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DA TÉCNICA AO ENSINO SUPERIOR: UM OLHAR PARA A FORMAÇÃO EM MODA NO SUDESTE BRASILEIRO
Luciana Crivellari Dulci
Luciana Crivellari Dulci
DA TÉCNICA AO ENSINO SUPERIOR: UM OLHAR PARA A FORMAÇÃO EM MODA NO SUDESTE BRASILEIRO
Revista de Ensino em Artes, Moda e Design, vol. 4, núm. 2, 2020
Universidade do Estado de Santa Catarina
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Resumo: O ensino superior em Design de Moda tem início, no Brasil, por volta dos anos 1990. Inicialmente foi oferecido pela iniciativa privada, em um momento de crescente urbanização, industrialização e demandas de setores do mercado. A preocupação central deste artigo é refletir sobre a constituição, em nível superior, da formação em Moda no Brasil, a partir de um recorte da Região Sudeste e evidenciar, através de análises que envolvem um olhar sobre as matrizes curriculares destes cursos, bem como sobre aspectos históricos e sociais, as causas e os objetivos da transposição de uma formação tradicionalmente técnica para o ensino superior. Para esta análise, realizou-se uma pesquisa em dados secundários sobre o fenômeno social da moda e as políticas de expansão do ensino superior brasileiro, assim como as matrizes cur-riculares de bacharelados e cursos tecnológicos em Moda, em instituições públicas e privadas do país.

Palavras-chave: Ensino superior, Moda, Currículo.

Abstract: Higher education in Fashion Design began in Brazil around the 1990s. Initially offered by the private sector, at a time of increasing urbanization, industrialization and demands from market sectors. The central concern of this article is to reflect on the constitution, at a higher level, of the formation in Fashion in Brazil, from a section of the Southeast region and to show, through analyzes that involve a look at the curricular matrices of these courses, as well as on historical and social aspects, the causes and objectives of transposing traditionally technical training to higher education. For this analysis, a survey was conducted on secondary data on the social phenomenon of fashion and the expansion policies of Brazilian higher education, as well as the curri-cular matrices of bachelor’s degrees and technological courses in Fashion, in public and private institutions in the country.

Keywords: Higher education, Fashion, Curriculum.

Resumen: La educación superior en diseño de moda comenzó en Brasil alrededor de la década de 1990. Inicialmente ofrecida por el sector privado, en un momento de cre-ciente urbanización, industrialización y demandas de los sectores del mercado. La preocupación central de este artículo es reflexionar sobre la constitución, en un nivel superior, de la formación en Moda en Brasil, desde una sección de la región sudeste y mostrar, a través de análisis que involucran una mirada a las matrices curriculares de estos cursos, así como en aspectos históricos y sociales, las causas y objetivos de transponer la formación tradicionalmente técnica a la educación superior. Para este análisis, se realizó una encuesta sobre datos secundarios sobre el fenómeno social de la moda y las políticas de expansión de la educación superior brasileña, así como las matrices curriculares de licenciaturas y cursos tecnológicos en moda, en institu-ciones públicas y privadas del país.

Palabras clave: Enseñanza superior, Moda, Curriculum.

Carátula del artículo

DA TÉCNICA AO ENSINO SUPERIOR: UM OLHAR PARA A FORMAÇÃO EM MODA NO SUDESTE BRASILEIRO

Luciana Crivellari Dulci
Universidade Federal de Ouro Preto – MG, Brasil
Revista de Ensino em Artes, Moda e Design
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2594-4630
Periodicidade: Bimestral
vol. 4, núm. 2, 2020


1 INTRODUÇÃO

O ensino superior em Design de Moda tem início, no Brasil, há pouco mais de 30 anos, quando começaram a ser criados cursos para formar “designers de moda” ou “estilistas,” através de uma formação mais abrangente do que o ofício que origina essa profissão, o de costureiro. Tal ofício, de origem muito antiga, sempre se carac-terizou pela competência técnica transmitida, ao longo do tempo, por meio da expe-riência empírica e não teórica. Na década de 1980 começa a se estruturar, no país, o ensino formal nessa área, quando surgem os primeiros cursos técnicos para preparar costureiros e modelistas. Nos anos 1990, começam a ser criados os cursos superiores em Design de Moda no país, inicialmente pela iniciativa privada, em um momento de crescente urbanização, industrialização e demandas de setores do mercado.

No início da década de 80, ressentindo-se de um profissional criador, capaz de reger o grande concerto que envolve o complexo mecanismo da moda, as capitais dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, com a inicia-tiva do próprio setor e o apoio de algumas instituições de ensino, inaugura-ram os primeiros cursos profissionalizantes para o ensino da criação de moda no Brasil. Depois, em 1988, na cidade de São Paulo, surgiu o primeiro curso superior de moda do Brasil. A idéia era formar um profissional bem-informa-do e de sólida formação, pronto a qualificar a produção brasileira de moda e abrir espaço para novas ideias. Sem dúvida, o surgimento de tais cursos esteve atrelado ao aquecimento da economia daquele período, à instalação de novas indústrias de fiação, de têxteis e de confecção de vestuário, da pos-terior política de abertura de mercado e do surgimento de muitos cursos de

design de moda, sobretudo nos países do hemisfério norte. (PIRES, 2002, p.2)

Posteriormente, os cursos superiores em Moda também se estabelecem em uni-versidades públicas, com os projetos de expansão e democratização do acesso ao ní-vel superior de ensino no Brasil. Lado a lado com a progressiva consolidação da Moda como um campo do conhecimento, observa-se a crescente valorização econômica da profissão, bem como um maior prestígio social conferido a esses profissionais.

O propósito central deste artigo é refletir sobre a constituição, em nível supe-rior, da formação em Moda no Brasil e evidenciar, através de análises que envolvem aspectos históricos e sociais, para além dos dados coletados, as causas e os objeti-vos da transposição de uma formação tradicionalmente técnica para o ensino supe-rior. Assim, através da reflexão crítica em relação às políticas públicas dessas áreas, partindo de uma análise em relação aos cursos de Moda no Brasil, discutir algumas

questões também referentes aos estudos sobre currículos no ensino superior. E in-vestigar, em parte da vida acadêmica e científica, as práticas, os valores, as crenças e representações que ali são produzidos e repassados.

Essa reflexão se desenvolve a partir de uma comparação entre os cursos supe-riores e tecnológicos na área de moda, buscando-se compreender, através de suas matrizes curriculares, as disciplinas consideradas centrais nestes dois tipos de forma-ção, a distribuição da carga horária entre disciplinas práticas e teóricas, bem como a congruência e as diferenças entre os diversos currículos distribuídos por instituições públicas e privadas de ensino superior, no Sudeste brasileiro. Os dados coletados fo-ram obtidos no site do Ministério da Educação (MEC), e as matrizes curriculares nos sites das próprias universidades.

2 BREVE HISTÓRIO DO FENÔMENO SOCIAL DA MODA

A moda é um fenômeno social que expressa valores políticos, morais, culturais

– em usos, hábitos e costumes – e abarca, portanto, qualquer manifestação material que represente tais valores, crenças e costumes. Essa representação pode ser vista na arquitetura, no mobiliário, nos adereços decorativos, na música, na dança, nas artes plásticas, na linguagem, no cinema, na fotografia, nas religiões, nas ideologias, na literatura, no esporte, no turismo, nas técnicas, entre outros. Embora possa ser feita a referência, na moda, a um uso disseminado socialmente, em determinado pe-ríodo histórico e espacial, de todas estas representações acima citadas, habituou-se associar o fenômeno social da moda ao vestuário e ao conjunto de elementos que o compõe.

Essa manifestação cultural conhecida, sobretudo no ocidente, a partir do século XIX, é um sistema simbólico que se expressa socialmente no vestuário e se manifesta a partir de interesses e motivações individuais – permeados pela multiplicidade de fatores que compõem as subjetividades desses indivíduos – mas também apresenta regularidades sociais em suas manifestações (SIMMEL, 1989).

O vestuário, utilizado como interface entre o corpo humano e o meio natural e cultural, tem múltiplas funções cujas origens são complexas, não podendo ser reduzido unicamente à sua funcionalidade. Seus aspectos práticos e sim-bólicos são indissociáveis, resultando na elaboração cultural da qual fazem parte a linguagem abstrata e a confecção de objetos. Integrando as teorias de Ruffié, Barthes e Bourdieu, podemos considerá-lo também como uma marcante forma de expressão, ou seja, uma linguagem visual que remete ao mesmo tempo ao indivíduo e à sociedade que o produziu. O estudo das for-mas vestimentares revela as condições econômicas e os conhecimentos tec-nológicos, os modos de produção, os sistemas de pensamento, organização social e as representações simbólicas da sociedade e dos indivíduos. (NACIF, 2007, p.1)

Fernand Braudel (1995), em sua investigação sobre a civilização material, eco-nomia e capitalismo, entre os séculos XV e XVIII, aponta para a paixão arrivista e o desejo de usar a roupa como símbolo de distinção social no Ocidente. Em um resgate histórico que remonta a diversas sociedades do Oriente neste período, verifica-se

que a inquietação da moda, seja na inovação dos cortes de roupas, gênero de tecidos ou penteado, não acometeu esses povos. Mesmo na Europa, até o século XII, os trajes permaneceram sem nenhuma mobilidade. A grande mudança ocorre no século XIV, quando as roupas se tornam mais cingidas para os homens, que deixam de usar saias compridas, adotando a primeira versão das calças, e apertam-se os corpetes, insti-tuindo-se decotes nos vestidos das mulheres. Os nobres, a essa época, se valiam de ordens e proibições de tecidos, as leis suntuárias (SOUZA, 1996, p. 47), que ditavam o que podia ser utilizado nas roupas dos cortesãos e o que não podia compor as roupas da burguesia, como as sedas e os fios de ouro, por exemplo.

A moda, no sentido de provocar sucessivas modificações nos trajes, por meio das inovações, não acontece antes do século XVIII. Somente no século XIX a moda evolui em períodos decenais. Até então, as modas duravam, com poucas alterações, em torno de cem anos. Na origem do movimento de regeneração da moda, quando esta busca derrubar um padrão antigo para instaurar uma nova forma de vestir, está a pressão dos seguidores e imitadores das modas (CALANCA, 2008, p.123).

A sociedade do Antigo Regime na Europa já denota um caráter sempre presente quando se estuda o comportamento social afetado pela moda que é a tensão latente entre estratos sociais diferentes e a preocupação de distinção em termos de prestígio e refinamento, existente, nesse período, entre a classe superior cortesã e os círculos burgueses (ELIAS, 1990). O equilíbrio tenso que permeia os grupos sociais na luta por reconhecimento e distinção, no campo da moda, também é apontada por Pierre Bourdieu. Este autor refere-se à moda como um “campo” – conceito que remete a um espaço de jogo – “um campo de relações objetivas entre indivíduos e instituições que competem por um mesmo objeto” (BOURDIEU, 1983, p. 155). O funcionamento do campo da moda é a luta permanente que provoca remodelações em suas orien-tações, transformando-a constantemente, mas sem abolir o jogo, sem acabar com os “modismos”. As contestações de modas só podem vigorar até o ponto de mudar a moda vigente, mas jamais questionar a existência desse sistema simbólico.

A nova ordem que se configurou com o crescimento das cidades, o advento do industrialismo – implicando avanços técnicos e científicos, além da reestrutura-ção substancial das relações de trabalho e produção – e o aumento das populações urbanas, originaram estilos de vida substancialmente diferentes de outros vistos em formações sociais anteriores. A democracia possibilitou, às camadas outrora exclu-ídas socialmente, participar da vida pública nos espaços urbanos. Ampliaram-se e reorganizaram-se os espaços de convívio sociais e novas premissas interferiram no funcionamento das cidades, reorientando as condições de vida do indivíduo moder-no. Nesse contexto, as expressões de posição social começaram a se pautar, cada vez mais, pelas manifestações de gosto e estilo, denotados nos bens materiais, hábitos de vida e na composição das aparências pessoais.

Veblen (1980) expõe um novo tipo de comportamento dos citadinos, que seria a propensão ao consumo. O consumo só vem a ser considerado um fenômeno de amplo impacto social com o advento das cidades e a produção industrial. Esse autor discorre particularmente sobre o consumo conspícuo, que seria uma forma de riva-lizar outrem em distinção e respeitabilidade social, justamente pela posse de bens materiais de valor. A motivação ao consumo conspícuo facilita a compreensão da

importância dada às vestimentas ostensivas e requintadas e à volubilidade inerente ao movimento da moda, que reafirma o hábito de gastos dispendiosos com itens do vestuário. À utilização da vestimenta como manifestação de posição social, costume já conhecido desde a sociedade de corte, é acrescida a função de expressão do pa-drão de consumo do indivíduo, também visto pelas roupas que porta, na moderna sociedade industrial.

A moda torna-se um fenômeno típico da chamada sociedade moderna de mas-sa, especialmente por dois fatores. Primeiro, porque o mesmo modelo de roupa é difundido para um grande número de pessoas que não estão necessariamente re-lacionadas entre si. Complementarmente, tais modelos estão sujeitos a modifica-ções que se repetem em breves intervalos de tempo, o que impulsiona o consumo (HEINZ, 1965). Tomados esses dois pressupostos, tem-se a moda como um símbolo da uniformidade e da inconstância da vida moderna, sendo também uma expressão do consumo de massa.

2.1 O CONSUMO DE MASSA NA MODA

O momento histórico compreendido entre o pós-guerra do século XX e início do XXI (últimos 70 anos) é fortemente associado ao crescimento da preocupação re-flexiva sobre a questão do consumo, pelas transformações sociais que estabeleceram uma cultura de consumo de massa. Juntamente a estas transformações socioeconô-micas a moda veio se transformando imensamente. As mudanças no fenômeno, ini-ciadas com os movimentos de contracultura, em meados do século XX, implicam um declínio progressivo da alta-costura dispendiosa, acessível a poucos, dando lugar à roupa pronta para vestir, que simplifica e massifica o consumo de peças do vestuário, barateando-o pelo processo de produção em escala.

Isso começa a acontecer no mundo por volta de 1950 e 1960, em meio à am-pliação e desenvolvimento da industrialização e dos processos produtivos em pra-ticamente todos os países ocidentais. Também por uma transformação cultural de grande impacto no universo da moda, demarcando significativas e definitivas dife-renças entre as modas que existiram até meados do século XX e as modas que vão se constituir daí em diante. A roupa pronta para vestir, essa que se compra nas lojas, boutiques e grandes magazines, são padronizadas por tamanhos previamente defini-dos e não singularizadas pelas especificidades dos clientes. Dessa maneira, esse tipo de roupa pode ser adquirido por classes menos providas economicamente, já que o produto industrializado tem seu custo reduzido justamente pela padronização das matérias-primas, modelagens, acabamentos, estamparia etc.

A perda relativa de espaço da alta-costura no mercado de moda, com a entra-da da roupa industrializada, retira, em parte, a grande propriedade dos estilistas e de uma moda aristocrática, como única referência de moda a ser seguida por todas as pessoas da sociedade. A transformação do entendimento do fenômeno da Moda como de elite para um fenômeno de manifestação plural, assim como a produção em massa, crescente no Brasil, entre as décadas de 1950 e 1980, foi criando espaço para a ampliação do mercado de trabalho para os profissionais de moda e, consequente-

mente, a necessidade de maior qualificação destes.

O início da produção em massa no vestuário, de roupas prontas para vestir, referidas também como prêt-à-porter (francês) ou ready-to-wear (inglês), demarca o princípio de um período histórico que não mais se pode explicar pelo modelo teórico da moda clássica, aristocrática, imposta por estilistas e pela elite que encomendava seus produtos exclusivos. A produção em larga escala de roupas permite que mais classes de pessoas possam adquirir tais roupas, já que estas são mais baratas do que as de outrora produzidas ar-tesanalmente. Com um maior acesso às roupas a partir da industrialização da produção destas observa-se, gradativamente, maior manifestação pública nos espaços de sociabilidade de diferentes valores e estilos de vida, também pelo vestuário, o que antes não acontecia. (…) A moda no vestuário ocidental se origina como um fenômeno social singular, manifestação de um campo de hierarquia e poder simbólico, para um entendimento do fenômeno no tempo presente de “modas” plurais que passam a se manifestar progressivamente

– com o auxílio da produção em massa – em uma simultânea expressão de diferenças que seriam consideradas inconciliáveis em uma moda única e do-minante como em outros tempos. (DULCI, 2019, p. 20)

3 A FORMAÇÃO SUPERIOR EM MODA NO BRASIL1

3.1 POLÍTICAS BRASILEIRAS PARA O ENSINO SUPERIOR PÚBLICO E PRIVADO

As políticas públicas brasileiras voltadas para o ensino superior vêm se expan-dindo desde os anos 1970. Nas décadas de 70 e 80, a expansão aconteceu principal-mente pela criação e implantação de Programas de Pós-Graduação, como parte dos planos de desenvolvimento econômico e social do país e para ampliar a titulação do professorado. Até então, os professores brasileiros, que buscavam se pós-graduar, precisavam sair do país e cursar mestrados e doutorados em programas de pós-gra-duação estrangeiros. A diversificação de cursos de graduação e a criação de novos cursos – incluindo cursos híbridos, com nomes diferentes dos conhecidos cursos tradicionais, tais como Gestão de Recursos Humanos, Relações Internacionais e De-sign de Moda – acontecem entre as décadas de 1990 e 2000. As estratégias de ex-pansão do ensino superior atenderam a interesses e demandas dos setores público e privado, em parte para combater a histórica desigualdade de acesso a um nível de ensino originalmente voltado para as elites. Por outro lado, há que se considerar os interesses privados e suas aspirações em aproveitar essa ampliação de acesso ao en-sino superior como oportunidade de negócio, em vista do aumento considerável do número de matrículas que se objetivava atingir com tais políticas públicas.

O setor privado, mobilizando recursos privados e orientando-se para atender

à demanda de mercado, foi mais dinâmico e cresceu mais rapidamente que o público, muitas vezes em detrimento da própria qualidade do serviço ofere-cido. Entre 1960 e 1980, o número de matrículas no ensino superior brasileiro passou de 200 mil para 1,4 milhão, em um crescimento de quase 500%. No setor privado, o crescimento foi de mais de 800%. Em 1980, o setor privado já

era numericamente predominante; respondia por cerca de 63% das matrícu-las e por cerca de 77% dos estabelecimentos de ensino superior. (SAMPAIO, 2011, p. 36)

Após o período de urbanização e industrialização crescentes no Brasil, entre os anos 1970 e 1980, as universidades privadas, já nos anos 1990, aproveitaram deman-das da sociedade em um momento de discussões sobre globalização e abertura de mercados. O ensino superior passa a ser um projeto de vida para um número cada vez maior de famílias e, se o governo federal ainda não tinha se ampliado o suficiente para atender às novas demandas, o ensino privado foi se ampliando para atender aos novos consumidores do ensino. Esse movimento orientado para o mercado e pelo mercado, Heloisa Sampaio denomina de “fragmentação de carreiras, ou seja, a trans-formação de uma habilitação e/ou disciplina em carreira independente” (SAMPAIO, 2011, p. 31). Essas carreiras derivam, em geral, de cursos tradicionais e de prestígio ligadas às humanidades, carreiras científicas ou tecnológicas.

Carreiras que advêm da valorização de um saber fazer. Ligam-se a profissões de ofício para as quais tradicionalmente dispensava-se a formação superior. Como exemplos têm-se o chef de cozinha, somelier, gastrônomos, designer em cabelo (barbeiro e cabeleireiro), designer de móvel (marceneiro), pâtis-sier (doceiro/padeiro), profissionais da moda (estilistas, modistas, costureiras etc.). Esses cursos, em geral, quando adquirem status de formação superior, passam por uma glamourização, ganhando nomes estrangeiros e associan-do-se ao consumo do luxo para construir seus campos de aplicação. (SAM-

PAIO, 2011, p. 38)

Essas mudanças no ensino superior público e privado se relacionam à acelera-ção da economia no país e ao deslocamento da esfera da produção para a de con-sumo. No caso do ensino privado, este se beneficiou muito das novas demandas e clientes provenientes das classes populares, que originalmente não frequentariam o ensino superior, pois sempre trabalharam em ofícios de trabalho braçal e com sa-ber transmitido, durante a própria prática, dos mestres aos aprendizes. A partir de 2006, cerca de 20 milhões de brasileiros passaram a pertencer à classe C. O reflexo do fenômeno é imediato na educação superior, pois justamente essa classe era e é o principal público almejado pelas instituições de ensino privadas, configurando um sistema de ensino superior maioritariamente privado e não mais dirigido para as elites (SAMPAIO, 2011). O início da formação superior em Moda, no Brasil, é recente e foi inaugurada pela iniciativa privada.

Considera-se que o primeiro curso criado no país foi o da Faculdade Santa Marcelina, em 1987, mas somente em 2002 a moda passou a ser considerada, pelo Ministério da Educação (MEC), como um conteúdo curricular específico do design. A partir de então, a formação em moda oferecida pela maioria das instituições superiores brasileiras passou a ser norteada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Design, consolidadas na

Resolução CNE/CES nº 05, de 8 de março de 2004. (SOUSA, 2017, p.3)

Nos anos 2000, novas estratégias foram projetadas para minorar a desigualdade de acesso ao ensino superior no Brasil. Dentre as principais iniciativas políticas tem-

-se o Programa Universidade para Todos (ProUni), voltado para o ensino privado, a política de financiamento universitário por meio de créditos educativos, o sistema de cotas nas universidades públicas, o Programa de Reestruturação e Ampliação das Universidades Federais (REUNI) e o programa da Universidade Aberta do Brasil (UAB), voltado para o ensino a distância. Os três primeiros foram principalmente pensados para incluir, no ensino superior, jovens provenientes das classes menos favorecidas economicamente.

O Programa Universidade para Todos (PROUNI) foi criado pelo Governo Fede-ral em 2004. Tem como finalidade conceder bolsas de estudos integrais e parciais em cursos de graduação para estudantes de baixa renda, em instituições privadas de educação superior. Funciona como uma compra de vagas do governo federal no ensino privado. A contrapartida por parte do governo é a isenção de alguns tributos às instituições de ensino que participam do programa (PROUNI, 2010).

O Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado em 2001, compatível com orientações do Banco Mundial (1998), fixa a meta expansionista de atingir 30% de matrículas da população na faixa etária de 18-24 anos, até 2010, das quais 40% em instituições públicas. A criação de 10 universidades federais e 48 novos campi vai ao encontro do PNE por meio da ampliação no número de vagas na educação superior. A lógica emancipatória de combate às de-sigualdades tem presença pelo fato de que muitas das universidades e dos campi foram criados sob a égide da interiorização da educação pública e gra-

tuita. (FRANCO, 2007, p. 3)

Já, o Programa de Reestruturação e Ampliação das Universidades Federais (REUNI) buscou a expansão do sistema público de educação superior e foi instituído em 2007. É uma das ações que integram o Plano de Desenvolvimento da Educação, o PDE (REUNI, 2010). As ações do programa contemplam, principalmente, o aumen-to de vagas nos cursos de graduação, a ampliação da oferta de cursos noturnos e a criação de campi no interior dos estados brasileiros. Tanto o PROUNI como o REUNI beneficiaram a constituição da formação superior em Moda no Brasil. Foram criados muitos cursos de Moda e Design de Moda, em faculdades privadas e universidades públicas, apoiados nessas estratégias de ampliação do ensino superior e estímulo a novas carreiras demandadas pela sociedade.

3.2 OS CURSOS DE MODA NO SUDESTE BRASILEIRO

Na realização do trabalho de pesquisa aqui apresentado, para além dos dados secundários foi feito um levantamento de dados primários junto ao site do Ministé-rio da Educação Brasileiro. Primeiramente para levantar todos os cursos superiores em Moda e Design de Moda no Brasil, bacharelados ou tecnológicos. A partir deste levantamento, foram pesquisados os sítios específicos de cada Universidade ou Fa-culdade, públicas e privadas, que têm cursos superiores em Moda, para levantamento das matrizes curriculares destes cursos.

A reflexão desenvolvida a partir de uma comparação entre os cursos superio-res, bacharelados e tecnológicos na área de moda, buscou compreender, através de

suas matrizes curriculares, as disciplinas consideradas centrais nessa formação de nível superior, a distribuição da carga horária entre disciplinas práticas e teóricas, bem como a congruência e as diferenças entre os diversos currículos distribuídos por instituições públicas e privadas de ensino superior, em todo o Brasil. Abaixo serão apresentados os dados da Região Sudeste brasileira a qual contém mais de 50% dos cursos superiores de Design de Moda ou Moda – ainda existe essa diferenciação en-tre os nomes dos cursos – no país.

Em um levantamento de dados em 2019, no site do Ministério da Educação – www.emec.mec.com.br – têm-se, no Brasil, no ensino superior da área de Moda (graduação), 73 cursos de bacharelado com os seguintes nomes: Moda (38); Design de Moda (29); Têxtil e Moda (1); Moda e Design (1); Moda, Design e Estilismo (1); De-sign – Moda (1); Design de Moda – Modelagem (1); Design de Moda – Estilismo (1) e 153 tecnológicos com os nomes Design de Moda (147), Moda (5), Estilismo (1). Ao todo, o país tem, atualmente, um número aproximado de 226 cursos superiores no campo da Moda (alguns cursos estão em fase de desativação, embora constem ainda como ativos e outros já ativos ainda estão por iniciar seus cursos). Os estados brasi-leiros que oferecem maior número de escolas são, em primeiro lugar, o de São Paulo e, em segundo, o de Minas Gerais, na Região Sudeste do Brasil. A Região Sul vem na sequência, com um número também razoável de instituições, seguido pela Região Nordeste, Centro-oeste e, por fim, a Região Norte, onde consta apenas uma institui - ção de Ensino, no Estado do Pará.

Esse recorte de pesquisa fez um levantamento junto aos dados da Região Su-deste brasileira (São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo), já que é onde se concentra a maior parte dos cursos superiores de Moda, com a finalidade de se conhecer as estruturas curriculares desses cursos e esboçar algumas análises que podem ajudar a compreender este campo do ensino superior no Brasil. Investigaram--se, primeiramente, as matrizes curriculares de todas as instituições dos quatro esta-dos. A amostra recolhida constitui-se das instituições que mais facilmente forneciam esses dados em seus sítios específicos.

Para realizar as comparações entre as matrizes, reuniuram-se as disciplinas em 4 (quatro) tipos/categorias: 1) ciências humanas e sociais aplicadas; 2) gerenciais e de produção; 3) técnicas específicas da área de moda; 4) projetos e trabalhos de con-clusão de curso. À primeira vista, essa divisão em quatro grandes áreas ainda engloba disciplinas bem diferentes. A escolha em realizar uma divisão mais abrangente é jus-tamente pelo fato de serem comuns disciplinas com nomes híbridos entre o que seria uma disciplina de ciências humanas e sociais aplicadas e as da área de gestão jun-tamente com as de produção e marketing (comuns a um curso de bacharelado em Administração). Já, a categoria ¨técnicas específicas da área de moda¨ tem variações significativas dos nomes das disciplinas, mas se repetem, com pouca variação, em cursos tecnológicos e de bacharelado. Essa categoria inclui modelagem, desenho, criação, coleção, pesquisa de moda, têxtil, ergonomia, ilustração, vitrinismo, moula-ge, dentre outras.

3.2.1 TECNOLÓGICOS

Na amostra de cursos tecnológicos colhida na Região Sudeste, coletaram-se dados de 18 instituições de graduação (cerca de 12% do universo total de 153 cur-sos tecnológicos em Moda no Brasil). Nos quatro estados foram obtidos dados de 2 (dois) cursos no Espírito Santo, 2 (dois) no Rio de Janeiro, 3 (três) em Minas Gerais e 11 (onze) em São Paulo. A primeira diferença existente entre cursos de bacharelados e tecnológicos é a sua duração total. Os primeiros, mais comumente, duram 8 (oito) semestres e estes últimos de 4 (quatro) a 6 (seis) semestres. Em seguida, pôde-se ob-servar que a formação tecnológica concentra suas disciplinas no quadro específico do curso proposto, justamente pelas disciplinas técnicas, tecnológicas, oficinas e la-boratórios, em uma formação mais dedicada à prática e ao aprendizado técnico. Em apenas uma das instituições pesquisadas, tem-se a presença de uma disciplina como “Trabalho de Conclusão de Curso” (Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, Minas Gerais). Não existem, em nenhuma das outras matrizes dos cursos tecnológicos pes-quisados, disciplinas ligadas à pesquisa científica e à reflexão acadêmica.

Em relação às disciplinas de ciências humanas e sociais aplicadas, prevalece a “História da Indumentária”, sempre com carga horária de 80 horas/semestre. Como o curso tem uma proposta de aprendizado técnico, o tempo dedicado ao aprendizado das disciplinas de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e Gerenciais e de Produção

é menor do que o verificado nos bacharelados. Encontraram-se as seguintes discipli-nas nessas duas categorias:

1) Ciências Humanas e Sociais Aplicadas: História da Arte; História da Indumen-tária; Arte e Design; Moda Contemporânea; Moda e Cultura Brasileira; Antropolo-gia Cultural; Moda e Comportamento; Cultura Brasileira; Aspectos Socioculturais do Vestuário; Comunicação de Moda; Linguagens da Moda; Psicologia da Moda; Moda e Sustentabilidade.

2) Gerenciais e de Produção: Empreendedorismo e Comércio de Varejo; Marke-ting da Moda; Visual Merchandising; Gestão Empresarial; Produção de Moda; Admi-nistração Financeira.

Ainda que se repitam vários dos nomes – mesmo que aproximados – de disci-plinas que também existem nos bacharelados, eles aparecem em número reduzido nos cursos tecnológicos, geralmente apenas duas disciplinas de ciências humanas e sociais aplicadas e duas disciplinas de gerenciais e de produção, em cada curso pes-quisado.

Em relação às disciplinas específicas da área de moda, os nomes são muito se-melhantes aos dos cursos de bacharelado, e a carga horária idem, por isso os nomes destas disciplinas aparecem apenas nesta seção. Quais sejam:

3) Técnicas específicas da área de moda: Fundamentos do Design de Moda; Mo-delagem; Moulage; Laboratório Têxtil; Desenho do Corpo Humano; Ergonomia; De-senho Técnico de Moda; Desenho de Coleção; Produção e Stylist de Moda; Estudo

de Tendências; Tecnologia de Materiais; Ilustração de Moda; Oficina de Criatividade; Oficina de Costura; Cores e Formas; Desenho Digital; Pesquisa de Moda.

Contudo, nem todos os cursos têm todas as disciplinas acima citadas. Provavel-mente uma das razões seja o tempo menor de duração dos cursos tecnológicos, mas certamente por afinidade ideológica com os cursos técnicos. Varia bastante a oferta das disciplinas específicas e não fica claro o enfoque escolhido pelos cursos tecnoló - gicos, provocando uma inquietação sobre o tipo de formação que essas instituições pretendem ter e para atuação em qual contexto social. São cursos que saíram do ensino técnico para o superior tecnológico, mas sem uma diretriz de formação clara e diferencial em relação ao ensino técnico.

A maior parte de disciplinas e de carga horária nos cursos tecnológicos de Moda e Design de Moda ainda é composta por disciplinas mais técnicas, várias delas, in-clusive, funcionando em modelos de oficinas e laboratórios. Uma parte reduzida de disciplinas corresponde a das áreas de ciências humanas e sociais aplicadas e, em nú-mero ainda menor, têm-se as disciplinas na área gerencial e de produção. Este dado

é de extrema relevância, já que, em uma proposta de formação no ensino superior, espera-se a imersão em um universo de análise e crítica, bem como um aprendizado amplo de disciplinas não apenas técnicas e específicas. São exatamente as disciplinas de ciências humanas e sociais aplicadas, as gerenciais e de produção e as disciplinas que envolvem pesquisa, projetos e trabalhos de conclusão de curso que diferenciam a formação superior, comparativamente aos cursos técnicos de moda.

Um ensino crítico e criativo alude à liberdade de exploração e do questio-namento de teorias, informações e técnicas, sendo importante que todas as disciplinas proporcionem, num curso voltado à criação como o de Design de Moda, oportunidades de aprofundamento, de exposição, de descoberta e resolução de questões e problemas a partir de leituras e debates, de experi-mentações e de confrontos conceituais e de práticas. (SANT’ANNA, 2018, p.

194)

3.2.2 BACHARELADOS

Para os cursos de bacharelado foram coletados dados de 20 (vinte) instituições no total: no Espírito Santo 1 (um) curso, no Rio de Janeiro 3 (três), em Minas Gerais 6 (seis) e em São Paulo 10 (dez) instituições. Destas 20 (vinte) instituições – cerca de 27% do universo total de bacharelados em Moda no Brasil, apenas 2 são públicas (uma em São Paulo/SP e outra em Belo Horizonte/MG). As outras 18 (dezoito) escolas são privadas.

O fato que mais chamou a atenção, em um olhar inicial para as matrizes cur-riculares dos cursos mencionados acima, foi a grande disparidade nos nomes das disciplinas e na estrutura curricular dos cursos, incluindo suas cargas horárias. Não há uma unidade facilmente reconhecível como proposta dos cursos, nem uma ten-dência predominante que seja verificada em um número significativo de instituições.

A maior variação de nomes nas disciplinas é observada na área de ciências hu-manas e sociais aplicadas, com nomes ligados à História, Sociologia, Antropologia,

Psicologia, Filosofia e Comunicação, tais como:

1) Ciências Humanas e Sociais Aplicadas: História da Arte; História da Moda; His-tória da Indumentária; História e Teoria do Design, História do Design Industrial; His-tória da Arte e Tecnologia; História da Moda Brasileira; Teoria da Moda; Moda Con-temporânea; Sociologia; Sociologia da Moda; Sociologia Geral e da Moda; Moda e Identidade Brasileira; Cultura Brasileira e Regional; Moda, Cultura e Comportamento; Antropologia Cultural; Filosofia; Estética e História da Arte; Moda e Estética; Semió-tica da Moda; Teoria da Comunicação; Comunicação de Moda; Jornalismo de Moda; Linguagem da Moda; Comunicação e Expressão; Moda e Comportamento; Psicolo-gia da Percepção; Psicologia Comportamental da Moda; Psicologia do Consumidor; Sustentabilidade.

Nas disciplinas de Ciências Humanas, as ligadas à História e suas variações são as de maior carga horária nos cursos, variando de 30 a 80h, mas sendo mais comuns as disciplinas com 60 e 80 horas.

Na área das disciplinas gerenciais, os nomes que apareceram, com pequenas variações, foram:

2) Gerenciais e de Produção: Marketing; Empreendedorismo; Produção de Moda; Desenvolvimento de Produtos; Administração Financeira; Processos e Desen-volvimento; Gestão Empresarial; Comportamento do Consumidor; Compras; Gestão Estratégica; Gerenciamento de Produção; Custos na Indústria da Moda; Varejo da Moda; Moda e Mercado.

Nas matrizes pesquisadas, a carga horária das disciplinas gerenciais e ligadas aos negócios são as menores, variando de 30 a 60 horas, mas com predominância de 30 e 36h, por semestre.

Analisando os bacharelados – os nomes das diciplinas e seus encargos, ainda que em número maior do que nos cursos tecnológicos – evidencia-se haver pouco lugar para os espaços de discussões críticas, análises sociopolíticas e econômicas sobre a história do vestuário e suas modas, bem como para a profundidade das ques-tões simbólicas, semânticas e filosóficas presentes em cada contexto. As disciplinas técnicas específicas da área de moda ainda são a maioria nesses cursos e acredita--se que, pelo menos no bacharelado, essas disciplinas deveriam corresponder a, no máximo, 50% do curso de gradução, para justificar o título e ser uma formação que possibilite uma atuação mais criativa e autoral dos designers de moda, para além do saber técnico.

(...) fortalecer a dimensão do pensar moda por vias de conhecimentos mais profundos pode promover melhores resultados econômicos, sociais e am-bientais, fortalecendo o fazer moda, dinamizando as possibilidades de atu-ação do futuro profissional, melhorando também as possibilidades de reco-

nhecimento social. (BORGES, 2017, p. 10)

Se o aprendizado e a aplicação de técnicas e tecnologias são condição sine qua

non para o desenvolvimento de novas linguagens, essas só podem surgir quando a reflexão está inserida no processo. (MATTÉ apud LIMA, 2018, p.10)

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A moda que vai se estabelecendo ao final do século XX e início do século XXI faz parte de um contexto social que abriga discussões sobre a globalização e que progressivamente pareceu buscar pela homogeneização em aspectos diversos dos padrões de comportamento, atitude e consumo no vestuário. Influências das mo-das, verificadas em grupos de expressão distintos e alternativos ao grupo de moda anteriormente concebido como dominante, são absorvidas paulatinamente por esta moda socialmente legitimada, central na sociedade. Tais influências vão sendo incor-poradas em um movimento, de certa forma, lento e controlado, sem ameaçar o jogo inerente ao campo da moda. Daí constituem-se ações que ampliam a produção e os campos de atuação da moda, atingindo um público mais amplo e potencializando o consumo de artigos ligados ao vestuário.

Esse momento histórico da ampliação do fenômeno da moda de um fenômeno de elite para um fenômeno de massa, voltado para um consumo crescente, coincide com a ampliação do ensino superior brasileiro e a constituição, em nível superior, da formação em Moda. A profissionalização dos ofícios ligados à produção de vestuá-rio – desde a indústria têxtil até o comércio – começa a ser uma exigência do setor e uma oportunidade para o estabelecimento de cursos formadores para essas novas carreiras, principalmente no ensino superior privado. É a iniciativa privada, ainda nos anos 1980, que propõe os primeiros cursos técnicos formadores dos profissionais da moda, inicialmente para se aprender o ofício de costura/confecção e o ofício de modelista, ambos essenciais no setor de fabricação do vestuário.

Posteriormente, pensou-se em uma formação que se adequasse às discussões presentes no mundo contemporâneo, incluindo saberes para além da técnica, como as disciplinas das áreas de ciências humanas e sociais aplicadas e das áreas gerenciais e de produção. Esta proposta de formação originou o ensino superior em Moda e Design de Moda a partir dos anos 1990, visando a preparar um profissional mais com-pleto, que não fosse apenas um executor, mas também um criador, um propositor de tendências e modas para o vestuário. Deveria ser capaz de atuar em diversas fren-tes do setor, inclusive como empresário, atendendo às demandas sociais com mais propriedade e proximidade das questões emergentes no campo cultural, político e tecnológico de uma sociedade em permanente construção.

A realidade mais facilmente notada, durante a coleta de dados junto aos cur-sos superiores em Moda e Design é que estes são, em sua maioria, organizados pela iniciativa privada. Dos cursos levantados no site do Ministério da Educação, são em número maior os cursos tecnológicos, comparativamente ao número de cursos de bacharelado. Mas a consideração mais relevante é sobre o fato de esses cursos guar-darem, 33 anos depois da criação do primeiro curso superior em Moda no Brasil, uma orientação principalmente técnica, mesmo os bacharelados. Não há unidade dentre as disciplinas ofertadas em todos os cursos pesquisados, sejam de bacharelado ou tecnológicos. Embora os bacharelados tenham carga horária total maior, não parece

ser prioridade uma formação voltada para análises mais críticas e profundas – em vis-ta do reduzido número de disciplinas nas áreas das ciências humanas e sociais aplica-das – nem de uma formação voltada para o empreendedorismo, devido ao também reduzido número de disciplinas gerenciais e de produção.

É importante que os estudos deste campo sigam refletindo sobre a formação em Moda que as escolas desejam ter e quais profissionais pretendem formar. Por que investir em cursos de formação superior se a estrutura dos cursos ainda é priorita-riamente técnica? Será que os profissionais absorvidos pelo mercado de trabalho, hoje, em sua maioria, continuam em empregos que profissionais de nível técnico também atenderiam? Ou será que a entrada da Moda em nível superior, ainda que

com perfil muito voltado ao técnico, contribuiu para atuações diferenciadas na Moda e valorizações profissionais proporcionais ao título obtido? Estas perguntas são per-tinentes para prosseguir, de forma continuada, a avaliação da formação em Moda no Brasil e sua adequação às tendências de comportamento e às necessidades do tempo presente, para além das questões que propulsionaram a iniciativa de criar cursos de Moda no ensino superior, há três décadas atrás.

Outros trabalhos de pesquisa já se interessaram pelas questões aqui apresenta-das, pois são, de fato, relevantes para o campo da Moda. A compreensão da cultura de um local de produção, de sua história, processos e estado de desenvolvimento tecnológico, econômico, político e ambiental são fundamentais para criações, em moda ou outras áreas do conhecimento, autônomas e colaborativas com o tempo corrente. Para que este tipo de criação aconteça o criador precisa ser estimulado de maneira crítica, com reflexões e debates presentes no processo de aprendizagem, inclusive para possibilitar a criação de novas técnicas e linguagens para o campo da Moda no Brasil.

Material suplementar
Referências
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