Dossiê

Processos de consistência e contextos na improvisação livre: aproximações preliminares

Rogério Costa
USP, Brasil

Processos de consistência e contextos na improvisação livre: aproximações preliminares

Revista Orfeu, vol. 1, núm. 2, 2016

Universidade do Estado de Santa Catarina

Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.

Recepção: 15 Maio 2017

Aprovação: 16 Maio 2017

Resumo: Apesar da grande quantidade de estudos dedicados ao assunto, a expressão “improvisação livre” mantém ainda hoje uma definição muito abrangente e imprecisa. Atualmente há, no Brasil e no mundo, muitas manifestações artísticas que incluem procedimentos que remetem, de forma explícita ou não, à livre improvisação. Um dos desafios que se coloca é, por um lado, a procura de uma definição do que seria comum entre as múltiplas e diversificadas práticas que se localizam no amplo território da improvisação livre ou que dela fazem uso e, por outro, do que seria singular e específico a cada uma destas práticas. É necessário definir se há realmente um território comum que abrange todas estas práticas para, posteriormente segmenta-lo em sub categorias com suas identidades próprias. É necessário também, desvendar os processos de construção de consistência em cada caso. No presente texto pretendo fazer um levantamento preliminar tendo em vista os objetivos acima delineados. Me interessa também discutir em que medida e de que forma estas manifestações interagem com determinadas configurações sociais, culturais e políticas contemporâneas ou, em outras palavras, determinar em que medida a improvisação livre pode ser pensada, tanto como um sintoma, quanto como uma linha de força que contribui de forma específica para a configuração de certos ambientes e contextos socioculturais contemporâneos relacionados às práticas criativas.

Palavras-chave: improvisação livre, contextos, processos de consistência.

Abstract: From research conducted in recent years, I realized that despite the large number of studies devoted to the subject, free improvisation keeps today, a very broad and imprecise definition. In fact, there are currently in Brazil and in the world, many artistic practices that include procedures that refer explicitly or not, to free improvisation. So one of the challenges that arises is, on the one hand, the search for a definition of what would be common (especially in terms of sound materials and procedures) between multiple and diverse practices that are located in the vast territory of free improvisation or which make use of it and, second, what would be unique and specific to each of these practices. First of all, it is necessary to establish whether there is actually a common territory that covers all these practices to further segment it into sub categories with their own identities. And more than that, it is necessary to unravel the building of consistency building processes in each case. In this paper I intend to make a preliminary survey in view of the above outlined goals. I’m also interested in discussing to what extent and how these various manifestations interact with certain social, cultural and political contemporary settings or, in other words, determine the extent to which free improvisation can be considered both as a symptom and as a line of force that contributes specifically to the setting of certain contemporary socio-cultural contexts related to creative practices.

Keywords: free improvisation, contexts, consistency processes.

Introdução

Há atualmente, no Brasil e no mundo, muitas manifestações artísticas que incluem procedimentos que remetem, de forma explícita ou não, à chamada improvisação livre. As formas destas manifestações e os ambientes onde elas se inscrevem são muito diversificados. Para efeito deste estudo, descrevo alguns exemplos e proponho uma categorização preliminar. Vale ressaltar que as categorias propostas não são necessariamente excludentes uma vez que os limites entre elas não são claros, sendo que muitas delas se interpenetram e que é comum encontrar artistas e grupos que atuam em mais de uma das modalidades descritas.

a) Solistas ou grupos de improvisação livre instrumental. É a chamada “improvisação livre clássica” com instrumentos tradicionais. Realizam performances totalmente despreparadas1 (sem nenhum planejamento explícito anterior, em tempo diferido) ou parcialmente preparadas (por um roteiro verbal, partitura convencional ou gráfica, palavras, bula de restrições etc.). Eis alguns exemplos: Orquestra Errante da USP (https://soundcloud.com/oclownprovisadorlivre), duo Dimos Goudaroulis e Eduardo Contreras de São Paulo (https://www.youtube.com/watch?v=EypsXgB5PxU), Barry Guy e parceiros (https://www.youtube.com/watch?v=0aD01TffODs), Evan Parker (https://www.youtube.com/watch?v=rrt_TylosF0), Barre Philipps e parceiros (https://www.youtube.com/watch?v=wUwRpyw9eWQ), Jöelle Leandre e parceiros (Akosh S., Nicole Mitchell etc., https://www.youtube.com/watch?v=dWrk--5TsPc), Ariel Shibolet, John Zorn, Chefa Alonzo, Derek Bailey (grupos descritos em seu livro, Improvisation: its nature and practice in Music), grupos ligados ao coletivo Exploratorium Berlin (http://exploratorium-berlin.de/en/), os grupos Obra Aberta e Coletivo Improvisado (ambos de Campinas, São Paulo) ;

b) Solistas ou grupos de improvisação livre mistos. Utilizam instrumentos acústicos, eletrônicos, analógicos ou digitais e também instrumentos informais, inventados, processamentos eletrônicos ao vivo ou live eletronics etc. É similar à categoria anterior, porém incorpora outros recursos além de instrumentos tradicionais. Assim como na categoria anterior, realizam performances totalmente despreparadas ou parcialmente preparadas (utilizando interação eletrônica ao vivo, roteiro verbal, partitura convencional ou gráfica, palavra, bula de instruções etc.). Alguns exemplos: grupo Entremeios (USP, https://www.youtube.com/watch?v=CM-Oi35hjQs) MusicaFicta (USP, https://www.youtube.com/watch?v=Tbno758oIYU), Duo Alexandre Porres e Rogério Costa (São Paulo, https://www.youtube.com/watch?v=mJLZMbOkj24), David Borgo e Jeff Kaiser, San Diego, USA, https://www.youtube.com/watch?v=48MBDYNcP6c) George Lewis e o programa Voyager (New York, https://www.youtube.com/watch?v=hO47LiHsFtc) Rogério Costa solo + patch em PD (Brane, produzido por Alexandre Porres: ( https://www.youtube.com/watch?v=lxNPScdWekE), duo Parelel Asteriod (https://parallelasteroid.com/) e o duo de Anne Berger e Robert van Heumen/Shackle (http://shackle.eu/). (Error 1: El enlace externo https://www.youtube.com/watch?v=lxNPScdWekE debe ser una url) (Error 2: La url https://www.youtube.com/watch?v=lxNPScdWekE no esta bien escrita)

c) “People who do noise”. Segundo alguns dos participantes desta “cena” (Circuit Bending, Glitch etc.), trata-se de um tipo de música em que “você improvisa usando um vocabulário pessoal de sons e ruídos que não existe sem você”. Trata-se de um tipo de música que pretende afirmar a indissolubilidade entre os sons produzidos e o performer que os produz. A formação é muito variada: acústica, instrumental, eletroacústica, circuit bending (hi e low tech), instrumentos inventados, objetos sonorizados, sintetizadores etc. Em geral, os sons são “abstratos” (no sentido de que não se relacionam com sons tradicionalmente “musicais”, indiciais, idiomáticos). Há uma espécie de mergulho no som molecular. Raramente são usados instrumentos musicais tradicionais. Na performance é possível observar uma atitude intuitiva e empírica no sentido de experimentar com sons e ruídos, sendo que há uma grande dose de imprevisibilidade e aleatoriedade. Para alguns é “uma música sem lógica que você sente no seu corpo e que cria um espaço”. Muitos dos participantes desta cena assumem uma prática e um discurso que os aproxima de uma estética punk e niilista (do whatever you want, fuck it up!) sendo que a maioria dos artistas é solista. Trata-se de uma arte bastante autocentrada e individualista (“a música é como o sangue das pessoas, então devemos amplifica-la, tanto quanto possível. Façamos os amplificadores sangrarem”). Para um exemplo localizado no estado de Oregon nos EUA (mas que se relaciona com vários outros cenários similares, inclusive no Brasil), vide documentário People who do noise: https://www.youtube.com/watch?v=dGrN6PeIiOU). Vide também os documentários sobre Circuit Bending (https://www.youtube.com/watch?v=PvlYM5Js450) os trabalhos de Nicolas Collins (https://www.youtube.com/watch?v=eg7g2jpX_VE) e no Brasil as experiências de Henrique Iwao (https://www.youtube.com/user/henriqueiwao) e de Yuri Brusky (https://www.youtube.com/watch?v=v_qnqwR9N8A) .

d) Música mista interativa, comprovisação e trabalhos de criação coletiva: trata-se de grupos de criação coletiva e colaborativa em que não se distinguem os tradicionais papéis de compositores e intérpretes. Todos são, ao mesmo tempo, performers e criadores. Ou, em alguns casos, intérpretes são chamados a colaborar de forma criativa (improvisando) em peças compostas (às vezes em processos de criação coletiva) em tempo diferido, eventualmente, interagindo com dispositivos eletrônicos durante a performance. Em alguns casos as performances são multimidiáticas (incorporam artes visuais, vídeos, movimento, dança etc.). Geralmente, existe um planejamento composicional macroscópico (formal) anterior, mas os detalhes (nível microscópico: dinâmicas, durações, frequências, sonoridades etc.) são resolvidos (interativamente, a partir de regras pré-estabelecidas e através de uma escuta intensificada) em tempo real durante a performance. Como exemplo podemos mencionar algumas obras do compositor francês George Aperghis que utiliza uma “escrita musical encarnada” e procedimentos de teatro musical (onde se pensa o corpo como um instrumento musical), estabelecendo assim, uma ligação singular com cada performer. Surge aí a ideia de intérpretes-colaboradores (assim como no trabalho desenvolvido pelo compositor italiano Giacinto Scelsi). A obra Machinations, por exemplo, traz uma partitura de instruções a partir da qual os intérpretes improvisam (https://www.youtube.com/watch?v=qF1Ez1Dz7O8).

A obra Oceanos do compositor brasileiro Danilo Rosseti (https://www.youtube.com/watch?v=ZTqK4ciNxRM), o trabalho coletivo do grupo Entremeios (https://www.youtube.com/watch?v=d9ItIjuPWgo) e do grupo Mobile, atualmente Nusom, Núcleo de Pesquisas em Sonologia da USP (https://www.youtube.com/watch?v=p6OSAfbAUbk) e (http://www2.eca.usp.br/nusom/arte) são outros exemplos deste tipo de ambiente.

e) Soundpainting (Walter Thompson, https://www.youtube.com/watch?v=GmHH8e2L0vA) e conducting (Butch Morris, https://www.youtube.com/watch?v=CXRvHQEWQKQ) ): em ambos os casos, existe um regente que é uma espécie de compositor em tempo real e que atua com uma visão macroscópica enquanto os performers improvisam, criando os sons com base nas instruções de regência. Há um extenso vocabulário de gestos compartilhado entre os músicos. Geralmente são utilizados instrumentos acústicos e/ou elétricos (com técnicas tradicionais e estendidas), acrescidos de recursos vocais variados. A peça performática Cobra de John Zorn (https://www.youtube.com/watch?v=yp-oZbmsQVw) tem uma estrutura semelhante, embora incorpore alguns outros recursos ligados à ideia de jogo.

Haveria muitos outros exemplos de práticas artísticas que utilizam a improvisação livre enquanto um procedimento importante. Porém, com base nas categorias preliminares elencadas acima, já é possível iniciar a nossa discussão. Vale no entanto, mencionar preliminarmente, algumas características gerais e comuns a estes diversos ambientes da improvisação. Com relação à preparação de um ambiente coletivo de criação, no que diz respeito aos materiais sonoros e procedimentos, pode-se dizer que os performers podem interagir e estabelecer relações de várias formas: por associação, imitação, negação, contraste ou complementaridade de ideias. Os materiais podem ser de vários tipos: objetos sonoros, gestos, figuras, texturas. Diferentemente da improvisação idiomática2 que se baseia em algum tipo de organização das alturas (melodias, harmonias, escalas, acordes, arpejos etc.) a improvisação livre inclui todo e qualquer som (e suas dimensões frequenciais, espectrais, rítmicas, dinâmicas etc.) como material virtualmente musical.

O tempo real

Afinal, o que há em comum (além dos aspectos gerais mencionado acima) entre estes vários ambientes criativos onde se utiliza (ou se diz utilizar) a improvisação livre? Num primeiro momento, pode-se dizer que em todos os casos, o foco está na performance e que esta inclui, em maior ou menor grau, uma atuação ativa e criativa (solista ou coletiva) em tempo real. Em outras palavras: independentemente da formação instrumental, dos tipos de procedimentos e materiais sonoros utilizados e por mais que haja algum tipo de preparação anterior (ou seja, um referente criado em tempo diferido), há sempre um grau específico de abertura para que os performers atuem de forma criativa no momento mesmo da performance. E, na performance, diferentemente da composição, não há esboços ou rascunhos que possam funcionar como “desenhos de passagem” que poderiam ser posteriormente descartados. Na composição os esboços se integram em processos mais ou menos longos de transformação até se tornarem obras acabadas, já nos processos de improvisação, isto não acontece. Na realidade, poder-se-ia até mesmo dizer que a improvisação é constituída de uma sequência de esboços, uma vez que não há possibilidade de revisão e acabamento. Segundo Manuel Falleiros,

A criação no presente momento, sem intermediações temporais é uma característica imprescindível da improvisação seja qual for a sua modalidade. O improvisador deve estar sozinho ou com outros improvisadores, criando no momento e não para depois. Esta condição característica da improvisação encontra no advento da Livre Improvisação uma expressão ainda mais radical em relação ao instante, já que o improvisador está lidando com os sons que cria e escuta no presente momento (FALLEIROS, 2012, p. 18).

Mas, o que é para um performer enfrentar criativamente o tempo real? É possível afirmar genericamente que a improvisação é um processo que envolve a percepção (especialmente – mas não só – a escuta) a memória (de longo prazo ou knowledge base3 e de curto prazo ou referent 4 ), a imaginação, a intenção e a ação performática propriamente dita. De outro ponto de vista, trata-se de um processo que envolve a percepção do presente (e, neste caso a construção de um referente acontece em pleno devir, durante o desdobramento da performance) com base nas experiências do passado5 (knowledge base). O que seria então esta ação performática? Trata-se de mergulhar de forma intencional num fluxo criativo complexo, contínuo (porém, não linear, pois trata-se de um percurso multidirecional) e interativo, produzindo e conectando ideias, sensações e materiais sonoros e musicais. Neste fluxo, é possível imaginar que na mente dos performers se cruzam imagens de presente, passado e futuro. E o que é a imaginação senão a projeção de imagens (neste caso, sonoras) armazenadas na memória, no passado recente (como um referente) ou no passado distante (enquanto conhecimento de base) e transformadas pelas contingências do presente? É nesta mistura do passado como memória, do presente enquanto momento da atualização e do futuro enquanto potência de devir que ocorre a performance do improvisador.

Aparentemente, o performer sempre “pre-medita”, em maior ou menor grau, e premeditação supõe intenção e escolha. Estes atos intencionais são condicionados pelas ideias de música dos performers e pelas configurações específicas do agenciamento em funcionamento. Vale perguntar se, neste ambiente coletivo, complexo e dinâmico, existem atos totalmente acidentais ou não intencionais. Há, obviamente, as ações inconscientes, automatizadas e condicionadas pelas ideias de música, pelos idiomas que atravessam os performers e/ou pela técnica adquirida num determinado instrumento em anos de estudo (memórias corporais) e que configuram o seu conhecimento de base. O quanto somos condicionados pelo nosso conhecimento de base e o quanto podemos, numa prática criativa, nos libertar dele? Para pensar sobre esta questão, menciono aqui o conceito de rostidade criado por Deleuze e Guattari:

É porque o muro branco do significante, o buraco negro da subjetividade, a máquina do rosto são impasses, a medida de nossas submissões de nossas sujeições; mas nascemos dentro deles e é aí que devemos nos debater/.../É somente através do muro do significante que se fará passar as linhas de asignificância que anulam toda recordação, toda remissão, toda significação possível e toda interpretação que possa ser dada... É somente no interior do rosto, do fundo do buraco negro e em seu muro branco que os traços de rostidade poderão ser liberados (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 59).

Do texto acima é possível depreender que é possível “se libertar”, instaurando processos de desterritorialização: a partir de um território historicamente especificado (nosso rosto composto também pelo nosso conhecimento de base) é possível buscar novas configurações, ampliar, fugir, desterritorializar ou desrostificar. A improvisação é uma estratégia possível.

Além disso, há também, durante uma performance, uma forte ideia de presença. Quando é que estamos verdadeiramente presentes numa performance? Quando e como intencionamos todos os nossos atos? Quando nos adaptamos aos acontecimentos imprevistos de forma maleável? Há uma mistura dos dois tipos de atuação? O uso de clichês, fórmulas prontas e padrões são o avesso da ideia de presença já que o clichê é uma fórmula pronta, rígida e que não se relaciona necessariamente com o que ocorre num fluxo sonoro em tempo real. No enfrentamento do tempo real, a partir da ideia de presença, há também que se levar em conta as resistências próprias dos materiais (o som) e a relação com os instrumentos usados para produzir/manipular estes materiais (voz, corpo, instrumentos tradicionais, digitais, híbridos, objetos etc.). Todos os aspectos acima mencionados – memória, percepção, escuta, imaginação, intenção e presença – se relacionam com esta característica fundamental da improvisação que é a questão do tempo real. E em todos os ambientes criativos descritos no início do texto, apesar de suas diferenças e singularidades, é possível perceber a incidência destes aspectos em maior ou menor grau.

O empoderamento do performer

Um outro aspecto relevante e que está presente de formas específicas em cada uma das categorias mencionadas acima e também de outras que, eventualmente não tenham sido incluídas no texto, é a questão do empoderamento dos performers. O improvisador é um performer-criador6 num contexto em que ocorre a eliminação (total ou parcial) das hierarquias e das fronteiras entre compositor e intérprete. E, neste caso, a palavra “intérprete” deixa de ser adequada. Além disso, o performer, em muitos dos casos mencionados, assume o papel de luthier construindo e/ou modificando seus instrumentos. Assim é que a atuação do improvisador passa a integrar, em muitos casos, a configuração de um ambiente, a preparação de um dispositivo instrumental (instrumento acústico, digital, “próteses instrumentais 7” etc.), e a criação e a performance em tempo real (estas duas últimas integradas num momento singular). Em alguns destes contextos o performer atua como uma espécie de “piloto” de um dispositivo complexo.

Uma das forças fundamentais relacionadas à ideia de empoderamento presente neste tipo de agenciamento é o desejo. A partir dele o performer-criador assume uma atitude vitalista. Com relação a este aspecto, cito um trecho da minha tese de doutorado:

Pode-se perceber/.../ dada a natureza dinâmica do plano (da improvisação), o quanto ele depende de um agenciamento do desejo e em que medida o desejo é a condição necessária e quase suficiente para a prática da livre improvisação, uma vez que esta é um fazer, uma ação contínua. O desejo é o que move o processo e chega a se confundir com ele. É a partir do desejo que se fará a construção do ambiente da livre improvisação. É ele que torna possível a conexão de componentes e linhas disparatadas e independentes (as biografias musicais de cada participante, por exemplo). É ele que torna possível a produção (COSTA, 2003, p. 71)”.

Porém, é importante perceber que este tipo de atitude não surge do nada, é condicionada por contextos específicos e se alicerça em ideias de música que surgem em um ambiente histórico e social que incorpora várias mudanças nas ideias vigentes de música. A este respeito vale mencionar o texto de Georgina Born em que ela discute, sob o ponto de vista da valoração, da institucionalização e da legitimação, o forte crescimento dos cursos de Música e Tecnologia na Grã-Bretanha nos últimos 15 anos:

[...] processos histórico culturais, sinergicamente alimentam transformações, tanto no cânone musical quanto na separação institucionalizada entre “alta” e “baixa” cultura na música. Isso ocorre como consequência dos currículos e, especificamente da ruptura modernizante com a base historicista dos cursos de música tradicional /.../o saxofonista Evan Parker, é um exemplo: sendo em décadas anteriores, uma figura de destaque na cena internacional alternativa, nos últimos anos Parker tem sido assimilado e estudado através de uma série festivais ligados a importantes universidades de música tradicional. Apesar da cena da improvisação livre ser identificada historicamente com uma ideologia que rejeita a ontologia da obra na música ocidental e que rompe com modos canônicos vigentes de valorização e legitimação, é evidente que o virtuosismo impressionante de Parker como um performer torna possível que ele seja equiparado com os principais compositores e assim reconhecido dentro discursos arte da música existentes ocidentais de valor (BORN; DEVILLE, 2015, p. 160, 163).

Nesta citação, que relata uma situação específica da Inglaterra, é possível perceber algumas analogias com a situação em nosso país. É evidente que, a partir de vários fatores, tem havido um questionamento de vários paradigmas da música tradicional no Brasil. Em primeiro lugar é preciso apontar o papel fundamental exercido pelas novas abordagens propostas por uma educação musical construtivista que, apoiada num paradigma da arte enquanto invenção e pensando a atividade musical enquanto agenciamento criativo singular, questiona a educação musical tradicional (que se limita a transmitir conceitos, conteúdos e regras) e questiona também as fronteiras entre a música popular e a música erudita, entre a chamada “alta cultura e baixa cultura” e entre a figura do compositor e do intérprete. Neste tipo de abordagem, a prática criativa é o fundamento. Vale mencionar alguns trechos da tese de doutorado da professora e pesquisadora Maria Teresa Alencar de Brito:

Fazemos música com crianças cotidianamente há muito tempo e da postura tradicional do ensinar, passamos a estar junto, buscando escutar, jogar, construir..., atualizando um modo menor de pensar/fazer música no território da educação. Modo menor que singularize objetivos, procedimentos e organizações curriculares, que redimensiona concepções de música e de educação e que, especialmente, prioriza as singularidades: do fazer musical em si mesmo e de quem as atualiza. Modo menor que cria e desfaz lugares, que caminha ao caminhar e que com a música se reporta para o mundo. Modo que instaura uma educação musical do pensamento, em oposição àquela que visa à inteligência: limitada à transmissão de conceitos e informações; preocupada em treinar o desenvolvimento de competências técnicas; ensinando a repetir o igual; padronizando, desconfigurando, guiando-se pelo tempo relógio que comanda e determina percursos e atividades (BRITO, 2007, p. 259).

Outro aspecto relacionado à situação descrita acima por Born é o fato de que, em algumas das categorias descritas no início do trabalho, assim como nos cursos de música e tecnologia na Inglaterra, os performers-criadores não têm (e não necessitam ter) formação musical tradicional, isto é, não conhecem a teoria, as técnicas, a história e repertório da música erudita europeia ocidental, que segue sendo o principal paradigma dos cursos de Música Tradicional, em que pese algumas mudanças pontuais ou estruturais que têm sido introduzidas em algumas escolas e universidades supostamente mais inovadoras no Brasil e no resto do mundo ocidental (poderíamos citar, por exemplo, a Guildhall School of Music and Drama - http://www.gsmd.ac.uk/). Em alguns dos exemplos mencionados no início do texto, há performers atuantes que não possuem nenhuma formação musical tradicional. Na Orquestra Errante, por exemplo, há casos de alguns integrantes provenientes de outras áreas de atuação, como por exemplo, das artes visuais e da psicologia.

Neste cenário de mudança de paradigmas e de quebra de hierarquias, é possível perceber um significativo processo de empoderamento de minorias que passam a exercer atividades criativas antes reservadas aos músicos especialistas. Um tipo de criação musical despretensiosa e informal se torna acessível para os não iniciados e ao mesmo tempo, surge um tipo de artista criativo e versátil que incorpora em sua atuação, vários tipos de atividade.

O corpo, o instrumento e a escuta configurada

Levando em conta todos os exemplos mencionados, na medida em que o foco está na performance, se evidencia a dimensão da corporeidade e o contato direto, não mediado, concreto e empírico com a prática instrumental (já mencionado quando da discussão sobre a ideia de presença). Em cada caso trata-se de um tipo diferente de corporeidade. Mas, de um modo geral, o instrumento é pensado de uma maneira muito abrangente enquanto uma tecnologia ou um dispositivo com o qual o corpo do performer estabelece uma relação de “simbiose” criativa (ou, nas palavras de Deleuze, um devir ou um agenciamento maquínico 8) visando a produção e a manipulação de sons concretos. É claro que, como já mencionado acima, esta relação do performer com seu instrumento, é condicionada por um determinado contexto histórico, social, estético, educacional, étnico, etc. Isto é, o contexto faz parte do agenciamento maquínico. Mas em todos os casos, o performer produz e “mergulha” no som, no sentido de que ele é atravessado e afetado pelo próprio som que ele produz. Este processo pode ser agenciado através de um instrumento tradicional, de instrumentos digitais controlados por interfaces, do próprio corpo do performer ou às vezes, através de combinações de todos estes recursos. Ele explora e descobre as potencialidades do instrumento “em pleno voo”. E assim, a produção de presença, no sentido proposto por Gumbrecht se evidencia:

[...] presença refere-se, em primeiro lugar, às coisas [res extensae] que, estando à nossa frente, ocupam espaço, são tangíveis aos nossos corpos e não são apreensíveis, exclusive e necessariamente, por uma relação de sentido/.../produção de presença aponta para todos os tipos de eventos e processos nos quais se inicia ou se intensifica o impacto dos objetos “presentes” sobre corpos humanos (GUMBRECHT, 2010, p.10 e 13).

Ou, de forma complementar, pelo conceito de corporeidade na performance conforme proposição de Paul Zumthor que afirma que:

[...] é ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo; ele que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização daquilo que me é próprio (ZUMTHOR, 2007, p. 22-23).

Assim é que o performer “entra e gruda” no instrumento. É isto que possibilita uma espécie de viagem por dentro do som semelhante àquela que é mencionada pelo compositor italiano Giacinto Scelsi e que se dá através da ação instrumental. Trata-se de um devir performer-instrumento: o conjunto se torna uma máquina ou um dispositivo criativo, um ambiente liso para o desdobramento do pensamento. Por isso, uma outra importante característica deste tipo de ambiente é a atitude experimental (que, por vezes incorpora a utilização de novas tecnologias9 que pressupõe tratar o instrumento como um campo de provas onde se descobrem possibilidades inéditas e inauditas10 . Claro que cada tipo de instrumento, devido à sua natureza, apresenta desafios diferentes (trata-se da questão da técnica ou da instrumenticidade 11): os de sopro e a voz estão mais próximos do corpo, neles a respiração se evidencia no som produzido. Obviamente, há também uma ação dos dedos que percorrem as chaves ou pistões. Mas a produção do som propriamente dita permanece ligada à respiração. Nos instrumentos de corda (percutidas, pinçadas e friccionadas) a produção do som depende de gestos musculares das mãos e braços. Há toda uma coreografia ligada a estes tipos de ação: percutir, pinçar, friccionar e às vezes, a uma soma destas ações. É importante mencionar os diferentes graus de mediação que se colocam entre o performer e a produção do som nos instrumentos tradicionais tendo talvez, como limite máximo, o órgão (antes dos instrumentos digitais). E independente do instrumento utilizado, neste tipo de agenciamento da improvisação percebe-se uma atitude intencional e experimental diante do aqui e agora: o performer deve lidar com o que acontece no momento.

Outra característica importante é que a criação se dá, quase sempre, em certa medida, de forma coletiva e durante a performance. E por isso, ao mesmo tempo em que há uma ênfase na ideia de presença, acolhe-se um alto grau de imprevisibilidade. Há, em geral, um controle apenas relativo dos processos na medida em que os performers não têm como controlar o nível microscópico da fatura sonora (possível quando se trata de uma peça composta instrumental ou eletroacústica) e não tem como prever a atuação dos outros performers. Mas nestes ambientes de performance, uma certa dose de falta de controle é, geralmente, desejada, já que parte da energia do jogo em tempo real é resultado dos sistemas de expectativas, das fricções e das diferenças de potencial que dinamizam este tipo de plano imprevisível.

Outra questão fundamental e estreitamente ligada à questão da corporeidade se refere à escuta enquanto um componente fundamental deste ambiente. As diversas formas de improvisação livre demandam tipos específicos de escuta. Neste contexto abrangente, as ideias de escuta reduzida (voltada para o objeto sonoro “puro”, desvinculada de sua fonte e de seus eventuais significados, cf. Pierre Schaeffer) e escuta profunda (engajada e expandida de forma consciente por um ouvinte ativo, cf. Pauline Oliveros) se apresentam como ferramentas favoráveis para este tipo de prática. Mas a situação é mais complexa. É possível afirmar que, em cada um destes cenários se configura um tipo de escuta pois, são muitas, variadas e simultâneas, as ideias de música que dão sustentação a cada um destes tipos de prática.

Ideias de música e a dimensão da sonoridade

Em todos os exemplos mencionados no início do artigo há também, uma tremenda ampliação das ideias de música12 e dos materiais sonoros que podem ser utilizados. Basicamente, nestes tipos de prática artística, qualquer som pode ser utilizado em uma performance13 . Por conta disto, quase sempre são utilizadas novas tecnologias (técnicas expandidas nos instrumentos tradicionais, computadores, interfaces, controladores, sensores de movimento etc.). O fluxo da performance e os materiais que o constituem são construídos ao mesmo tempo. Trata-se de um ambiente em que ocorre uma integração entre forma e conteúdo. No âmbito histórico e social que está sendo abordado neste artigo, poder-se-ia dizer que a improvisação livre é, ao mesmo tempo, sintoma, causa e componente de um cenário complexo e não linear onde se imbricam energias disparatadas, causas e efeitos. E, no que diz respeito, especificamente à questão da sonoridade, pode-se pensar na improvisação, novamente, não somente como um sintoma, mas também como uma linha de força decisiva que contribui de uma forma específica, tanto quanto outras tendências criativas do século XX e XXI, para significativas mudanças nas práticas musicais contemporâneas que resultam da expansão e da valorização da dimensão sonora e da consequente superação das fronteiras entre som e ruído. É neste sentido que a improvisação livre implica, necessariamente numa expansão das ideias de música. Como já mencionado anteriormente, trata-se de uma prática em que se almeja a socialização do fazer artístico e que traz embutidos, questionamentos sobre as fronteiras entre alta e baixa cultura, sobre o significado da técnica e do rigor, da expressividade individual, da solenidade e da seriedade artificial imposta pelos cânones do “bom gosto” etc. Neste sentido, vale lembrar que as práticas de improvisação livre foram, durante muito tempo, anti institucionais e ocorriam em ambientes ditos underground. No entanto, nos últimos anos é possível testemunhar uma lenta mudança de paradigmas que coloca a improvisação no centro de debates acadêmicos.

Considerações finais: a improvisação livre como “sinal dos tempos14

Para concluir este texto apresento abaixo, uma listagem preliminar com o intuito de criar uma imagem abrangente, mas não necessariamente ordenada e rigorosa das forças, ideias e eventos relevantes que compõem o cenário contemporâneo onde a improvisação livre se insere enquanto mais uma linha de força que atua em agenciamentos maquínicos complexos. A ideia é, nos próximos textos, aprofundar a investigação sobre os agenciamentos e os processos de consistência relacionados aos diversos tipos de ambiente em que ocorre a utilização da improvisação livre, tanto sob o ponto de vista dos procedimentos, quanto dos materiais sonoros. Também faz parte da continuidade um delineamento mais detalhado sobre os processos históricos singulares que possibilitam o surgimento deste tipo de prática. Segue a listagem mencionada acima:

Do ponto de vista social, político e econômico vivemos sob a lógica do neoliberalismo e da globalização, com um aumento da exclusão social e da concentração de renda. Neste cenário, impera o consumismo desenfreado, o excesso de informações15, a espetacularização dos eventos sociais e políticos (através da internet e das mídias tradicionais e digitais) e um acirramento dos problemas ecológicos. Do ponto de vista da tecnologia vemos, no âmbito da música, uma ampliação do acesso aos recursos de produção musical e sonora. Em alguns casos, percebe-se uma atitude crítica e experimental diante da tecnologia através de produção e utilização de gambiarras, tecnologias low fi, circuit bending, hacking etc., o que, de certa forma se opõe à massificação empreendida pela indústria cultural e a manipulação midiática. Neste contexto surge a figura do “prosumer16 que é o “consumidor que produz”. Do ponto de vista das ciências humanas, presenciamos avanços das ciências cognitivas, da neurociência, da semiótica e da crítica genética que, cada uma a seu modo, se dedica a investigar o funcionamento do cérebro, os processos criativos, a produção de conhecimento. Este tipo de investigação cria condições para a elaboração de reflexões críticas relacionadas às ideias de “dom”, genialidade e criatividade. Somado a isto, do ponto de vista educacional (conforme já anteriormente mencionado), vê-se o advento de propostas que enfatizam a aquisição da autonomia e capacidades criativas e reflexivas por parte dos indivíduos (construtivismo). Do ponto de vista das ideias, vale mencionar o processo de desmistificação da arte com a consequente ênfase na ideia de socialização do fazer artístico, os questionamentos sobre a separação entre criador/intérprete/público, do questionamento da figura do gênio criador, da valorização dos processos (em detrimento da ideia de obra).

Neste cenário de ideias percebe-se também uma desmistificação do rigor técnico e um questionamento dos critérios de valoração da obra de arte (e consequentemente da ideia de “evolução das linguagens artísticas”), uma valorização das ideias de reciclagem e colagem e, ao mesmo tempo da ideia de mergulho no material ou de molecularização (num cenário de complementaridade entre atitudes supostamente pós-modernas e modernas). Soma-se a isto uma ênfase na realização de trabalhos coletivos, um questionamento da ideia de cânone proveniente de uma ideologia eurocêntrica, uma valorização das culturas não ocidentais e da expressão grupal, territorial e coletiva e um questionamento das hierarquias e das divisões de trabalho (na vida e na arte). Cabe ainda mencionar que, em alguns contextos, a improvisação livre se liga às ideias autonomistas, autogestionárias e libertárias na medida em que, em princípio, acolhe a contribuição de qualquer pessoa, sem discriminação. Assim, se identifica com postura feministas, anticapitalistas, anti-consumistas e a favor das minorias em geral. Trata-se, decididamente, de um lugar de linhas de fuga, de pensamento “menor 17” na medida em que está sempre procurando fugir das hegemonias e das estruturas de poder, abrindo espaços para práticas criativas.

Referências

BORN, Georgina; DEVINE, Kyle. Music, Technology, Gender and Class: Digitization, Educational and Social Change in Britain in Twentieth Century Music, 12-2, Cambridge University Press, 2015.

BRITO, Maria Teresa Alencar de. Por uma Educação Musical do Pensamento: Novas Estratégias de Comunicação, Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Artes, 2007.

COSTA, Rogério L. M. O músico enquanto meio e os territórios da livre improvisação, Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor, 2003.

COSTA; SCHAUB. Expanding the concepts of knowledge base and referent in the context of collective free improvisation, in Anais do Congresso da Anppom de 2013.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs, Editora 34, São Paulo, 1997

FALLEIROS, Manuel Silveira. Palavras sem Discurso: Estratégias Criativas na Livre Improvisação, Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da ECA-USP como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Artes, 2012.

PRESSING, Jeff. Cognitive Processes in Improvisation, in Cognitive Processes in the Perception of Art, ed. W. Ray Crozier and Anthony J. Chapman, Amsterdam: Elsevier, 1984.

PRESSING, Jeff. Psychological Constraints on Improvisational Expertise and Communication, in In the course of Performance: Studies in the World of Musical Improvisation. Ed. Bruno Nettl and Melinda Russel Chicago, University of Chicago Press, 1998.

ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura, Cosac Naify, São Paulo, 2007

Notas

1 Aqui é importante relativizar estes conceitos: improvisação livre ou totalmente despreparada não existe. A este respeito afirmo na minha tese de doutorado: “Chegamos porém à paradoxal conclusão de que a improvisação totalmente livre não existe. Ou melhor, só existe relativamente. Há ao menos uma (ou mais) vontade aplicada a um determinado plano de imanência/composição. Este plano de composição já delimita as possibilidades e, em grande parte as virtualidades. A improvisação é um ato coletivo dirigido a um certo ambiente territorializável no próprio ato. Pressupõe vários atos de vontade que visam dar consistência a vários elementos e componentes. Estes elementos e componentes - o físico/corpo do músico, os idiomas a que foi submetido, sua biografia musical e pessoal - já delimitam as possibilidades. Os próprios procedimentos (variar, desenvolver, imitar, contrastar, transpor, etc.) que compõem o pensamento musical são ritornelos que traçam caminhos de consolidação. A percepção em suas diversas formas, erigida na relação de configuração entre sujeito e material se soma na tarefa de fazer com que um certo ritmo estabeleça interações entre os meios/músicos agenciando assim um território (em alguns casos, altamente instável) onde se agenciam os discursos de cada músico envolvido na improvisação (COSTA, 2003, p. 169)”.
2 A improvisação idiomática é aquela que se dá dentro do contexto de um idioma musical, social e culturalmente delimitado histórica e geograficamente como por exemplo, a improvisação na música hindu, no flamenco, no choro ou no jazz. Nestes territórios ocorre uma espécie de “jogo com regras” (em oposição ao “jogo sem regras” da livre improvisação) onde os materiais sonoros e os procedimentos são delimitados de forma mais ou menos rígida. Neste tipo de jogo, há as jogadas certas e as erradas. Obviamente, nem a improvisação idiomática é tão rígida, nem a improvisação livre é tão livre conforme já explicitado na nota 3. A improvisação livre também é social e culturalmente delimitada, tanto histórica quanto geograficamente. Acontece que a chamada improvisação livre não tem regras rígidas e ocorre em ambientes mais “porosos” e menos delimitados por fronteiras rígidas.
3 A base de conhecimento (knowledge base), de acordo com Jeff Pressing, inclui “materiais, trechos, repertório, sub-habilidades, estratégias perceptuais, rotinas de resolução de problemas, estruturas de memória hierárquicos e esquemas que são construídos em uma “memória de longo prazo” do intérprete individual (PRESSING, 1984, p. 53).
4 O referente (referent), de acordo com Jeff Pressing é o que “orienta e auxilia a produção de material musical” ao longo de uma sessão particular. Pode servir a esse propósito em performances solo, bem como em coletivas, caso em que é partilhada por todos os participantes da sessão (PRESSING, 1984, p. 52).
5 A respeito da aplicação destes dois conceitos de J. Pressing à livre improvisação, cito meu artigo com Stephan Schaub publicado nos anais da Anppom de 2012: “...poderíamos pensar na improvisação livre em termos de uma interpolação dos dois tipos de memória. O primeiro tipo baseado na base de conhecimento (knowledge base) - relaciona-se com a biografia de cada músico individualmente. O segundo, que dialoga intensamente com a base de conhecimento, é uma memória coletiva criada interativamente e refere-se à sucessão de estados sonoros provisórios que são delineados continuamente durante a performance, pensada como um referente virtual que se especifica em cada momento do presente. Assim, em certo sentido é possível dizer que a base de conhecimentos e o referente correspondem a diferentes momentos no tempo: o primeiro refere-se a qualquer habilidade e experiência que foi adquirida antes do início da sessão, enquanto o segundo orienta o fazer musical durante o desdobramento daquela sessão específica” (COSTA; SCHAUB, 2013, p.7).
6 Em minha tese de doutorado esboço o conceito de intérprete-criador que, posteriormente, e devidamente ampliado será o fundamento para esta ideia de performer-criador: “A figura do intérprete/criador ou intérprete/compositor merece uma definição mais precisa. Aqui ele é este personagem (responsável por um agenciamento) que almeja a expressão pessoal (a criação, a composição) a partir de uma prática instrumental. Ele se compraz e pensa musicalmente através de jogos instrumentais. A criação se dá a partir da sua prática instrumental. Ele não interpreta a não ser o seu próprio pensamento musical. Os sons que ele produz na sua prática são seus enunciados, expressão de seu pensamento musical instantâneo (COSTA, 2003, p.83)”
7 Penso na preparação dos instrumentos através da incorporação de objetos que modifiquem a sonoridade e a técnica instrumental, tais como surdinas, arcos, borrachas, pregos, parafusos (como nas Sonatas e Interlúdios para piano preparado de John Cage), bolas de gude, papel, folhas de alumínio etc.
8 Mesmo a tecnologia realiza um erro ao conceber as ferramentas de uma forma isolada: as ferramentas existem somente em relação aos entrelaçamentos que elas possibilitam ou que as tornam possíveis. O estribo agencia uma nova simbiose homem-cavalo que, ao mesmo tempo, possibilita o surgimento de novas armas e instrumentos. As ferramentas são inseparáveis de simbioses ou amálgamas e definem um agenciamento maquínico Natureza-Sociedade (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 31).
9 Vale mencionar aqui, novamente, o texto de Georgina Born no qual ela descreve o contexto complexo que, em certa medida subjaz a valorização da atitude experimental e da utilização das novas tecnologias, mostrando que esta, muitas vezes se relaciona com estratégias de cooptação e marketing por parte das empresas de tecnologia (Yamaha, Roland, Cycling etc.) que acabam pautando os projetos criativos dos artistas, vinculando-os aos desenvolvimentos de equipamentos e softwares.
10 Neste contexto, evocamos a ideia de música concreta instrumental que, para H. Lachenmann é uma música que enfatiza a forma pela qual o som é produzido. A este respeito, vale notar que a maioria dos livre improvisadores têm uma relação bastante aberta e experimental com seu instrumento, havendo mesmo casos já mencionados nos exemplos citados acima, em que o performer constrói instrumentos singulares.
11 A ideia de instrumenticidade se refere às relações que se estabelecem entre o ser humano e os computadores (HCI – human computer interaction) e estuda como as interfaces medeiam a relação do usuário com o software. No caso dos instrumentos tradicionais também é possível pensar na ideia de instrumenticidade que, de certa forma, extrapola ou condiciona a ideia de técnica no sentido tradicional do termo. Mas afinal, qual é a relação entre comandar e manipular um instrumento? Quando se mexe um potenciômetro numa mesa de mixagem para realizar modulações de frequência tem-se um grau de tecnicidade elevado devido às relações complexas que envolvem esta operação. Em cada instrumento tem-se diferentes graus de tecnicidade. Comandar um instrumento significa manipula-lo no contexto de um sistema dado. Neste ato, o instrumento atua modificando estados atuais visando (em movimento) estados futuros. Toda utilização de um instrumento pode ser descrita no contexto de um sistema que inclui, no caso de live eletronics, além dos fatores ambientais circundantes e os relacionados ao instrumento acústico, a aparato eletrônico: computador, interface, pedal, microfones etc.
12 A expressão “ideias de música”, já mencionada algumas vezes anteriormente, é utilizada e definida pela educadora Maria Teresa Alencar de Brito: “Escutar, produzir e significar música é fundar-se numa imagem de mundo. Cada ideia de música é ideia de um mundo. Mundo que emerge e se transforma em ideias de música que emergem e se transformam. Que a consciência emergente de cada ser transforma; que a consciência de cada povo em cada espaço-tempo transforma (BRITO, 2004, p.14)”.
13 A este respeito já dissemos em um outro artigo que: “Para a improvisação livre, o som “molecular”, “virgem”, “desnaturado” de seus eventuais condicionamentos molares (territoriais, idiomáticos, sociais, estilísticos, instrumentais, históricos, geográficos etc.) pronto para ser construído e moldado a partir da ação instrumental dos músicos durante o fluxo dinâmico em uma performance interativa (solista ou coletiva) é um horizonte utópico almejado. Uma das estratégias utilizadas para se atingir este objetivo é a intensificação da escuta (evoco aqui os conceitos de escuta reduzida de Pierre Schaeffer e de escuta profunda de Pauline Oliveros) com o objetivo de focar intencionalmente nas qualidades acústicas dos sons, considerados como materiais pré-musicais e descontextualizados (COSTA, 2015, p. 13).
14 “Sinal dos tempos” é uma expressão tirada da bíblia e que costuma ser empregada, na linguagem corrente, para designar alguma coisa espantosa, característica de uma época de crise e prenunciadora de males preocupantes. Também pode ser relacionada à palavra alemã Zeitgeist que, segundo a wikipedia “é um termo alemão cuja tradução significa espírito da época, espírito do tempo ou sinal dos tempos. O Zeitgeist significa, em suma, o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época, ou as características genéricas de um determinado período de tempo”. Faço aqui um uso livre e ampliado da expressão para designar algo que é, ao mesmo tempo sintoma e causa de uma determinada situação histórica.
15 A internet traz uma democratização, talvez mais “aparente” do que real para este estado de coisas.
16 A respeito da figura dos “prosumers” provenientes dos cursos de Música e Tecnologia na Inglaterra, cito aqui novamente o texto de Georgina Born e Kile Devine: “(são) músicos que podem ou não entrar no mundo da criação musical profissional e que podem permanecer amadores e/ou músicos desempregados. No entanto, em todos os casos, esses alunos serão os consumidores de música e muito possivelmente, através da sua prática sustentada, “independente”, e comprometidos como amadores ou “prosumers”, particularmente consumidores influentes, ajudando a remodelar o futuro musical (BORN; DEVINE, 2015, p.30).
17 O conceito deleuziano de linha de fuga está ligado às pequenas e grandes “escapadas” (indisciplinas) que acontecem no contexto dos sistemas em direção ao caos. São as “infiltrações” do caos nos sistemas “fechados”. São os modos menores (variáveis contínuas) que desequilibram modos maiores (sistemas hegemônicos abstratos). As linhas de fuga são agentes dos processos de desterritorialização. É através delas que os sistemas se desestruturam parcialmente e abrem espaço para novas configurações.
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