros e nordestinos repercute diretamente em suas dietas alimentares. De acordo com dados publicados pelo Ministério da Saúde, 5.282 pessoas morreram de desnutrição no Brasil em 2018 (DATASUS, 2020).

Conforme dados divulgados pela Comissão Pastoral da Terra, ocorreram 1.833 conflitos notificados no campo brasileiro, envolvendo 859.023 pessoas. Ademais, foram registrados 90 conflitos trabalhistas no campo brasileiro em 2019, dentre os quais 89 foram denúncias de trabalho análogo à escravidão. Ao todo, 880 trabalhadores foram resgatados nessa situação (CPT, 2020).

Inspirado por ideais marxistas, o autor consegue realizar diversas denúncias sociais em suas obras, especialmente de caráter regionalista. Assim, em O rio e Morte e vida severina, narra e descreve com riqueza de detalhes a desigualdade social existente no Nordeste e no Brasil, decorrente da propriedade privada dos meios de produção, da iniquidade no acesso à terra, da concentração de renda, dentre outros fatores. Por conseguinte, João Cabral consegue conferir objetividade aos seus escritos, já que era um crítico das obras literárias que priorizaram a estética e a subjetividade.

Em Morte e vida severina, diversos temas caros à ciência geográfica, como as migrações, as paisagens, as relações de trabalho e a estrutura agrária, são abordados minuciosamente. Ademais, os trajetos percorridos por Severino ou pelo rio Capibaribe são eminentemente geográficos, em virtude da riqueza de detalhes das paisagens percebidas e dos processos e relações de diferentes naturezas que os influenciam a seguir o caminho em direção ao litoral.

Muitos dos problemas que assolam o campo e a agricultura no Brasil são representados na literatura cabralina, a qual propicia aos leitores uma melhor compreensão acerca da dinâmica agrária nordestina. Destarte, nota-se a importância da literatura para a sociedade, uma vez que consegue abranger várias áreas do conhecimento devido à sua interdisciplinaridade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ARAÚJO, Adriana de Fátima Barbosa. O tema da migração na poesia de João Cabral de Melo Neto. Forma Breve, Aveiro. n. 15, p. 229-240, 2018.

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Notas

[1] O artigo é resultado do projeto de pesquisa intitulado A Questão Agrária Brasileira na Obra de João Cabral de Melo Neto, aprovado pelo Edital do Programa Institucional de Iniciação Científica Júnior no. 83/2018 e financiado pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).

Autor notes

[2] Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Professor Adjunto do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais – CEFET-MG. E-mail: lucasguedes@cefetmg.br
[3] Discente do Curso Técnico Integrado em Mecatrônica – Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais – CEFET-MG. E-mail: larioliver987@gmail.com


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